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Permanecerá na história

A vida é muito curta para ser pequena.
É para os outros,
pelo esforço contínuo incansável que podemos engrandecê-la.
Disraeli

Nesse trágico período, confinado com minha mulher Regina desde meados de Março, fiquei a pensar se temas culturais devem continuar seu fluxo. Tão desprestigiada tem sido a cultura erudita que nela fixar-se não poderia soar elitismo, mormente escrevendo “protegido” do mal que aflige a humanidade? A quase absoluta atenção da mídia para com o COVID-19 e o espaço restante por ela reservado aos despropósitos das correntes políticas antagônicas – prioritariamente a tomar partido – fazem-me crer que os cerca de 5.000 acessos semanais aos meus escritos – migalhas frente a blogs de entretenimento de toda espécie – encorajam-me a prosseguir.

Tendo abordado uma série de grandes pianistas do passado, após recepção entusiasta por parte de leitores prosseguirei a fazê-lo. Essas excelsas figuras continuarão a desfilar neste espaço como um bálsamo para tantos confinados como nós.

Fixar-me-ei em Marguerite Long, pianista e professora francesa, hoje tratada como lendária por legião de intérpretes e outros músicos. Quando esteve em São Paulo, no segundo lustro da década de 1950, tocou, sob a regência do notável pianista e maestro João de Souza Lima (1898-1982), o Concerto para piano e orquestra  em sol maior de Ravel. No dizer do maestro em seu livro “Moto Perpétuo – a visão poética da vida através da música” (São Paulo, Ibrasa, 1982), “naquela noitada a grande artista executou de maneira incomparável o ‘Concerto em sol maior’ de Ravel, que aliás lhe é dedicado”. Mme Long ofereceu na oportunidade curso sobre técnica e interpretação pianística, tendo eu participado. Após a obtenção de prêmio no 1º Concurso Nacional da Bahia, em 1958, recebi bolsa do governo francês e, tão logo ciente da bolsa, meu saudoso Prof. José Kliass entrou em contato com Souza Lima, mercê de seu amplo trânsito com a pianista francesa. O maestro Souza Lima, ex-aluno de Mme Long, comenta no livro citado: “… José Eduardo Martins, para o qual levei o convite para desfrutar de uma bolsa de estudos na Europa, vindo da grande Marguerite Long e que faz uma arte séria, digna e autêntica”.  Em Paris, foram inúmeras as aulas em sua morada na Avenue de la Grande Armée, nº 16, e outras tantas apresentações nos cursos públicos, às terças-feiras, na Académie Marguerite Long.

Da legião enorme de pianistas que atravessaram basicamente dois séculos, número restrito de excelsos pianistas permaneceram, sobretudo após o invento da gravação no início do século XX. O ilustre compositor e saudoso amigo Francisco Mignone (1897-1986) já observava que “há algo de interessante no concertista; quando ele desaparece, automaticamente desaparece o trabalho que ele fez neste efêmero período de tempo. O concertista muito raramente é lembrado, ao passo que o compositor é diferente na medida em que ele deixa uma obra. É um patrimônio eterno que ele deixa para a Pátria” (São Paulo, Revista Interview, Maio, 1982). Razões tem Mignone e o YouTube, como exemplo, traz a evidência de diferenças claras de acessos aos luminares de antanho se comparados com alguns intérpretes bem mediáticos, estes, por vezes, com quantidade de acessos próxima aos da música pop.

Dos pianistas que são lembrados na história da interpretação, alguns desenvolveram atividades afins, como composição, edições comentadas, livros de conteúdo musical ou autobiográfico. Ferrucio Busoni, Arthur Schnabel, Arthur Rubinstein, Alfred Cortot, Georgy Cziffra, Andór Foldes e outros mais são exemplos.

O caso Marguerite Long é singular. Como pianista, seu nome já estaria entre os notáveis intérpretes franceses do século XX, muitos deles eméritos professores.

Clique para ouvir a Arabesque nº 1 de Debussy na interpretação de Marguerite Long. Gravação de 1930:

https://www.youtube.com/watch?v=VzhaPbVlZGQ

 

A singularidade de Marguerite Long vem dos contatos intensos com os maiores compositores franceses do último século e meio, Saint-Saens, Gabriel Fauré, Claude Debussy e Maurice Ravel, mormente com os três últimos. Ter privado em alto nível da amizade desses luminares da música e ter sido dedicatária do 4º Impromptu de Fauré, do Concerto em sol maior de Ravel — apresentou-o em primeira audição mundial aos 14 de Janeiro de 1932 sob a regência do autor —, de Études de Roger Ducasse -, de Navarra, do compositor espanhol Isaac Albéniz, colocam-na em posição especial no panteão dos grandes intérpretes. Em primeira audição, entre outras obras de Debussy que, em carta a seu editor Jacques Durand, escrevia “…Madame Long qui joue si bien du piano” (1917), apresentaria os Études pour les cinc doigts e pour les arpèges composés, 1º e 11º, respectivamente. Quanto à Fantaisie para piano e orquestra, esta foi apresentada pela pianista 18 dias após a première oferecida por Alfred Cortot em 1919, pouco mais de um ano após a morte do compositor. Em 1917, no Chalet Habas em ST-Jean-de-Luz, durante dois meses teve aconselhamentos esparsos de Debussy relacionados aos seus 12 Études e aos dois cadernos de Images. Estrearia Le Tombeau de Couperin para piano solo de Ravel, coletânea constituída por seis peças, sendo a última, Toccata, dedicada ao marido de Marguerite Long de Marliave, capitão Joseph de Marliave, abatido na batalha de Spincourt em 1914, início da 1ª Grande Guerra. Faria a estreia da Ballade de Fauré em 1907 — versão para piano e orquestra – com D.H. Inghelbrecht na regência. Tive o privilégio de assistir à última apresentação pública da Marguerite Long, que se deu aos 3 de Fevereiro de 1959, tendo como regente o próprio Inghelbrecht. Ao findar a execução da Ballade de Fauré, milhares de pétalas de rosas foram jogadas no palco vindas das galerias do Théatre des Champs-Elysées.

Clique para ouvir o Impromptu nº 2 op. 31 de Fauré na interpretação de Marguerite Long:

https://www.youtube.com/watch?v=bz7TREqNiFs

Neste espaço, há anos comento a respeito da tradição. É ela o fio condutor que norteia diretrizes interpretativas através dos tempos. Ter estudado com Marguerite Long algumas obras essenciais de seu acervo pianístico, com anotações da mestra em minhas partituras, serviu-me de guia seguro do repertório francês a que se dedicou, mercê de ter ela presenciado o day after da criação dos três nomes maiores da composição da França no período, assim como de outros compositores do período. Seria lógico supor que, mesmo já idosa, o que teria certamente alterado determinadas recordações, a estrutura básica dessa apreensão das 0bras de Fauré, Debussy e Ravel manteve-se eficaz.

No próximo post abordarei os três livros de Marguerite Long consagrados à tríade de compositores, assim como seu método “Le Piano”.

In this post I write about Marguerite Long, French pianist and teacher, a legend in her own time. She was one of the most important pianists in France in the first half of the 20th century, but her rather unique position comes from intense contacts with gigantic French composers like Saint-Saens, Fauré, Debussy and Ravel. Fauré, Ravel, Albéniz and Ducasse dedicated works to her. Thanks to a scholarship granted by the French government, I have been lucky to study during three years with her, a sure guide to learn and respect the French classical piano tradition.

Quando um acontecimento permanece ao longo da existência

A virtuosidade é enobrecida, ou melhor, desaparece,
para não ser senão música,
o que significa uma virtuosidade superior.
Yvonne Lefébure (1898-1986)
(depoimento sobre Alfred Cortot)

Ele tocava Schumann como ninguém,
absolutamente divino.

Vladimir Horowitz

Consagrado no mundo inteiro, reverenciado por suas interpretações personalíssimas dos românticos, mormente Chopin, Schumann e Liszt, assim como dos franceses Fauré, Debussy e Ravel, Alfred Cortot, quando em viagem ao Brasil no início dos anos 1950, despertou interesse inusitado. Naqueles tempos do pós-guerra, os grandes mestres que nos visitavam já haviam transposto a sétima década. Para nossa geração, Alfred Cortot era uma dessas lendas que prosseguiam a encantar um público já habituado a ouvir os denominados “monstros sagrados”. O notável pianista franco-suiço nasceu em Nyon na Suiça.

O ilustre pianista quando em São Paulo para recital, ouviu-nos antes de seu ensaio, mercê da intercessão do Presidente da Comunidade Francesa do Rio de Janeiro, Monsieur Yves Mainguy, amigo de meu pai. Foi em uma manhã. Tínhamos, João Carlos e eu, 11 e 13 anos, respectivamente. Quis ouvir-nos interpretar duas obras cada um. Ao final, apenas uma despedida formal e voltamos à rotina de estudos. Dias após, Monsieur Mainguy recebeu carta do insigne pianista datada de 12 de Fevereiro de 1952, reenviando-a ao meu pai. Na adolescência as dúvidas quanto ao futuro são muitas, a não ser que fato singular, aliado à vocação imperiosa, torne-se guia pela vida. Sempre que períodos de incertezas durante a juventude surgiam, a carta de Alfred Cortot era-me um farol a indicar o destino. Um parágrafo do notável músico me foi decisivo: “Malgrado minha repugnância, ou talvez malgrado meus escrúpulos em envolver os pais para que dois jovens membros de uma mesma família abracem uma carreira da qual conheço todas as dificuldades atuais, fiquei muito impressionado com os dons evidentes dos dois jovens pianistas, estimulando M. e Mme da Silva Martins a fazê-los prosseguir seus estudos em Paris, no momento que julgarem oportuno”. Guardo o manuscrito autógrafo como relíquia preciosa. Após láurea no Iº Concurso Nacional da Bahia (1958) e consequente bolsa do governo francês, permaneci anos em Paris prosseguindo estudos.

Apesar de adolescente, lembro-me de seu recital em São Paulo e ficou-me na memória a sonoridade inefável que extraía do piano do Cultura Artística. Nenhum malabarismo, nenhum excesso, tampouco gestual. E tudo lá estava. Décadas distantes da atual civilização do espetáculo.

Suas gravações, em LPs que ouvíamos à exaustão, traduziam flexibilidade singular da frase musical. Harold Shonberg sintetiza dados concernentes à interpretação de Cortot, comentando não apenas as qualidades (“The Great pianists”, 1963): “Cortot cometia erros e por vezes tinha falhas de memória, problemas para um pianista de menor envergadura. Em relação a Cortot, essas falhas não tinham importância. O público as aceitava como se aceitam cicatrizes ou defeitos de um quadro de um dos antigos mestres da pintura. Pois, apesar desses equívocos, era óbvio que Cortot possuía uma grande técnica e era capaz de qualquer tipo de fogo de artifício quando a música assim o exigia, como se torna evidente na fabulosa gravação da Rapsódia Húngara nº 11, de Liszt. Como artista interpretativo, foi uma das mentes mais capazes de sua época. Em sua execução havia a combinação de autoridade intelectual, aristocracia, virilidade e poesia”.

Clique para ouvir a gravação, datada de 1925, da Rapsódia nº 11, de Liszt, na interpretação de Alfred Cortot:

https://www.youtube.com/watch?v=TSDhxxB_IyQ

Um grande mestre do piano, mas também excelso professor, conferencista, regente, camerista e literato com inúmeras obras sobre música. Suas edições de trabalho de inúmeras composições do período romântico são extraordinárias, pois penetram no universo poético e imaginário tantas vezes insondável para o intérprete.

Nesse aspecto, tão fulcral para o entendimento de uma partitura sob todos os ângulos possíveis, se a edição URTEXT, fundamental para que a leitura de uma partitura não transgrida o que está proposto pelo compositor, a edição comentada por mestres das dimensões de Alfred Cortot (Chopin, Schumann, Liszt), Arthur Schnabel (Sonatas de Beethoven), Ferrucio Busoni (J.S.Bach), como exemplos, recria a essência criativa, imaginária, espiritual, poética e, mesmo que por vezes o pensamento do revisor-editor estabeleça contornos outros no sentido de impedir uma execução apenas linear, essa percepção extramusical estimula o voo sereno e seguro da execução. Quantas gerações não sorveram essas “viagens” desses grandes mestres? As obras comentadas por esses três luminares do piano foram e continuam faróis sempre revisitados. Como não apreender a mensagem de Cortot ao passar a uma aluna sua visão de O poeta fala, última das peças das Cenas Infantis, de Schumann?

https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=aWr36hIgIuU

Chopin foi um de seus eleitos e suas gravações, mesmo as quase centenárias, são ainda hoje referências. Clique para ouvir a Fantaisie Impromptu op. 66 de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=7Chn0qYtpkM

Nos diálogos com o crítico musical de Le Figaro, Bernard Gavoty (“Alfred Cortot – Les Grands Interprètes”, texto de Bernard Gavoty. Genève-Monaco, René Kister, 1953), o entrevistador colhe determinadas frases incisivas do pianista. Perguntado sobre seus mestres, revela-os, mas ressalta dois momentos decisivos. Ao tocar, nos seus 15 anos, a Sonata Appassionata, de Beethoven, para o grande pianista russo Anton Rubinstein (1830-1894), mercê da intercessão de seu mestre Louis Diémer (1843-1919), recebe daquele a seguinte observação: “Beethoven não se toca, reinventa-se”. Cortot diz a Gavoty que a frase o salvara para toda a vida. Gavoty insiste: “Rubinstein o liberava de um escrúpulo?”, ouvindo de Cortot: “Em presença de uma obra-prima, há duas atitudes: respeito ou violação. Tocar segundo o desejo do autor, ou na tradição de seus alunos, o que isso significa? O que é necessário é dar curso à imaginação, recriar, fazer reviver a obra. Interpretar é isso…”. Uma segunda frase jamais esquecida pelo pianista. Dias após a morte de Claude Debussy, a viúva Emma convida Cortot para lhe tocar os Préludes de seu marido. A filha do casal ouviu atentamente e, ao final, Cortot pergunta à Chouchou (Claude-Emma) se era assim que seu pai tocava, recebendo como resposta da menina: “Oh! Não, papai escutava preferencialmente”. O pianista, intérprete das obras de Debussy e seu amigo, lembrar-se-ia de frase do compositor “… as lições do vento que passa e nos conta a história do mundo…” Uma jocosa resposta a Bernard Gavoty revela que, apesar de ter sido pianista excelso, tem certo “desprezo” pelos apenas virtuoses: “Não me fale dos virtuoses! São muitos – e tão pouca coisa… Fazem-me pensar nos galos…Os infelizes acreditam que basta um cocorico para que surja o sol”.

Bernard Gavoty entrevistou Alfred Cortot em 1953. Uma sua opinião, passados quase setenta anos, soa perene: “Maneira única de interrogar o teclado, de emocionar um aparelho composto de cordas e martelos, destinado pois à secura, esse dom de fazer cantar aquilo que deve soar, esse arco invisível, esses traços multicoloridos, esses acordes de veludo, essa neve em flocos… – o milagre de Cortot é que o piano cessa de ser piano!” Como camerista integrou um dos mais importantes trios da história: Alfred Cortot (piano), Jacques Thibault (violino) e Pablo Casals (violoncelo).

 

Em 1952, Alfred Cortot, após tournée pelo Japão, recebeu da imperatriz uma ilha de presente, Cortoshima. O ilustre agraciado soube do significado em japonês: “Solitário na ilha dos sonhos”.

In this post I write about the Franco-Swiss pianist Alfred Cortot (1877-1962), world-renowned for his very personal interpretation of Romantic composers such as Chopin, Schumann and Liszt, as well as the French Fauré, Debussy and Ravel. His visit to Brazil in the early fifties stirred vivid interest. On that occasion, my brother and I, then 11 and 13, had a chance to play for him, who wrote an encouraging letter shortly afterwards. Pianist, chamber music player, conductor, teacher and writer of valuable books on musical interpretation, Cortot knew how to extract unusual sonorities of his instrument without unnecessary gestures and grimaces, a kind of piano playing that is disappearing. In spite of memory lapses and clinkers in later years, he was one of the most celebrated classical musicians of the 20th century. To date his Chopin recordings are considered essential. I have kept his handwritten letter as a precious relic, a beacon showing me the way in moments of doubt.

 

O piloto-escritor por vocação imperiosa

Refiz todos os meus cálculos.
Nossa ideia é irrealizável.
Não nos resta outra coisa a fazer,
Realizá-las.
Pierre-Georges Latécoère
(fundador das Lignes Aériennes Latécoère)

Nesse segundo comentário do livro em apreço abordarei as duas atividades mais imperativas na breve existência de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Amalgamadas sem a menor possibilidade de separação, literatura e aviação fazem parte de uma maneira única de entender o mundo em que vivemos ou o universo. Essa premissa leva-nos ao O Pequeno Príncipe em seu asteroide, o mais breve dos livros de Saint-Exupéry, mas o que granjearia o maior alcance. Vislumbre estelar imaginário, passível de acalantar os almejos mais recônditos do autor.

A trajetória de Saint-Exupéry voltada à aviação remonta aos seus doze anos de idade, quando, contrariando sua mãe, reiteradas vezes vai ao campo de pouso de pequenos aeroplanos de madeira e tela em Ambérieu. Dizendo-se autorizado por sua mãe, pela primeira vez voa num avião pilotado por Gabriel Wroblewski-Salvez. O maravilhamento da “aventura” seria a origem do fascínio que o seduziria por toda a vida.

Em Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, a autora Nathalie des Vallières fixa datas precisas para o envolvimento de seu tio-avô. Vemo-lo, a partir de 1921 até a morte em 1944, basicamente engajado com a aeronáutica, como piloto e, por vezes, como dirigente. Como aviador, naqueles tempos ainda precários em termos de segurança, Saint-Exupéry sofreria vários acidentes, alguns graves. Em 1933 quase se afoga após aterrissar mal. Seria em 1935 a queda que o teria influenciado de maneira mais marcante, quando, ao tentar bater o recorde Paris-Saigon, cai com seu amigo e piloto André Prévot no deserto da Líbia. Já em 1938, ao buscar o recorde Nova-York–Terra do Fogo, sofre queda na Guatemala, ficando gravemente ferido. Em 1940 participa, pela primeira vez como piloto, da Segunda Grande Guerra, sendo atingido pela artilharia antiaérea alemã. Ao todo seriam sete acidentes, o último fatal. Poder-se-ia entender esse número como “antecipações” de progressiva “atração” pela mors certa hora incerta. Corrobora esse desenrolar a morte constante de seus amigos e companheiros.

Presente nos romances e em Citadelle, a imensidão do deserto terá forte impressão no autor. Convidado em Outubro de 1927 para a chefia do aeroporto de Cap Juby (Mauritânia), permanecerá no enclave durante um ano e meio e o convívio com o deserto ser-lhe-á vital. Durante esse período, as poucas distrações, como o xadrez, ajudam-no nas longas horas de silêncio. Período de reflexão e da compreensão da condição do homem. Acidentes aéreos no deserto e a missão de salvar companheiros vítimas de quedas e aterrissagens forçadas, ter a índole do congraçamento e dar-se amistosamente com beduínos, chegando a frequentá-los em suas tendas, escrever cercado pela imensidão do Sahara corroboram o comprometimento amoroso com o ambiente. O acidente mencionado de 1935 é relatado: “O deserto? Abordei-o um certo dia pelo coração. Durante voo em direção à Indochina, fui parar no Egito, nos confins da Líbia, preso nas areias como uma cola e pensei que iria morrer”. Estava em companhia de seu mecânico André Prevot. Durante três dias caminham sem rumo certo, sendo encontrados em estado lastimável por um beduíno. Em Terre des Hommes há a narrativa da quase tragédia. O deserto fá-lo pensar na solidão, na morte e no silêncio: “Um silêncio não se parece com outro silêncio”. Ao deixar Cap Juby sente-se aliviado.

Carta ao amigo Charles Sallés corrobora a admiração de Saint-Exupéry pelo ofício, mas também pela imensidão do deserto e pelos mouros.

“Meu velho amigo, coloque sobre a conta do clima, de uma imperdoável preguiça, de uma impossibilidade de compreender ainda tudo o que há de novo – este silêncio vergonhoso! Escrevi-lhe três ou quatro vezes e minhas cartas não seguiram. Tentava-lhe explicar e não conseguia. É algo maravilhoso e bizarro ao mesmo tempo. A cada voo dos correios, piloto dois mil quilômetros no Sahara para ir, dois mil para voltar. Milhares sobre tribos dissidentes. Imagine essa areia, sempre essa areia. E já passei uma noite, em pane, numa pequena fortaleza isolada. Amo esse isolamento, mas não sei defini-lo. E as tribos mouras e suas fisionomias me encantam. Contar-lhe-ei tudo um dia”.

Considere-se o companheirismo. Saint-Exupéry  teve-o nas figuras, alguma notáveis, ligadas à pilotagem e à navegação da Aéropostale, sucessora da Lignes Aériennes Latécoère. Verdadeiros heróis da aviação, desde a Primeira Grande Guerra tantos deles sucumbiram precocemente em acidentes. Entre eles: Jean Mermoz (1901-1936), a figura mais emblemática da história da aviação francesa; Henry Guillaumet (1902-1940), imortalizado em Terre des Hommes. Saint-Exupéry relata a epopeia do amigo que, após acidente nos Andes, caminharia durante vários dias, moribundo, até ser encontrado. Frase de Guillaumet ao piloto-escritor: “O que eu fiz, eu juro, nenhum animal teria feito”. Ao morrer Guillaumet, Saint-Exupéry se expressa: “Guillaumet morreu. Tenho a impressão de ter perdido meu melhor amigo”. Alguns outros pilotos da Aéropostale mortos tragicamente: Jean Chamsaur (1896-1931); Alexandre Collenot (1902-1936); Germain de Laguerie (1897-1930); Henry Lemaître (1894-1935); Gaston Génin (1901-1936); Marcel Reine (1901-1940); Henri Érable (1903-1936) e Léopold Gourp (1900-1926), aprisionados e mortos pelos mouros. Tantos outros sofreram quedas, mercê em parte do pioneirismo.

O pressentimento da morte se acentua ao assistir ao desenlace de amigos e colegas. Aos 30 de Julho de 1944, um dia antes de seu desaparecimento, escreve ao amigo Pierre Daloz carta que, segundo a autora de Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, Nathalie des Vallières, faz dessa missiva um testamento. Após saudações, o piloto-escritor escreve: “Faço a guerra o mais profundamente possível. Certamente sou o decano entre os pilotos de guerra do mundo. O limite de idade é de trinta anos pilotando o tipo de avião de um só lugar que eu piloto. Outro dia tive  pane de um motor a 10.000 metros de altitude sobre Annency, na exata hora em que completava quarenta e quatro anos! Enquanto sobrevoava os Alpes com a velocidade de uma tartaruga, à mercê dos caças alemães, divertia-me docemente pensando nos superpatriotas que proíbem meus livros na África do Norte. Tem graça.

Conheci tudo desde meu retorno à esquadrilha (esse retorno é um milagre). Conheci a pane, o desfalecimento pela falta de oxigênio, a perseguição dos caças inimigos e também o incêndio em voo. Não estou exagerando e me sinto muito saudável. É minha única satisfação! E também de passear, só o avião e sozinho a bordo, durante horas, sobre a França, a tirar fotografias. Tudo isso é estranho.

Aqui, estamos longe do banho de ódio, mas apesar da gentileza da esquadrilha, assim mesmo sinto tudo como um pouco da miséria humana. Não tenho ninguém, jamais, com quem convesar. No entanto, já é alguma coisa ter com quem viver. Mas, que solidão espiritual!

Se eu for abatido, não lamentarei absolutamente nada. O formigueiro futuro me espanta. E eu detesto seu aspecto robotizado. Fui feito para ser jardineiro”.

No dia 31 de Julho de 1944, o Journal de marche (da divisão 2/33 à qual Saint-Exupéry pertencia) comunicava: “Um triste acontecimento acaba de manchar a alegria que todos sentiam com a aproximação da vitória. O comandante Saint-Exupéry não regressou. Saiu às 9 horas para a Savóia, a pilotar o 223. Não regressou até às 13 horas. Os chamados pelo rádio ficaram sem resposta e os radares alertados o procuraram em vão, às 14 h 30 não havia mais esperanças de que ele pudesse estar voando”.

Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, carinhosa e criteriosamente escrito pela sua sobrinha-neta, Nathalie des Vallières, através de rica documentação faz com que o leitor compreenda as várias virtudes do notável piloto-escritor.

Seus livros Courrier Sud (1929), Vol de Nuit (1931), Terre des Hommes (1939) e Pilote de Guerre (1942) evidenciam a sublimação do homem diante de uma das mais fatídicas profissões do período, seja como piloto a transportar correspondências e atravessando oceanos e continentes, seja durante as duas Grandes Guerras, quando a morte estrava sempre à espreita. No pós-guerra, os avanços tecnológicos, tornando a aviação muitíssimo mais segura, apenas dimensionam a naturalidade e coragem com que os pilotos de outrora, heróis na acepção, enfrentavam o destino.

This is the second post about the book  “Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry” (published in English with the title “Saint Exupéry: Art, Writings and Musings”), a collection of letters, drawings, photos and private notebooks of the French writer and aviator (1900-1944) assembled with adoring reverence by his great-niece, the art historian Nathalie des Vallières. Each chapter covers one aspect of Saint-Exupéry’s life: childhood, friendships, relationship with mother, wife and other women, the inventor with many patents to his name, his passion for writing, drawing, flying, his participation in the war, his thoughts about death. One entire chapter is dedicated to Saint-Exupéry’s affectionate correspondence with his mother, extending from childhood to 1944, the year of his death. Another chapter addresses the various women of his life: wife, sisters, friends, romantic liaisons.  A beautiful and richly illustrated edition with reproductions of Saint-Exupéry’s original manuscripts and drawings, in special the omnipresent sketches of “The Little Prince”, maybe an alter ego of the author, the book provides valuable information about life and thoughts of an extraordinary artist and human being.