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Idalete Giga e a intimidade poética

A música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro

Todo o meu ser
é embalado
pela Mãe-Natureza
que canta baixinho
sempre mais baixinho
até me adormecer
Idalete Giga

Idalete Giga está sempre a me surpreender. Conheci-a em Lisboa no início dos anos 1980, quando assistente da saudosa e notável gregorianista Júlia d’Almendra (1903-1992). Não poucas vezes estive na Igreja de Santo Antônio em Lisboa e tanto como coralista, sob a direção da mestra, como a substituí-la, pude aferir o profundo senso de plasticidade musical durante o encantamento de inefáveis cantos gregorianos. A amiga esteve sempre presente aos meus recitais em Portugal, desde aqueles longínquos anos. Estreitou-se a amizade, estendida através dos anos à minha mulher Regina, filhas e netas. A semana em que passou em nossa casa durante tórrido verão em Fevereiro último ratificou a admiração pelo talento multidirecionado da musicista-poetisa (vide Idalete Giga – Visita que Marcou, 22/02/2014). Sua sátira para três jograis, Zoprotikaviform e o Reino da Quantidade, teve recepção calorosa em meu clã.

Acompanhar Idalete em sua fala sempre inflamada tanto no amor absoluto à música, como na crítica ardorosa à corrupção que infesta Brasil e Portugal, corroendo-os nas entranhas, surpreende o interlocutor. Idalete é sempre incisiva em suas posições, mercê de uma irretocável condução na existência. Íntegra. Paradoxalmente, a amiga, quando conduzida pelo devaneio à arte da poesia, transfigura-se, e essa metamorfose se dá de maneira surpreendente. É possível entender que essa alentejana da gema encontre sua tebaida na planura do Alentejo, na aldeia de Ciborro, lá se refugiando do entulho de toda espécie que as grandes cidades despejam sobre o cidadão diariamente. Céu translúcido, planura e horizonte infindo, silêncio, “asa protetora que me envolve”, segundo a poetisa em seu poema “Hino ao Silêncio”. Esses elementos integram um vasto acúmulo de sensações que foram somadas em camadas homogêneas, a formar o todo da harmonia. O amor ilimitado pela natureza tem sido substância essencial para a musicista-poetisa, exemplificado pela regente coral impecável em sua condução do Coro Capela Gregoriana Laus Deo e através da veia poética emergindo como magma vulcânico. No “Hino à Natureza” a poetisa não professaria seu amálgama absoluto? “Hoje/quero/apertar na alma/a Natureza toda/num abraço Infinito”.

Idalete não se utiliza do ferramental da pontuação. A ausência de vírgulas e pontos seria uma temeridade não fosse a autora especialista ilustre do canto gregoriano. Tem-se a fluência própria e a disposição dos poemas navega nas plácidas ondulações sonoras e vocalizadas. Transfere para seus poemas a magia flutuante e a “pontuação” se integra à respiração. Idalete tem a sabedoria da condução da frase que em todos os poemas segue seu curso melódico e sereno. Se utilizada, a rima tornar-se-ia amarra. As palavras apreendem o maravilhamento do canto. “Cantar é moralizar o som”, no conceito de Guerra Junqueiro.

A leitura de “Canto da Palavra” (Lisboa, Chiado, 2014) transporta aquele que percorre os singelos poemas de Idalete ao universo onírico e imaculado. Inexiste subterfúgio, tampouco a intenção de agradar, contudo a seduzir e muito o leitor.

Poder-se-ia afirmar que as longas sendas trilhadas por Idalete levaram-na ao que de mais sensível existe nas terras do Alentejo e a fizeram perpassar em versos experiências captadas pelos sentidos. A alma da poetisa vibra em consonância com as gradações depreendidas da terra, do mar, da luz, do espaço. A leitura, a obedecer a disposição dos conceitos, emana sonoridades, ritmo e respiração. Das profundezas do Alentejo apreende o significado do isolamento em “Alentejo Profundo”:

O Alentejo
é a pura solidão
total
vestida de silêncio

O Alentejo
é um mar
de sobreiros a sangrar
magoado
de profunda nostalgia

O Alentejo
é um choro de menino
abandonado
é um grito ancestral
estrangulado
perdido
no Infinito.

Em torno do mistério alentejano nunca desvelado por inteiro desfilam sentimentos da autora, em êxtase na sintonia contemplativa. Idalete em seu mundo metafórico torna lírico o rude, o inóspito quiçá,  dando-lhes a interação com o belo. O observar a entender a metamorfose da terra. Impossível não compartilhar todo o processo de transformação ofertado pela poetisa. O Alentejo irmana-se à Terra Prometida, ao Shangrilá dos sonhadores.

Pintora das palavras, Idalete filtra a luminosidade alentejana. Nada escapa ao olhar ávido do lirismo das cores: “Ao longe/muito ao longe/quase a perder de vista/uma faixa de luz rósea/a esmaecer/cingia o horizonte” em “Crepúsculo”, ou “A brancura das flores de esteva/ iluminando/o roxo rosmarinho/o amarelo vivo/das giestas/languidamente curvadas/à beira do caminho” do poema “Aquarela da minha infância”. Há sempre a pulsar uma alvura espontânea, característica dos autênticos. No silêncio, tão presente em tantos poemas como sereno leitmotiv, Idalete encontra luminosidade e “Hino ao Silêncio” testemunha a afeição pelo inaudível “És a Luz/transparente/onde me encontro/a asa protetora/que me envolve”.

Idalete tem plena empatia pela onomatopeia. Senti esse seu afeto sincero e natural nas muitas viagens que, ao longo dos anos, fiz com a amiga de Lisboa a Évora para recitais de piano, que apresento anualmente no Convento Nossa Senhora dos Remédios, promovidos pelo Eborae Musica, sob a dedicada direção da Profª Helena Zuber. Sons e ruídos não lhe escapam. Sensibilizava-me o seu maravilhamento ao ver cegonhas aninhadas nas torres de transmissão. Inundava-a entusiasmo  juvenil. Sob outro contexto, o canto dos pássaros têm efeito de sedução e Idalete deixa-se encantar. Emulação integral com os cantos de seu Coro Gregoriano Laus Deo, que flutuam nas naves das igrejas onde se apresenta. No poema “Aves Canoras”, a poetisa desvela-se por inteiro:

Pequeninos
deuses alados
vestidos
de graciosidade
e de leveza

Dádiva Divina
do Criador à Amada Mãe-Natureza

Sábios
Mestres cantores

Excelsos improvisadores
de ritmos incontáveis
e sons encantatórios

Músicos do céu

Símbolos vivos
do Espírito liberto
do peso da Terra

Idalete se refugia em seu mundo interior e essa viagem ao insondável torna-a sensível e, ao revelar frutos desse recolhimento, faz-nos entender parte de seus segredos. Em “Canto Breve” revela: “Por isso me escondo/no silêncio/na solidão acompanhada/e na nudez/da minha irreverência/e rebeldia”. As incursões no desconhecido ancestral e sobrenatural fazem parte do todo voltado ao silêncio e ao olhar interior, que descobre passados atemporais. “Morri de Saudades” é pungente exemplo:

Correm-me nas veias
sangue nómada

Fui cigana e cigano
noutras vidas

Morri de saudade
de solidão
amarga e doce
em eternas chegadas
e partidas

Em sua sabedoria, Idalete tem o dom do recato. Não se expande, não busca a sedutora e tantas vezes traiçoeira divulgação. Reconhece seu espaço e admira os bons, aqueles que deixaram exemplos em suas áreas através do saber e das qualidades intrínsecas. Presta homenagens em poemas despojados a Olivier Messiaen, Jorge Peixinho e à poetisa maior alentejana, Florbela Espanca, que foi fruto de um substancioso ensaio no livro “Mulheres do Alentejo na República” (vide post 28/01/2012). Essa pequena grande mulher da planura alentejana vive para a entrega plena ao Belo, à Música, à Poesia, à Amizade, ao próximo. Discretamente finaliza no poema “Nada sei”: “A alma e o coração/segregam-me baixinho/Ama e sonha/Ama e cria/Ama e confia”. Idalete Giga permanecerá.

On the book “O Canto da Palavra”, written by the Portuguese musicologist, choral conductor, poetess and also my personal friend Idalete Giga. In free verses, the poems are principally associated with nature, landscapes and sounds of her native Alentejo, carrying readers to a dreamlike and immaculate universe, at the same time unveiling the author’s inner feelings and reflecting on universal themes.

 

 


Primeira Sonata “O Combate entre David e Golias”

Penso que se ocupar unicamente de hábitos históricos
e querer reproduzir a sonoridade de práticas musicais mais antigas
é restritivo e não é sinal de progresso.
Daniel Baremboin

Motivo de um dos primeiros posts publicados (vide Johann Kuhnau – “Sonatas Bíblicas”. 28/03/2007), a obra de Johann Kuhnau  me fascina desde a década de 1970. Apesar de não frequentada pelos pianistas, a coletânea integra a vasta produção para teclado composta principalmente na primeira metade do século XVIII e que se adapta melhor ao piano moderno mercê da escrita. Mais e mais assiste-se à revisitação de pianistas ao repertório desse período, basicamente interrompida durante poucas décadas do século XX pelo pensamento de adeptos da música antiga voltados à autenticidade dos instrumentos, mormente ao cravo, “redescoberto” nas fronteiras dos séculos XIX-XX, após um século de silêncio. Como bem afirmou o notável musicólogo francês François Lesure em 2000 “O tempo do Barroco integrista passou. A utilização de instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos… não é mais o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. Daniel Barenboim segue esse raciocínio “A visão puramente acadêmica do passado é perigosa, pois ela está ligada à ideologia e ao fundamentalismo, mesmo na música”. O fluxo pianístico desse repertório, registrado em gravações memoráveis por tantos pianistas excelsos da primeira metade do século XX até os anos 1960, aproximadamente, retomou vivamente seu curso e tanto em salas de concerto como em registros fonográficos J.S.Bach, Jean-Philippe Rameau, D.Scarlatti, Carlos Seixas e outros mais têm entusiasmado intérpretes ao piano e o público de concertos. Tendência alvissareira.

Foi o acaso que me levou a conhecer a monumental coleção das “Sonatas Bíblicas”, de Johann Kuhnau. Estava a transitar em rua da Vila Nova Conceição, em uma manhã de Agosto de 1972, quando encontro o saudoso amigo José Luís Paes Nunes, personagem que unia o espírito de agitador cultural com arguto senso educacional, pois esteve ligado à Juventude Musical, associação que permanentemente via suas realizações publicadas na coluna de José Luís mantida em “O Estado de São Paulo”. Comparecera em 1971 à integral para teclado de Jean-Philippe Rameau por mim interpretada ao piano e realizada em dois recitais no Auditório Itália. Propunha-me outra integral, a das “Sonatas Bíblicas” de Johan Kuhnau, para Novembro, pois asseverou que eu deveria estar “experiente” nesse repertório. Despertou-me a curiosidade. Conhecia Kuhnau através de livros sobre J.S.Bach, seu sucessor no órgão da Igreja de St. Thomas, em Leipzig, após a morte daquele em 1722. Retinha também as referências contundentes em obras do grande musicólogo Adolfo Salazar (1890-1958) sobre o autor, bem antes do “abrupto” convite de Paes Nunes. A seguir, o dileto amigo levou-me à sua casa e ofereceu-me a partitura das “Sonatas Bíblicas”, a fim de que a interpretasse três meses após, nas comemorações dos 250 anos da morte do compositor. Aceitei o desafio, e ao começar a leitura da obra, simplesmente fiquei deslumbrado com a qualidade daquela coletânea, dedicando-me com afinco naqueles pouco mais de três meses pela frente. Não por outro motivo J.S.Bach teria copiado o manuscrito de Kuhnau. Entendera a monumentalidade e o propósito dessa primeira obra programática escrita para teclado. Inspira-se Bach nessa criação do gênero programa ao compor o “Capriccio sopra la lontananza del fratello diletissimo”. Lembraria que a apresentação em São Paulo em 1972 se fez acompanhar de slides selecionados pelo então jovem Rodolfo Coelho de Souza, com narração do saudoso Ademar Francisco Lopes. A crítica mostrar-se-ia dividida quanto à apresentação da obra e do áudio visual. Caldeira Filho, de “O Estado de São Paulo”, escreveria aos 26 de Novembro de 1972: “A obra foi redescoberta e reapresentada. Logo, esteve escondida e muda. Por quê? Por não possuir condições de sobrevivência, entre estas a validade, não relativa mas intrínseca e absoluta”(sic). Ficaria claro que, bem anteriormente àquela apresentação e até o presente, toda redescoberta pode estar cercada de resistências. Verificam-se, 42 anos após, inúmeras outras gravações das “Sonatas Bíblicas” realizadas por cravistas, organistas e pianistas, ratificando a importância do conjunto. José da Veiga Oliveira, após elogios à apresentação das “Sonatas Bíblicas”, considera  “… o ângulo exclusivamente artístico, o único que verdadeiramente interessa” (Diário Popular, 03/12/1972). Não obstante elogios ou desacordos, os críticos paulistanos não pouparam o audiovisual. Creio que a apresentação nessa configuração atendia às nossas expectativas daqueles tempos. Não mais a repetiria, mas há sempre impulsos durante a juventude da idade madura…

Nascido na Alemanha, Johann Kuhnau foi um sábio e erudito de estirpe. Músico, advogado, escritor, matemático, poliglota. Conhecia muitos idiomas: inglês, francês, italiano, espanhol, grego, latim. Seu romance satírico “Der musicalische Quacksalber” (O Músico Charlatão) obteria êxito. Organista da Igreja São Tomás em Leipzig desde 1684, torna-se Kantor da Igreja, cargo que manteria até a morte em 1722. Foi autor de Cantatas e Motetos, assim como de outras criações para teclado.

As seis “Sonatas Bíblicas” representam um conjunto monolítico baseado em histórias do Antigo Testamento e a aplicação de texto a acompanhar o discurso musical torna-as pioneiras no gênero. Frases surgem ao longo de cada Sonata, indicando ao ouvinte a intenção proposta. Como exemplo, ao sugerir na primeira Sonata o lançamento da pedra em direção à fronte de Golias, uma escala ascendente rápida indica a trajetória, seguida de longo e mais lento desenho musical descendente, a sugerir a queda do gigante. No texto publicado no blog em 2007 escrevia que as “Sonatas Bíblicas” constituem verdadeira enciclopédia dos sentimentos humanos. Estão todos lá. Do temor à alegria, do rancor à delicadeza e ao amor. Instrumentos musicais e batalhas campais citados nas frases enriquecem a obra. O piano moderno mostrar-se-ia o instrumento ideal para a realização desse universo timbrístico, pois cada um dos episódios dramáticos no cerne das Sonatas encontra no instrumento os recursos necessários sem a perda da autenticidade da partitura. Frise-se, as “Sonatas Bíblicas” foram escritas para teclado e no frontispício da edição original uma figura feminina está a tocar órgão doméstico. Em outro contexto, gravações existem a privilegiar órgão ou cravo e a interpretação ao piano apenas acompanha um desenvolvimento histórico inalienável. Creio ter sido o primeiro a gravar ao piano a integral e o registro fonográfico se deu na Capela de Sint-Hilarius, erguida na planura flamenga em Mullem, na Bélgica, sob os cuidados do excepcional engenheiro de som Johan Kennivé. O lançamento esteve sob a égide do selo De Rode Pomp, da medieval Gent.

Nesse mesmo ano realizaria uma tournée por terras portuguesas. O ilustre professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso preparou previamente um datashow com todas as frases bíblicas selecionadas por Kuhnau traduzidas para o português. A recepção foi calorosa, a proporcionar ao público a interação música-texto.

Recentemente dei uma palestra em Centro de Estudos em São Paulo apresentando comentários, gravação e o datashow mencionado. O resultado foi entusiasmante. Meu dileto amigo Elson Otake, corredor ranqueado de maratonas e meu guru nos aconselhamentos sobre corridas de rua, propôs a inclusão das “Sonatas Bíblicas” no YouTube com ilustrações pertinentes aos sucessivos episódios bíblicos. Aquiesci com alegria. Elson foi o responsável pela montagem para o YouTube de 70 músicas extraídas de meus CDs gravados no Exterior. Reunimo-nos e resolvemos utilizar as frases propostas por Johann Kuhnau em italiano, pois assim estão configuradas na edição de 1700. Frise-se que a língua peninsular exercia profunda influência na música e até o presente serve para designar andamentos, agógica, dinâmica… A inclusão da tradução em inglês, sendo essa a língua universal em vigor, ajudará ouvintes e leitores das mais diversas regiões do planeta.

Apresentamos ao leitor a primeira sonata, “O Combate entre David e Golias”, que pode ser acessada através do link abaixo. As outras cinco sonatas serão incluídas no YouTube progressivamente, sempre acompanhadas de ilustrações que fazem alusão ao episódio bíblico preciso. Elson e eu procuramos manter a maior fidelidade às muitas situações propostas pelo sábio compositor Johann Kuhnau. Divulgar as “Sonatas Bíblicas” torna-se ato imperativo, mormente nesse período histórico em que a tecnologia progride aceleradamente.

Clique para ouvir de Johann Kuhnau a Primeira Sonata Bíblica “O Combate entre David e Golias”. Piano: J.E.M.

At the suggestion of my friend and marathon runner Elson Otake I decided to post on YouTube Johann Kuhnau’s Biblical Sonatas, which I recorded in Müllem, Belgium, in 2007. Readers of my blog can already listen to the first sonata, with illustrations alluding to each biblical episode. The other five will be published progressively in the coming months.

 

 

 

Considerações após Questionamento

Consiste o progresso no regresso às origens:
com a plena memória da viagem.

Todo o progresso tem como meta a entropia.
Agostinho da Silva

Durante treino para corridas de rua em São Paulo e cidades vizinhas cruzei com amigo que também gosta da atividade. Bem mais jovem, Marcelo inverteu sua trajetória e acompanhou-me por alguns quilômetros. Após, retomou seu percurso. Ele pertence ao vasto universo publicitário e, por vezes, faz pulsar sua veia poética e também o afeto pelo violão.

Lera o post sobre Jean-Philippe Rameau, e o tema voltou a ser discutido. Comentou o texto com agudeza. Contudo, dele veio arguta pergunta ao falarmos da diversidade teórico-musical e dos caminhos empreendidos por Rameau relacionados a uma nova concepção da ópera francesa no século XVIII. “Há progresso e evolução na Arte?”, questionou-me. Tratamos do tema na cadência de nossas passadas, mas sem aprofundamento. Apenas respondi-lhe que o tema é complexo, pleno de controvérsias e que existem posições diametralmente opostas. Insistiu: “O que você pensa realmente a respeito?”. Respondi-lhe que, para as Artes, não entenderia adequada a palavra progresso, pois a essência da Arte é atemporal, imutável. Inovações técnicas, utilização de materiais transformados, processos os mais variados para todas as áreas que se abrigam sob seu manto são meios para a criação artística. Acredito que a conceituação do termo progresso implicaria, inclusive, a observância do contexto.

Como o espaço não comporta o debate de tantas correntes propostas por pensadores e historiadores da Arte sobre o tema, preferiria externar simplesmente minhas considerações, após décadas acumuladas a observar e estudar vários segmentos artísticos.

Consideremos progresso e outros termos como evolução (processo em movimento), inovação, invenção, descoberta, técnica e outros mais, palavras essas que pressupõem reflexões a partir de algo revelado ou prestes a sê-lo, em ebulição. Há muitas interpretações de palavras aparentemente distintas, mas que podem ter até aproximações em determinados significados. Chegam por vezes a ser sinônimos. Características de nosso rico vernáculo.

A obra de arte independeria do progresso, pois compreendê-la aceitando-se essa condição  implicaria que a próxima nessa linhagem, em princípio, será mais “avançada” do que a anterior. Haveria uma distância abissal a se pensar na comparação entre aquelas obras que permaneceram pela qualidade ou como testemunho da prática segura realizada e as que sucessivamente a história esteve a revelar, numa acumulação constante. Sob outra égide, se a obra de arte excedeu na qualidade milênios atrás, só poderia ter como parâmetro criações qualitativas realizadas através dos séculos. Não caberia, a meu ver, a aplicação do termo progresso.

Vale frisar que o progresso técnico, que levaria à reprodução da obra de arte em grande escala, inimaginável tempos atrás, traria conceitos outros quanto à criação artística. Processos visando à maior divulgação. A invenção da fotografia, o advento do cinema, a gravação, a multiplicação da arte pictórica através de tantos processos de reprodução, a evolução diária da internet,  estabeleceram conceitos questionáveis quanto à aura a que uma obra artística está sujeita. Walter Benjamin (1892-1940), em seu famoso ensaio “A obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936), fala-nos da perda da aura da obra de arte. O hic et nunc (aqui e agora) torna a obra original, inalienável, a autêntica e única detentora da aura, do sagrado. Martin Heidegger, (1889-1976) em seu não menos célebre ensaio, “A Origem da Obra de Arte”, observa a imanência que existe na obra de arte: “A experiência estética, tão invocada, não pode negligenciar a coisa que existe na obra de arte. Há a pedra no monumento, madeira na escultura sobre a madeira. No quadro, há a cor, nas obras da palavra e do som (poesia e música) há a sonoridade”. Heidegger comenta também que a obra de arte, transportada de seu lugar de origem para um museu, como exemplo, estaria deslocada e o mundo a que pertenceu, desmoronado. Numa visão material-obra conclusa, Saint-Exupéry (1900-1944) dirá em “Citadelle” que a pedra é apenas uma pedra, mas que a reunião delas (assemblage) ganharia sentido ao se converter em Templo (vide post “A Comunhão das Pedras – A Magia de Sint-Hilarius”, 03/05/2007). Sob outra égide,  Mario Vargas Llosa (1936- ) já não mais visita Bienais de Arte devido àquilo que considera um deboche ao conceito primordial de arte, não pela reprodução, mas pelo descompromisso com a essência do termo, arrivismo de autores a qualquer custo e banalização conceitual da arte na atualidade (“La Civilización del espectáculo”, 2012). Observações…

Estou a me lembrar de opinião de minha saudosa amiga, a notável gregorianista portuguesa Júlia de Almendra (1903-1992). Indaguei-lhe certa vez, ao manusear antifonário que estava sobre sua mesa, como ela situava os cantos lá contidos. Disse-me que aquele, em particular, era depositário de cantos gregorianos praticados em Portugal e que os considerava verdadeiras joias do gênero. Emocionava-se ao comentar apresentação desses cantos que fizera com coral no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa.  Poder-se-ia dizer o mesmo do “O Passionário Polifônico de Guimarães”, cuidadosamente estudado e publicado sob a orientação do Professor José Maria Pedrosa Cardoso (vide post sob o mesmo título de 23/11/2013). Sob o contexto da obra-prima mencionemos os Motetos de Guillaume de Machaut (séc. XIV), fugas do Cravo Bem Temperado e as Paixões de J.S. Bach (1685-1750), assim como algumas óperas de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), exemplos de criações que se perenizaram. Os dois últimos posts evidenciaram a importância do tratado de harmonia de Rameau (1722) e o impacto que suas teorias teriam doravante na composição. Da Idade Média ao presente, incontáveis aqueles que deixaram obras indeléveis. Pergunta poderia ser feita, melhores a cada período? Melhores não, diferentes sim, pois processos técnicos foram sendo acrescidos, propiciando aos compositores bafejados pelas musas sucessivas criações extraordinárias. Daqueles cantos gregorianos mencionados, percorrendo-se o longo caminho sonoro criativo, a determinadas criações mais recentes de Claude Debussy (1862-1918), Villa-Lobos (1887-1959), Dmitri Shostakovitch (1906-1975), Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Olivier Messiaen (1908-1992) e outros mais, podem-se selecionar obras esplêndidas.

Seria a incessante busca pelo Belo que não nos permitiria falar em progresso em arte se compararmos a arte pictórica pré-Renascença e aquela dos pintores renascentistas que dominaram a técnica, propiciando a noção da perspectiva que nos levou a apreender profundidades.

Policleto de Argos (460-410 a.C.) ao escrever seu notável tratado “O Cânone”, propõe regras precisas para a escultura na Grécia. Suas teorias relativas às proporções do corpo humano vigorariam através de milênios. Se a arte da escultura grega daquele século V a.C. tornou-se dogma durante 25 séculos, assim como a perspectiva  renascentista séculos afora, assistiu-se, mormente a partir do século XX, à descrença na infalibilidade dessas regras fixas. Não que pintores e escultores desconhecessem essas normas, mas pelo fato de que o caminhar da história das sociedades e do pensar levaram a essas posições. Se os gregos Fídias (490 – 430  a.C.), Policleto e Praxísteles (395-330 a.C.) esculpiram obras-primas, é também certo que Michelangelo  (1475-1564) e Rodin (1840-1917), entre tantos, também o fizeram, sendo que o escultor francês já encaminharia a arte escultural para a ruptura dos cânones. O mesmo ocorreria com a pintura a partir da segunda metade do século XIX. Todavia, nas obras pré-renascentistas, renascentistas, flamengas, românticas, impressionistas, expressionistas, cubistas e tantas mais tendências encontramos obras excelsas. Progresso? Diria mais novo olhar, novas técnicas, processos outros influenciados por uma infinidade de condicionamentos.

Sob outro prisma, o emprego do termo progresso para tantos avanços materiais pareceria correto. A ciência está plena de exemplos de aperfeiçoamentos, invenções, descobertas que levam à aplicação da palavra. Sem contar o emprego correto em outras áreas. Progresso poderia implicar o abandono de aparelhagem que se estiolou  com o passar do tempo. Voltaríamos  aos primeiros computadores gigantescos, lentos, tela escura, impossíveis para uso doméstico? Haveria o regresso aos celulares pesados, imprecisos? Seria possível entendermos hoje as comunicações, que tardavam a ser realizadas? Estou a me lembrar de que, no longo período que permaneci em Paris a estudar música, há mais de 50 anos, apenas não mais de cinco vezes consegui falar com meus pais pelo telefone em São Paulo. Programavam a chamada para 24 ou 48 horas e cruzava os dedos para que não surgisse algum problema de ordem técnica ou meteorológica. Trocávamos telegramas para que não houvesse distração, pois aquele breve contato telefônico era sagrado!!! Houve extraordinário progresso, mercê de invenções e descobertas, aperfeiçoamento dos materiais utilizados, abandonando-se o que ficou ultrapassado, peças de museus específicos ou sucata, simplesmente. E é justamente esse abandono que dimensionaria o progresso nessas áreas e em tantas outras, como a indústria automobilística, a aviação… Quanto à música por processos eletrônicos, preferiria aguardar a passagem do tempo, “infalível e insubornável”, segundo Guerra Junqueiro. Nestes últimos 50 anos assisti à glorificação, durante lustros ou décadas, de compositores e à bruma post-mortem ocultá-los inexoravelmente. O denominado work in progress, tão decantado na era da música com suporte tecnológico eletroacústico tem lá sua razão, pois nesse segmento há constante mutabilidade e processos hoje utilizados serão considerados jurássicos, por vezes em menos de uma década. A sucessiva troca de materiais mais recentes para esse fim não tenderia a evitar que a criação se sedimente da maneira que foi concebida? Entenderia que nessa área da música possamos empregar a palavra progresso.

Das obras de arte do Egito antigo às contemporâneas, do canto gregoriano ao presente, de Camões (1524-1580) a Fernando Pessoa (1888-1935) ou Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), sempre pairaria sobre inúmeras criações a aura da excelência, cultuadas pois ad aeternum.

A obra de arte, ao atingir essa qualificação, é testemunho de sua época. Única, fixada no tempo, ela contém a aura da imanência. A obra-prima na Arte é um milagre e a ideia do artista, que leva à criação, um mistério. Milagres não progridem, tampouco o mistério. Estando há tantas décadas na esfera da interpretação, a trajetória pela vida tem sido a do observador que, a cada criação musical, principalmente aquela que jamais ouvira e que me atrai pela inefabilidade, sente o estímulo que conduz à revelação. A razão de pouco frequentar, desde meus 40 anos, o repetitivo repertorial residiria na efêmera existência que me fez conhecer obras-primas do passado ao presente, mas que aponta a partir daquela época ao descortino de tantas criações excelsas, mantidas em silêncio por motivos tão complexos já ventilados ao longo de mais de sete anos neste espaço.

Is there progress in Art ? In this post I give my views on the subject, concluding that we may talk about progress in the advent of new techniques, new instruments, new media. In the Arts there are just changes, new art forms that are not worse or better than previous ones. They are different, but still a continuity from earlier generations. As for the masters of each historical period, time will tell.