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Considerações

Eu não falo evidentemente às crianças que são forçadas a aprender música,
mas àquelas cujos ouvidos são naturalmente atentos
a tudo que a vida tem de musical,
e que sonham com os ruídos da água, os ecos das músicas campestres,
as canções de ninar ou as cirandas.
Eu penso nessa vida interior não formulada
que é propriamente musical e que algumas crianças
reconhecem com espontaneidade em Mozart ou Debussy.
André Souris

É sempre prazeroso reencontrar amigos e conhecidos e trocar cordialidades ou ideias. Faz parte do convívio social. Jéssica frequenta a mesma feira-livre que há cerca de 20 anos me alegra aos sábados, pois a efervescência dessa atividade, cuja origem se perde na história, tem seu lado extraordinário. Casada, tem filhos pequenos. Disse-me que estava maravilhada, pois assistira pelo YouTube a uma menina de pouco mais de 10 anos tocando obras difíceis ao piano. “Como pode, meu amigo?” questionou-me. Sempre tive uma posição cautelosa quanto aos prodígios, mas apenas respondi que iria refletir sobre o tema e que sua pergunta estimulava-me a um post num futuro próximo. Passaram-se algumas semanas e o texto ora é publicado no blog. Como acontece, a maturação de um tema torna-se evidente durante meus treinamentos para as corridas de rua.

Tem-se de distinguir gênio e talento, dada a extrema raridade do primeiro atributo. W.A.Mozart (1756-1791) é a tipificação do gênio absoluto que, na infância, já compunha com maestria. A Música fez desfilar ao longo dos séculos pouquíssimos gênios compondo na precocidade. Na outra ponta, interpretação, há precocidades também geniais que comprovaram, durante a trajetória, que o termo estava apropriado. Entre muitos, poderíamos mencionar Wilhem Kempff (1895-1991), Claudio Arrau (1903-1991),  Georg Cziffra (1921-1994), Daniel Barenboim (1942-  ). O legado musical e a consequente leitura de seus livros evidenciam o absoluto domínio técnico-interpretativo desses pianistas ainda na infância e a presença de memórias prodigiosas. Essas qualidades inusitadas permaneceram, e a história reservou-lhes os lugares que eles fizeram por merecer.

Após a conversa com a amiga busquei na internet alguns dos inúmeros meninos prodígios. Presentemente o YouTube nos inunda com vídeos de precocidades, muitas delas originárias do Extremo Oriente. São crianças preferencialmente pianistas e violinistas, que exibem destreza invejável, proezas por vezes, chegando a causar impacto. Talentosos. Outros, nem tanto; e quantidade deles, sem comentários.

Estava a fazer elucubrações sobre o tema e lembrei-me de um precioso livro de João José Cochofel, “Opiniões com Data”, já mencionado em post bem anterior (12/05/2012). O autor, poeta, ensaísta e crítico musical português, posiciona-se em dois períodos, pois comenta, vinte anos após a redação de críticas selecionadas, suas posições, que nem sempre são concordantes com as de seu passado como articulista musical. Uma em particular chamou-me a atenção, justamente aquela a abordar a existência da denominada criança prodígio. Nessa, Cochofel aborda o retorno a Lisboa (Fevereiro de 1950) do menino prodígio Pierino Gamba, a fim de reger a Orquestra Sinfônica Nacional. ” O ‘caso’ Pierino não sofreu modificação do ano passado para cá, e o que então disse dele continua a aplicar-se-lhe por inteiro. Simplesmente o rapazinho vai crescendo, o sensacionalismo da sua precocidade deixa de ser um motivo de admiração, e acode-nos inevitavelmente esta pergunta: daqui a dois ou três anos, o que restará de uma infância lisonjeada até a idolatria, queimada no cabotinismo, explorada por um comercialismo repugnante? Será necessário que Pierino possua um excepcional estofo de artista para que saia incólume de tudo isso, pelo qual hoje não é responsável, mas que só por milagre deixará de agir na sua mentalidade, deformando-a, numa idade decisiva para a formação tanto física e psíquica como intelectual. Possuirá Pierino esse estofo? Não se tratará de um desses fugazes surtos, de certo modo vulgares nas crianças? Tudo parece indicar que não: o reflectido cuidado que põe nas interpretações, o começo de personalidade que lhes imprime e o labor que está por trás delas, a maneira como prepara a orquestra e que revela um sólido ofício”. Após outras considerações, o crítico conclui: “Só o futuro nos poderá elucidar”.

Em Março de 1965, Cochofel comenta: “E o futuro elucidou. Pierino deve andar agora pelos seus 26 anos. Largou a blusinha de gola e punhos rendados, largou os calções de veludo, largou o diminutivo do nome. Ficou um desconhecido”. Possivelmente por não estar a par da trajetória do maestro o autor tenha se equivocado, pois Piero Gamba (1936- ) desenvolveria uma sólida carreira, atuando até o presente frente a orquestras do maior renome. Não apenas é regente consagrado, mas professor e organizador de importantes atividades ligadas à música. Se Cochofel precipitou-se em sua conclusão, todavia sua apreciação sobre a existência da criança prodígio carrega enorme contributo, mormente ao discorrer sobre problemas que poderão advir do incenso ao talento precoce. “Mas que estragos não será capaz, antes do desabrochar de todas as faculdades, a má orientação, as medalhas que lhe põem no peito, os focos luminosos que acompanham, os livros e filmes biográficos ou pseudobiográficos que lhe consagram, enfim: toda a adulação de uma máquina de propaganda montada com todos os expedientes comerciais do tempo em que vivemos?” Estou a me lembrar da menina regente Giannella De Marco que, aos seis anos de idade, entusiasmou plateias brasileiras. Tinha eu doze anos em 1950 e fui ao Teatro Municipal vê-la reger. Causaria impacto. Ao crescer, outras foram as exigências da crítica e do público. Não resistiu. Tornou-se professora de piano do Conservatório de Roma. Evitava falar de seu passado de glórias na infância (http://www.vivaocharque.com.br/interativo/artigo07). Faleceu em 2010.

A minha reserva quanto à criança prodígio acentuou-se com a profusão desses miúdos na internet. Há realmente talento em tantos deles, por vezes em interpretações frente renomadas orquestras. Duas razões, uma da educação no lar e outra concernente à criação interpretativa, levam-me a questionamentos. Primeiramente, descoberto o talento, podem os pais, movidos pelas mais variadas razões, dedicarem-se a esse filho em particular, levando-o ao limite de um aprendizado? O caso da pianista norte americana Ruth Slenczynska (1925-  ) é exemplo. Apesar da carreira brilhante, lamentaria profunda e contundentemente a implacável fiscalização de seu pai desde os 3 anos de idade, quando começou a aprender piano. O crescimento harmonioso da criança se esvai e pais possessivos, aguardando o alentado sucesso, podem negligenciar o equilíbrio necessário à formação integral do miúdo, logo adolescente. E todo o mal está feito, talvez não intencionalmente. Uma segunda pergunta estaria ligada à interpretação. Por mais talentosa que seja a criança, haverá soberana a intenção do professor, entendendo-se que, para a realização acontecer, o mestre tem de ter qualidade comprovada. Teríamos, pois, o talento precoce à disposição das ideias competentes do professor. É um fato. Seria impossível uma criança na mais tenra idade compreender a essencialidade de uma fuga de J.S.Bach ou um tempo de Sonata de Beethoven, pois essa compreensão dar-se-á através dos anos, de estudos aprofundados e da experiência pianística. Tendo ouvido um sem número de crianças ao longo das décadas, mais me certifiquei dessas assertivas. Excepcional que seja a interpretação, impossível para um músico adulto não perceber determinadas inflexões da criança, pois, por mais que ela tenha o código a ela transmitido pelo mestre, haveria sempre essa presença espontânea, que é característica da idade infanto-juvenil. O prodígio sem o acompanhamento educativo harmonioso corre sério risco de estiolar-se. Quantas dessas crianças não abandonaram a música, já na juventude, por enfado? Interessa considerar que a maioria dos compositores e intérpretes de mérito não foram crianças prodígios, mas talentos embrionários que comprovaram, com o decantar das décadas, qualidades inalienáveis.

Reiteradas vezes inseri pensamento da lendária pianista e professora Marguerite Long: “Nada resiste ao trabalho”. Será através de disciplina, concentração, dedicação e ação amorosa durante toda a vida que o talento se desenvolverá com resultados. Para que essa trajetória seja harmoniosa e equilibrada, necessário será que o caminhar sereno e sem pressões já prepondere na infância, e que a música seja o principal objetivo, não o único, pois a cultura de um músico deve ser abrangente e não unilateral. Acrescente-se a importância da família nesse universo sonoro. Essencial.

With the web jam-packed with young geniuses showcasing their talents in different fields, I can’t help reflecting upon child prodigies and the reasons why so few fulfil early promises in adult life.

 


Considerações Relevantes

Na realidade, o único terreno de experiência
é o compositor no momento que está a compor,
e o único observador possível é esse mesmo compositor.
André Souris

Sempre que abordo um tema técnico de minha área, faço-o com prudência. Sei que para muitos leitores a abordagem pode se apresentar um pouco árida. Contudo, a não vinculação que sempre tive, desde o primeiro post de Março de 2007, com qualquer mídia de ampla divulgação escrita, falada ou de imagem, dá-me a possibilidade de “narrar” o meu cotidiano mental e transmiti-lo. Sendo a música uma das minhas prioridades temáticas, por vezes assunto mais teórico surge e, na medida do possível, busco “amenizá-lo” para os que me proporcionam, certamente, o estímulo maior para a continuação do pensamento-texto.

O post de 26 de Abril suscitou inúmeros posicionamentos a respeito do denominado sistema temperado de afinação. Séculos após sua sedimentação, há ainda o que se dizer a respeito. No texto em apreço concentrei-me nos instrumentos de teclado, mormente o piano, pois o substancioso artigo de Adolfo Salazar El Clave Temperado dava ensejo a essas observações.

O compositor e pensador francês François Servenière escreveu-me logo a seguir, ampliando o leque relativo à afinação. Expandiu observações, a considerar a orquestra igualmente e a magia da afinação diferenciada para os muitos instrumentos. Faz igualmente outros comentários sempre pertinentes e ricos. Transmito-os ao leitor com algumas semanas de atraso, devido a outros posts já agendados. Comenta:

“Precisamos voltar aos fundamentos da música e explicar os harmônicos de um denominado som fundamental, o que permite esclarecer o leigo sobre a questão…, assim como o que deriva dessa explicação. O temperamento é, como você bem demonstra, um progresso, mesmo se outros instrumentos  permitam todas as variações de altura e também da massa do som orquestral. O que torna rica uma orquestra é justamente a não exatidão do temperamento entre os diferentes grupos de instrumentos, suas qualidades e defeitos inerentes a cada executante e instrumento, os harmônicos próprios para cada material, o que demonstra a análise de Jean-Baptiste Fourier (1768-1830). É impressionante e antiperfeccionista, mas é fato. Diga-se, o ouvido dos instrumentistas não é o mesmo. Há diferença de escuta entre o intérprete de teclado que ouve com os dois ouvidos; aquele de instrumentos de cordas que pode escutar com um ou dois, a depender da dimensão do instrumento e sua posição sobre seu corpo; o executante de instrumentos de sopro que também trabalha com a ressonância de seu crânio; o cantor que fará vir de sua garganta e de seu ventre e que até pode ficar, por vezes, incomodado pela ressonância em seus ouvidos. Apesar da evolução da afinação através de séculos e milênios (http://home.scarlet.be/johan.broekaert3/Tuning_French.html ), haveria particularidades de interpretação das percepções de altura dos sons muito diferenciadas, o que é lógico. Isso pode ser sentido nos estilos de música e nas regiões onde são praticados. Alfred Tomatis colocou em evidência a diferença da altura do som e a problemática dos instrumentos em regiões úmidas, secas, ao nível do mar ou na altitude. A depender dessas circunstâncias, o som produzido não é o mesmo em função das proporções do gás utilizado (azoto, oxigênio…).

Sob outro aspecto, a eletroacústica e suas ilimitadas variações autorizam-nos a pensar que a música e suas cores são infinitamente variadas, como o são as cores do arco-íris, com nuances sem conta entre todos os tons. Ao mesmo tempo, pelas cores do céu a humanidade também definiu, a partir de Pitágoras, as cores fundamentais (amarelo, vermelho, azul), cores secundárias misturadas às primeiras e, enfim, todas as variedades de cores decorrentes de todas as misturas seguintes. Na música dá-se o mesmo. As cores fundamentais são o temperamento e seus 7 graus principais, etc…  Depois vêm os semitons, os sustenidos, os bemóis. Com todas as inversões potenciais decorrem a 7ª, a 9ª e a 11ª (Servenière se refere aos intervalos)… e, a partir daí, a serpente morde a cauda… Inútil irmos em direção ao microtonal, pois todas as cores potenciais estão presentes. Adicione a essa efervescência potencial as monstruosas variações naturais tonais dos instrumentos e das vozes e você terá o arco-íris de que falávamos acima. Não estaria evidente? Qual a razão de se querer recriar artificialmente, pela eletroacústica e o microtonal, uma situação que existe naturalmente pela acústica original e o temperamento, se este é utilizado com todas as suas potencialidades? O problema da música microtonal é que ela se diferencia pouco do arco-íris. Mostra-se tão vasta em cores, em nuances e em sons e tão pouco precisa em temperamento (em nossos idiomas essa palavra também designa caráter e personalidade), pois, paradoxalmente, ela não tem mais caráter, temperamento, tampouco personalidade. Eis a realidade acústica, semântica e simbólica. Quando você fala dos compositores eletroacústicos adeptos da última geração de instrumentos eletrônicos e vivendo de subvenções para as encomendas de obras que terão uma, quiçá duas apresentações, observei que eles funcionavam por vezes como fornecedores-testadores de softwares. Seria aproximadamente o caso do arquiteto que, ao utilizar um software de arquitetura, acabasse por trabalhar só com software. É o que se passou no IRCAM, como todos sabemos. Um pedreiro utiliza sua pá para fazer cimento. No dia em que essa pá passa a lhe interessar mais do que o muro a ser construído, seria melhor que ele mudasse de métier! Tive colegas que foram testadores de softwares e que, originalmente, foram músicos. Eis a armadilha da modernidade eletrônica. Esses passos sempre me foram estranhos. Escolhi os melhores softwares para que eles me ajudassem no plano prático, gráfico e sonoro. O importante é que a música estava dentro de mim. Como você, que escolhe para suas gravações os melhores instrumentos Steinway, que só existem a partir do aperfeiçoamento que vem do cravo, do pianoforte… Não sou criador de software, como você não é fabricante de piano. Em seu e-mail você escreve algo relevante em que eu também acredito. Na literatura, como na música, o alfabeto e a gramática não mudaram nada ou quase nada através dos séculos. Hoje, os ‘modernos contemporâneos’ gostariam de mudar a gramática e a ortografia, até o alfabeto. Imagine um pouco o ‘beco sem saída’ que representa esse projeto insano! Tentar a mudança das cores do planeta, seu alfabeto, suas línguas? Estamos realmente na Torre de Babel! Que pretensão desses falsos demiurgos? A pretensão maior vem quando eles explicam suas proezas intelectuais incríveis… na mais bela língua de Molière, de Shakespeare, de Goethe, de Camões, de Cervantes ou de Dante. Veja bem, eu acreditava que eles queriam mudar as cores do mundo, seu alfabeto, sua gramática, o próprio mundo. Pensei que gostariam de nos fazer passar da ‘obscuridade à luz’, nós, pobres ignorantes e cegos, como eles diziam. Ter-nos-iam mentido? Ideologia Mentirosa implica Duplicidade de Comportamento, implica Resultados Calamitosos. São fatos universais”. (tradução J.E.M.)

A periódica inserção de posições de François Servenière, que muito me honra com seus e-mails sempre provocadores, ajuda-nos a observar uma outra percepção, no caso do músico francês que está permanentemente a buscar na criação seu foco de vida.

My post of last April 26 was about the well-tempered tuning with focus on the keyboard. Now I transcribe François Servenière’s views on the tuning of various instruments, with worth reading comments about the electroacoustic music.

 

 


Compositor e Professor de Imenso Valor

A entidade musical apresenta pois,
essa estranha singularidade de conter dois aspectos,
de existir simultânea e distintamente
sob duas formas separadas uma da outra pelo silêncio do vazio.
Essa natureza particular da música
comanda a sua própria vida e suas repercussões na ordem  social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

A morte sempre causa impacto, seja de quem for. O desaparecimento de um músico da maior qualidade, com quem mantive relacionamento de amizade e musical, não deixa de ser sentida no âmago.

Conheci Mario Ficarelli nos anos 1950 e frequentamos a Academia Paulista de Música nos meados da década. Para o leitor, diria que a Academia teve entre seus docentes alguns dos mais competentes músicos, cujos nomes ultrapassaram fronteiras. Fato muito raro em São Paulo, seja em Conservatório ou em Universidade. Entre seus mestres, professores de altíssimo nível. O Brasil voltado à música clássica conhecia sobejamente todos os nomes que se seguem: Eleazar de Carvalho, José Kliass, Souza Lima, Caldeira Filho, Fritz Jank, Dinorah de Carvalho, Raul Laranjeira, Bernardo Federowsky, Jaime Ingram, entre outros mais. Uma verdadeira seleção de expoentes. Mario Ficarelli não apenas estudava composição, como exercia funções administrativas que o ajudaram a manter seus estudos. Num período em que a classe estudantil apenas pensava música, o convívio aluno-mestre tornou-se verdadeiro amálgama.

Estou a me lembrar de um verdadeiro companheirismo e aprendi, desde esse período, a admirar Ficarelli por suas posições firmes e dedicação exemplar à música. Antes de completar o curso recebi bolsa do governo francês, após premiação em concurso de piano em Salvador, e permaneci vários anos em Paris. Ao regressar ao Brasil, encontramo-nos em muitas oportunidades, sempre prazerosamente e, no início dos anos 1980, ao ingressar no Departamento de Música das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), partilhamos nossa vida acadêmica, que se prolongaria definitivamente na Universidade de São Paulo logo após.

Essa introdução se fez necessária, pois ligações de amizade de quase seis décadas merecem a lembrança. Mario (sem o acento agudo) foi um de nossos maiores nomes na composição brasileira. Teve a coragem, em período em que se “degladiavam” nacionalistas e vanguardistas, de não se filiar a nenhuma corrente e seguir um caminho seguro, o que levaria ao respeito nacional e, sobretudo, internacional. Sob outra égide, Ficarelli jamais negou a existência de seus eleitos. Entre eles, Jean Sibelius, Gustav Mahler, Igor Stravinsky. Debruçou-se sobre as sete sinfonias de Sibelius e defendeu magnífica tese de doutoramento na Universidade de São Paulo. Participei do júri. Logo após realizaria o concurso de Livre-Docência, a abordar sua Sinfonia nº 2, Mhatuhabh. Como compositor praticou uma linguagem de altíssima competência, a obedecer unicamente aos seus propósitos interiores.

O catálogo de Mario Ficarelli é extenso, a abranger mais de 150 obras para formações instrumentais as mais diversas, como sinfônica, cênica, vocal, coral e camerística. Sua obra deverá permanecer pela qualidade e independência.

Mario Ficarelli legou-nos uma bibliografia de síntese, conceitual. Há em seus escritos a necessidade de expor posições firmes e sinceras. Mestre ao abordar a elaboração de suas próprias criações, não escondendo os processos que levariam à definição de uma obra. Como professor, acredito ter sido um dos mais competentes entre os que conheci na Universidade de São Paulo, pois concentrava-se essencialmente na obra musical, analisando-a com acuidade e sem vacilos. Em suas aulas inexistia a palavra tergiversar e aqueles que tiveram o privilégio da formação segura sob seus cuidados são testemunhas. Inúmeras vezes conversamos sobre temas em que eu estava a trabalhar, como Rameau, Scriabine, Debussy, Henrique Oswald, música contemporânea. Por vezes éramos rodeados por alunos conscientes. Momentos para lembrar.

Nossa relação amistosa jamais teve um senão e recebi de Mario quatro peças para piano, tendo apresentado três delas em primeira audição. Pegadas na Areia (São Paulo 1983),  Minimal-Ciranda (São Paulo, 1987), Estudo nº 3 (Gent – Bélgica, 1996). Pegadas na Areia e Minimal-Ciranda integrariam cadernos que editei na USP em homenagem a Henrique Oswald (1985) e Villa-Lobos (1987), respectivamente. Essa última peça gravei-a posteriormente na Bulgária para o CD Music of Tribute, dedicado ao autor das Bachianas e lançado pelo selo Labor (USA). Sobre a peça, escreveu François Servenière (2011): “O minimalismo de Mario Ficarelli é impressionante, pois mesmo que a consideremos divertida, simples, repetitiva e cíclica, seu interesse reside nas ínfimas variações, que nos hipnotizam como uma serpente naja no instante do ataque”. Quanto ao Estudo nº 3, gravado na Bélgica para o CD Estudos Brasileiros para piano e lançado pela Academia Brasileira de Música, Servenière comenta: “No Estudo nº 3 há todo o potencial de dissonância da linguagem contemporânea. As harmonias são na realidade politonais e trabalham sob essa particularidade dos harmônicos característicos dos instrumentos de cordas. O final tem cadência mais tonal”. Paradigmas – Estudo nº 4 teve a première realizada por minha mulher, a pianista Regina Normanha Martins (Rio de Janeiro, 2001). A obra veio a integrar o álbum de Estudos para piano que elaboro desde 1985, dele a constar, presentemente, 90 colaborações do Brasil e do Exterior. Essa composição foi dedicada à minha saudosa mãe por ocasião de seu falecimento, em 1999. Mario sempre teve especial apreço pela homenageada. Segundo Ficarelli, a composição Paradigmas “evoca a morte e a ressurreição e foi escrita a partir de alguns de seus mais notáveis símbolos musicais, no entendimento do autor. Não se tratando de meras citações ou colagens, constituem-se em paradigmas que são ordenados de modo evolutivo a partir da morte, perpassando conflitos, vencendo-os, para chegar à vitória do renascimento”.

O nosso desligamento da Universidade de São Paulo pela compulsória, ele em 2005 e eu em 2008, levou-nos a comunicações mais raras, mas nunca desprovidas de afeto. Quando de minha eleição para ingresso na Academia Brasileira de Música, como membro honorário, em 2010, foi dele, membro efetivo imortal, uma carta que me emocionou.

O diálogo competente entre Mario Ficarelli e Roberto Duarte e a profunda amizade entre os dois, tendo a música como fulcro, levou-me a convidar o ilustre maestro para que escrevesse um depoimento sobre o compositor. Transcrevo-o ao prezado leitor:

O amigo-irmão Ficarelli

“Assim nos tratávamos, pelo sobrenome, sem que isto tivesse qualquer intenção de formalidade. Apenas hábito.

Ficarelli era um mestre por excelência. No latim ele encontrou o título para uma das suas mais interessantes obras, Transfigurationis, encomenda do Maestro Eleazar de Carvalho para a temporada de 1981 da OSESP. Tive a honra de regê-la em sua estreia mundial. Dois fatos curiosos (transformações) aconteceram à época dos ensaios e da apresentação da obra: 1. iniciava-se entre nós uma sólida amizade; 2. tornei-me vegetariano. Efeito da obra ou mera coincidência?

Desde Transfigurationis nota-se o cuidadoso uso da percussão, que para Ficarelli não era um mero acessório e sim parte integrante da ideia geradora da obra. Duas notas (fá-mi) são o ponto de partida. Correspondem ‘às duas frequencias que caracterizam a Terra’… ‘Kepler, em sua terceira lei, determina que os planetas produziriam determinados sons quando da realização de seus movimentos no espaço’, como explicava Ficarelli. Suas harmonias são ora audaciosas, ora simples, transitando do tonal ao atonal. A obra termina com uma simples e literal citação do primeiro tema da Nona Sinfonia de Beethoven.

A Segunda Sinfonia ‘Mhatuhabh’, inspirada no livro I nostri amici extraterreni, de G. Grosso e U. Sartorio, foi dedicada a mim e a Tonhalle-Orchester Zürich.

Sua estreia, sob minha direção, ocorreu em Zurique, em 1992, com a Tonhalle-Orchester.

Duas páginas, com detalhadas explicações sobre a elaboração dos temas, foram anexadas ao autógrafo, com a recomendação de só serem reveladas após a sua morte.

Mhatuhabh tem Introdução e cinco movimentos e segue um programa. Sua apresentação em todas as grandes salas em que a dirigi (Zurique, Moscou, São Paulo e Rio de Janeiro) recebeu do público os mais efusivos aplausos.

Na partitura ao concluir a Sinfonia Ficarelli escreveu:

A Terceira Sinfonia, escrita sob estipêndio da Fundação Vitae, foi composta em 1992, durante sua estada na Europa. Propositalmente diferente da Segunda, sem deixar de ter a força e a vitalidade características do compositor. Sua primeira audição só foi realizada em 1998 pela (nova) OSESP, sob minha regência.

Para Sinfonia, última produção sinfônica de Ficarelli, foi uma das obras comissionadas pela Funarte para a XX Bienal. Pouco depois de concluído o trabalho, em um jantar no Rio, acompanhado de sua adorada Silvia, ele me disse com aquele seu típico ar solene-brincalhão e voz empostada: ‘Duarte, espero que você seja o regente da Para Sinfonia, mas prepare-se para suar a camisa, pois é uma obra forte e muito dinâmica’. Quis o destino que eu realmente a regesse em outubro de 2013 no Theatro Municipal do RJ, à frente da Orquestra Petrobrás Sinfônica.

Na realidade a Para Sinfonia é uma sinfonia completa em três movimentos, executados sem interrupção. As características do compositor estão presentes em cada compasso: Ficarelli sem medo de ser ele mesmo, sem maiores audácias ou extravagâncias, mas com arrojo e a inteligência de sempre. Ritmos fortes, percussão ativa e linhas melódicas simples, mas eficazes, percorrem o movimento inicial. Na parte intermediária, com o coração voltado para o romantismo, o mestre é influenciado pelo Jazz, com um solo de piano e intervenções do Vibrafone, Trompete, Clarineta e Trombone solistas. A conclusão, como não poderia deixar de ser, é otimista, feérica e retumbante.

Um retrato, sem retoques, do próprio Ficarelli”!

No blog do dia 26 de Abril, ao referir-me a quatro compositores brasileiros vivos que admirava, mencionei: Gilberto Mendes, Mario Ficarelli, Ricardo Tacuchian e Paulo Costa Lima. Enviei a Mario o post em questão. Infelizmente não recebi resposta, pois Ficarelli travava sua última batalha.

Clique para ouvir, com José Eduardo Martins ao piano, as seguintes obras de Mario Ficarelli:

This post is a tribute to the outstanding Brazilian composer and my personal friend Mario Ficarelli, who passed away last May 2. Ficarelli left more than 150 works for solo instruments, symphonic orchestra and various ensembles and has been awarded prizes in Brazil, France and Germany. This post also includes words by the prominent Brazilian conductor Roberto Duarte, who was very close to Ficarelli and premiered many of his works.