Instigante CD de Maury Buchala

A entidade musical apresenta estranha singularidade de revestir dois aspectos,
de existir passo a passo e distintamente sob duas formas
separadas uma da outra pelo silêncio do vazio.
Essa natureza particular da música conduz sua vida própria
e sua atuação na ordem social,
pois ela supõe duas categorias de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

O que é verdadeiramente tradicional é a invenção do futuro.
Agostinho da Silva

Em dois blogs abordei a figura do compositor, pianista e regente Maury Buchala (vide blogs “Concerto para público não convencional” e “Ecos de…”. 12/08 e 19/08/2017, respectivamente). Maury Buchala mora há décadas em Paris e, mais recentemente, tem visitado o Brasil com certa constância para reger concertos sob a égide do Serviço Social do Comércio (SESC). Comentara nos blogs mencionados o CD “Portrait” unicamente com suas obras, mas só recentemente tive o grato prazer de ouvi-lo inteiramente mais de uma vez.

Nos textos anteriores trato do perfil de Maury Buchala, um de meus ex-alunos mais brilhantes na Universidade de São Paulo (década de 1980) e que atenderia, através de carreira consolidada, àquilo que sempre foi o meu único desiderato, formar o músico e não apenas o pianista. Maury expandiu  sua visão musical e do mundo e hoje é uma realidade inquestionável.

As obras constantes do CD “Portrait” foram gravadas em Paris no ano de 2015 por um dos mais renomados conjuntos de música contemporânea da Europa, o Ensemble Court-Circuit. As quatro faixas de “Portrait” ratificam a criatividade e o virtuosismo escritural de Maury, mercê do talento e da formação sólida que adquiriu em Paris. Torna-se essencial transcrever o curto texto introdutório do grande compositor e saudoso amigo Gilberto Mendes (1922-2016) ao apresentar o CD:

“Maury Buchala, de uma nova geração de compositores brasileiros pós Manifesto Música Nova, define-se hoje alinhando-se definitivamente com os compositores que no momento levam o estruturalismo ‘neue Musik’ às últimas consequências de complexidade formal.

Sua música é vigorosa e surpreendente em sua meticulosa organização. Maury vive em Paris, o que pode explicar em parte a direção musical que sua música tomou, de extrema, implacável preocupação com o som, sua forma, construção minuciosa em seus mínimos detalhes, dentro de uma tradição europeia que vem de Webern até Pierre Boulez.

Impressionante seu domínio absoluto da construção do som violinístico, da linguagem mais nova destes últimos tempos, o que poderá ser ouvido e constatado nesta cuidadosíssima interpretação do grupo parisiense Court Circuit”.

As obras que integram “Portrait” evidenciam pleno domínio da escritura instrumental por parte de Buchala. Não se descarte impressão que permanece de “lembranças” de sons eletrônicos, tantas são as incursões do autor no ambiente sonoro amplamente desenvolvido nas últimas décadas, nesse caminho empreendido por compositores oriundos das várias Escolas especializadas acima do Equador. Recordo-me de entrevista que realizei em 1989 com o notável compositor mexicano Mario Lavista (1943- ) para a “Revista Música” da USP (Maio 1990), da qual fui editor durante 17 anos. Mantivemos conversa a respeito de sua composição  Reflejos para quarteto de cordas, obra que  provoca essa “impressão” de permanência nos sons eletrônicos, pois na década de 1970 Lavista já buscava explorar possibilidades novas para os instrumentos tradicionais, mormente, no caso específico de Reflejos, criação que evidencia verdadeira incursão no universo dos harmônicos. O campo dos harmônicos estendendo-se à massa instrumental é ilimitado. Para Maury, como observaria em recente mensagem que recebi: “Meu material harmônico tem origem em Schoenberg, sobretudo nas Variações opus 31, onde o direcionamento do som ou harmonia é bem inesperado, vejo esta obra como uma pintura abstrata. Esta peça de Schoenberg é uma referência para mim, me fez entender a direcionalidade que desejava instaurar na minha música”. Com prazer verifico, quase trinta anos após a entrevista com o grande compositor Mario Lavista, que a  preocupação de Buchala, apesar de direcionada diferentemente, preocupa-se com a acústica dos instrumentos, sendo o Concerto para violino e conjunto orquestral prova inconteste, tanto na parte reservada ao solista como nas outras, destinadas aos músicos do “Ensemble Court Circuit”. Em diálogo internético recente, Maury informou-me que  “As pesquisas na música eletrônica ou sons eletrônicos tiveram uma influência muito grande no desenvolvimento da minha escrita musical e, por consequência, na construção das texturas. Um outro dado muito importante foi a pesquisa da direção harmônica ou do som, o direcional que faz com que a gente perca a previsão do caminho esperado. Sem este dado (direcional na construção harmônica), minha música ficaria, acredito, muito convencional”. Creio ser essa postura essencial do compositor atento e que se aprofunda nesse campo inesgotável, o som. Claude Debussy (1862-1918), um dos maiores compositores de todos os tempos, já não afirmaria em carta a Bernardo Molinari (06/10/1915):  “Que beleza há na música ‘apenas ela’, sem parti pris”. Questiona  se “o total de emoção que ela contém pode ser encontrado em qualquer outra arte”, finalizando com contundência: “estamos ainda na ‘marche harmonique‘ e raros são aqueles a quem basta a beleza do som”. Ao leitor não músico diria que “marche harmonique” corresponde à repetição de um acorde, como exemplo, em “degraus” ascendentes ou descendentes obedecendo a uma sequência regular.

Eindrücke para violoncelo solo (2007), na interpretação de Alexis Descharmes, abre o CD. A criação apresenta-se como uma série de fragmentos ou motivos que lhe conferem unidade. Obra de dificuldade por vezes acrobática, alterna motivos diversos, líricos e virtuosísticos, que “aparentemente” se interligam.

Tre espressioni, para trio de cordas (2010), evidencia a impressão digital da obra anterior. Contudo, há amplificação que se dá na textura, quando procedimentos inusitados estão criteriosamente inseridos na escrita para as cordas. Considere-se o emprego dos sons tradicionais e de outros novos, e que recebem explicação do autor: “Chamo de sons reais (com altura fixa e mais tradicionais) e virtuais (sem altura fixa, os novos sons)”. Sob outra égide, não poderíamos considerar as Tre espressoni como um tríptico de Estudos para as cordas?

O termo Partita foi utilizado no século XVIII para também designar Suíte.  J.S.Bach é exemplo nessa designação. Trata-se da reunião de várias peças formando um conjunto, geralmente de danças contrastantes. Maury Buchala, ao compor a Partita para piano, trio de cordas e flautim / flauta baixo (2008), recria abstratamente essas “danças”, desfocadas de quaisquer ligações com o passado a não ser na imanência do termo Partita e na diversidade,  sendo que naquela, de uma fase do período barroco, fixada em danças contrastantes e, na concebida por Maury, plena de encaixes que se articulam através de seus segmentos mais tranquilos ou agitadíssimos. É Buchala que afirma ter empregado na Partita, em determinados momentos da obra, duas linguagens: modal para o piano e atonal para as cordas.

O Concerto para violino (2015) é obra recentíssima, a exigir do violinista e do conjunto orquestral todas as possibilidades. Obra de envergadura, apresenta riqueza estrutural, conhecimento instrumental absoluto por parte do compositor e ousadia. A interpretação do violinista virtuose Francesco D’Orazio é extraordinária, como também o é o desempenho do Ensemble Court Circuit sob a regência de Jean Deroyer. Composição de extrema dificuldade.

Saliente-se o esmero da produção como um todo. A qualidade inquestionável de Maury Buchala, um nome exponencial nessa corrente estruturalista que desfruta de prestígio num segmento específico da criação musical, somada à qualidade absoluta do Ensemble Court Circuit, que acolheu as composições de Buchala, valorizando ao extremo as partituras, resultam num dos mais importantes registros fonográficos realizados por compositor brasileiro. Louve-se o Serviço Social do Comércio (SESC), que previu a contribuição insofismável para o conjunto da cultura musical brasileira com o lançamento do CD “Portrait”, aliás magnificamente apresentado graficamente.

Ao acessar o YouTube o leitor encontrará comentários de Maury Buchala sobre as obras constantes do CD “Portrait”. Clique aqui para assistir.

A few comments on the excellent CD “Portrait”, recorded in Paris and released in Brazil by SESC Record Label, with works by the composer, pianist and conductor Maury Buchala. As mentioned before, Maury — now living in Paris — was one of my most brilliant students at Universidade de São Paulo back in the eighties and this CD just confirms his talent. The pieces of the CD have been recorded by the Parisian “Ensemble Court-circuit”, one of Europe’s most prestigious ensembles with strong commitment to contemporary music. The launch of this CD is a welcome initiative by SESC (Serviço Social do Comércio) in São Paulo, helping to foster the Brazilian art scene.

 

 

 

 


Corridas recentes rememoradas

Parte do treinamento de um corredor
consiste em expandir os limites da sua mente.
Kenny Moore

Não estou a me lembrar da data precisa, mas há muitos anos mencionei num post encontro com amigo que não via desde os anos 1980. Afonso é seu nome. Esse encontro deu-se entre 2008 e 2010, creio. Comunicara ao amigo meu entusiasmo pelo blog e Afonso passou a lê-lo. Não mais o vi, mas por vezes recebia suas mensagens. Após o último blog, Afonso, que mora fora do Brasil, escreveu-me a dizer que não perde o post semanal. Comentou o último, sugerindo-me escrever e postar algumas fotos das corridas. Hesitei em fazê-lo, mas finalmente traçarei algumas linhas sobre provas das quais participei ultimamente, sempre com entusiasmo.

Pressupõe-se que o participante de corridas de rua realize treinos regulares. Como diz meu amigo maratonista, Nicola, se o corpo estiver preparado, a mente levará o corredor a qualquer parte. Há fortes razões para essa assertiva e treino três vezes por semana de 8 a 10km. Certeza de que o objetivo durante a prova será alcançado e que o corpo não claudicará.

Aos companheiros de corridas que conheci nesses quase 10 anos e 155 provas das quais participei, outros foram agregados. Sempre que se dá o encontro, antes e depois das provas, é notória a alegria. Não há competição, por vezes perniciosa maneira de indispor as pessoas, mas sempre, impreterivelmente, o prazer de estar bem cedo a viver o entendimento. Essa disposição é importante, pois há metas individuais amalgamadas ao entusiasmo coletivo pelas passadas e pelo companheirismo que, naturalmente, deságuam na qualidade de vida. Desta, fala-se muito como única razão, mas ela perde o caráter essencial se não houver a precedê-la o viver “aqui e agora”. Bem escreveu minha neta Ana Clara – em Maio me tornará bisavô de Catarina -, quando completei 100 corridas de rua, ao assinalar as etapas até o momento das largadas. Da inscrição à retirada do kit, ao número de peito colocado com os alfinetes, ao chip no tênis e à ida ao local indicado para a corrida, geralmente às 7:00hs. Preparativos que começam ao despertar às 4:30hs, sempre feliz pelo que deverá ocorrer. Por volta das 5:30hs, Batoré e seu irmão Ronaldo já estão em frente à minha casa e de carro ou de ônibus vamos às muitas corridas oferecidas em São Paulo ou em municípios e cidades próximas.

A célebre frase de Guerra Junqueiro que repito sempre em meus textos, “o tempo é insubornável”, foi bem assimilada. Convivo com ela diariamente e entendo como absolutamente natural essa passagem inabalável. Como guardo todas as fotos das corridas e as cronometragens, colando-os em já vários álbuns, percebo que em dez anos os tempos tornaram-se mais preguiçosos e, mesmo sempre a correr, a “máquina” já está mais lenta. Como metáfora, estou a me lembrar de nossa infância-adolescência quando, com meus pais e irmãos, descíamos até Itararé, bem perto da ilha Porchat, onde tínhamos um apartamento. No regresso pela Estrada Velha e, posteriormente, pela via Anchieta, os carros mais velhos subiam sôfregos, mas subiam. Não é assim entre os humanos? Assistir à passagem do tempo é de extraordinária valia. Tempo inexorável, “insubornável”, mas intenso. Hoje, “ao fio dos anos e das horas” – recorrendo a uma obra para piano do grande Lopes-Graça – em algumas corridas chego a ser o mais idoso entre milhares. Contudo, como não admirar meu colega de corridas Antônio Lopes, que já participou de mais de 800 provas de rua e que no primeiro semestre estará a completar 90 anos? Nunca o vi andar, sempre a correr, um motorzinho que respeita seus limites. Exemplo!!! Em várias provas fomos medalhistas nas nossas faixas etárias.

No ano que ora finda participei pela primeira vez de duas corridas na mesma manhã. Inscrito para a Global Energy (10km no campus da USP), recebi telefonema do Consulado Geral de Portugal em São Paulo para participar da Maratona de Revezamento Pão de Açúcar. Aquiesci. Dias após, por impossibilidade por parte de três membros do Consulado, fui consultado no sentido de conseguir mais três corredores para integrarem o octeto. Elson Otake e os meus dois companheiros habituais, Batoré e Ronaldo, estes também participantes da Global Energy, fecharam o octeto. Só pedi para que fôssemos os últimos a correr, pois, após a Global Energy, ainda teria de dirigir até o Parque do Ibirapuera e, a correr, atravessar com meus amigos todo o parque, do monumento dos Bandeirantes até a outra ponta, próxima à IV Centenário, pois lá estava montada a tenda. Desta, tive de correr mais um bom km até a passagem do comprovante de pulso na Av. Moreira Guimarães e que me foi entregue por Elson Otake. De lá, mais 5,2km até nova passagem da braçadeira, desta vez ao Ronaldo. Valeu a experiência. As fotos ilustram momento das duas provas.

Participei de diversas corridas do Circuito da Longevidade Bradesco Saúde em São Paulo e em Campinas. Muito bem organizadas, têm alguns milhares de inscritos. Na prova de Outubro de 2017 ganhei medalha de participação, mochila e dois troféus: da faixa etária e… como o mais idoso.

Um dos percursos mais agradáveis é o oferecido pelo Circuito Ruas e Rios na etapa do Jardim Botânico. Nos caminhos de terra batida e asfalto percorremos trechos no Jardim Botânico e, noutros, no Jardim Zoológico. A visualização de aves exóticas nos lagos, elefantes, tigres, girafas e tantos outros animais dá a essa corrida uma menção diferenciada.

Nem todas as empresas que promovem corridas têm organização digna de registro. Mencionaria as principais Corridas basicamente impecáveis: Juventus, promovida pelo simpático clube da Moóca; Esporte Clube Pinheiros; Trigo é Saúde; Shopping União em Osasco; Circuito da Longevidade Bradesco Saúde; Bombeiros no Ipiranga; Centro Histórico; Circuito Ruas e Rios; Monte Líbano. Também vale registrar o calendário, seletivo em número de participantes, organizado por equipes como a Corre Brasil (participo assiduamente de seus treinos), Neuri Dantas e Trilopez.

As várias etapas do Circuito Athenas pela marginal do Rio Pinheiros têm interesse. Contudo, é um absurdo o preço cobrado no estacionamento, onde todas as tendas estão montadas. Prefiro chegar de ônibus. Lamentável verificar que uma das empresas renomadas de São Paulo “burla” o estatuto dos idosos, que as obriga a conceder 50% de desconto para esses corredores, estabelecendo um cálculo diferenciado para que tal redução ocorra de maneira parcial. Enfim, há sempre aqueles que buscam o lucro maior, endemia brasileira.

Espero que Afonso encontre tempo além fronteiras para praticar corridas. Trata-se realmente de uma atividade sob todos os aspectos salutar, agradável e que exige disciplina e vontade, fatores que nos conduzem à tão decantada qualidade de vida.

At a friend’s suggestion, I resume the subject of running, mentioning the benefits for body and mind; the pleasure of interacting with other runners; listing my favorite races among the many of the race calendar; accepting the fact that I’m getting older (my body doesn’t work as well as it used to when I began running almost ten years ago); stressing that even amateur runners need discipline and will power, but the final outcome increased feeling of well-being is worth the effort.

 

Quando a recepção aos textos precedentes ganha potencial relevo

 

É o insatisfeito, como era natural,
que junta alguma coisa à realidade;
desde que o homem se encontre bem de vida,
a força que o levava a criar,
seja qual for o domínio,
afrouxa e estaca.
Agostinho da Silva
(“Sete cartas a um jovem filósofo”)

O blog sobre a criação na juventude da idade adulta e na maturidade da idade adulta provocou inúmeras mensagens, sendo que a do compositor e pensador francês François Servenière foi de tal abrangência e dimensão que mereceria ser exposta ao leitor. Aguardei a passagem do Natal e do Ano Novo para publicá-la. Servenière tece comentários sobre o texto do médico e especialista Elliot Jaques, tema do blog de 15 de Dezembro, acrescentando dados que certamente despertarão atenção especial dos seguidores de meu blog semanal. O pensamento de Servenière leva sempre a um amplo campo reflexivo, passível de ser polemizado. Essa postura é um dos fatores de interesse de suas mensagens. Um privilégio para mim tê-lo tantas vezes como partner de meus blogs. Abrimos pois 2019 com tema relevante. François Servenière expõe:

“Fiquei interessado pelo artigo que encerrou a série sobre o jovem compositor português António Fragoso, morto precocemente vítima da gripe espanhola em 1918, na idade de 21 anos. Seu post abordou temas profundos e, como sempre acontece com seus textos, parte-se de um tema particular para se chegar à reflexão geral.

Primeiramente, entendo de interesse todos os comentários efetuados pelo médico canadense Elliot Jaques sobre a crise do meio da existência.

Concernente à criatividade e às idades mais favoráveis, tinha opiniões de certa forma estanques quando via todos esses gênios da música, da pintura e da literatura atingidos por alguma moléstia e abatidos pela morte antes dos quarenta anos. Estavam eles, como todos os criadores, aliás, imersos ainda jovens no efeito turbo dos hormônios do crescimento. Sabemos que a produção desses hormônios, verdadeiras anfetaminas destinadas ao crescimento e à reprodução da espécie no período em que os gametas têm mais potencial, diminui no sangue nas fronteiras dos trinta anos. Seria imaginar que os hormônios fizeram seu trabalho de transmissão do que há de melhor do DNA e que, passado esse período, o corpo humano não tivesse mais nenhuma utilidade para a continuação da espécie. Essa situação hormonal leva-me a pensar nos salmões subindo com energia delirante os rios e cachoeiras mais difíceis do Grande Norte – após um a três anos nos oceanos – até o lugar onde nasceram, a fim de desovar e, após, deixarem-se morrer no local, esgotados e não mais servindo para qualquer outra atividade, tendo pois completado o ciclo das gerações.

Essa metáfora tem relevo quando estudamos a vida de dois dos maiores gênios da musica em quantidade e em qualidade, Mozart (35 anos) e Schubert (31 anos). Morreram, cérebros e corpos esgotados pela vida criativa alucinante. Em ambos os casos, 626 e quase 1000 opus, respectivamente, existências abreviadas que ensejam algumas estatísticas musicologicamente comprovadas sobre os dois e outros criadores de grande talento que morreram precocemente:

-   começaram a compor muito jovens;

-   escreveram delirantemente, arruinando suas saúdes;

- repetiram-se inúmeras vezes, sendo que algumas obras ‘intermediárias’ serviram de rascunhos e de maquetes para as obras-primas que viriam a seguir, as cumeeiras criativas;

-  viveram em períodos onde a esperança de vida era frágil (30-40 anos antes das descobertas das vacinas e dos antibióticos) e tinham consciência aguda da brevidade da existência.

Havia a percepção clara e generalizada de que o corpo humano não estava preparado face às grandes pandemias que assolavam a Europa periodicamente, a aumentar paradoxalmente a pujança criativa, pois sabiam que o fluxo da ampulheta seria rápido e desfavorável.  Acredito com convicção que a vida criativa desses compositores, prematuramente desaparecidos, assemelhar-se-ia a um gigantesco tornado e que o término do fenômeno estaria por volta dos 30 anos.

Uma certa geração de extremistas e radicais do século XX acreditava que, ao encurtar a existência por condurta desregrada, haveria acesso mais rápido à consagração universal e à elevação ao panteão dos séculos… Nada é menos exato, se falarmos unicamente da técnica e da semântica, da organização, da conceitualização, da elevação da alma, do gênio artístico, tendo-se como referencial absoluto os mestres consagrados dos séculos passados. Para esses arrivistas suicidas em busca de um sucesso rápido e retumbante a partir do escândalo (droga, a vida outlaw, hoje o pomo chic), constata-se claramente a flagrante decadência ou hecatombe criativa em comparação aos gênios consagrados.

Trata-se de um eufemismo de época, pois o show business mui raramente apresenta o talento encontrável em tempos idos na Idade Média, na Renascença, no período clássico e mesmo na contemporaneidade, naquilo que denominamos arte séria (sob o aspecto da linguagem). Há outra realidade igualmente exemplar: a facilidade econômica das sociedades modernas afunda o talento artístico, assim como deteriora os comportamentos. Esse fenômeno ocorre, de preferência, quando as gerações pertencentes às sociedades ocidentais atingem a idade adulta.

Na verdade, entre os contemporâneos de Mozart e Schubert, um século antes da profilaxia das vacinas, o stress vital devia estar no seu máximo. Pouco se fala das catedrais, construídas num período de um optimum medieval, época provavelmente mais calorosa do que a nossa, pois construídas nesse fervor artístico sob a égide do empenho coletivo de várias gerações de artesãos-artistas, poupados que foram do egoísmo contemporâneo das sociedades de superconsumo. Criatividade, vida curta ou longa? Debate um pouco defasado quando relatamos as obras primas da antiguidade. No caso dos dois compositores mencionados, os últimos retratos de Mozart evidenciam traços de uma pessoa com mais de 70 anos, a se pensar nas fisionomias da atualidade. Estafado ao extremo, pai de oito filhos, dos quais apenas dois chegaram à idade adulta. As pinturas de Hieronymus Bosch (1450-1516) evocam um período muito frio, quase glacial.

Fala-se da Pequena Idade Glacial para o período entre 1350 a 1900. Durante esse espaço de tempo, a mortalidade infantil foi enorme, assim como a fertilidade para assegurar a sobrevida da espécie, sendo que a esperança de vida se restringiu ao seu nível mais baixo, comparável àquele dos homens da pré-história. Poder-se-ia pensar que o gênio criativo tenha sido correlativamente fraco. Pois o que aconteceu foi o contrário. Incontáveis os gênios artísticos e filosóficos que surgiram nessa Pequena Idade Glacial. Precariedade de vida pareceria associada a uma energia vital pujante do gênio criativo levado ao extremo…

Socialmente poderemos fazer um paralelo com a soma imensa das grandes obras produzida sob regimes totalitários. A restrição pareceria ser parâmetro importante. Mas, e a liberdade? É bem difícil responder abruptamente. A se considerar conjunturas históricas com tais diferenciais de saúde pública, de sistemas políticos, poder-se-ia considerar uma idade ideal para a criatividade? O que é certo é que, atualmente, o gênio é inversamente proporcional ao conforto a beneficiar criadores. Mais eles são inflados, incensados, menores esforços eles fazem para sair da rotina, do comum, das banalidades”. Em blog bem anterior (vide O Criativo – Quando apropriações estranhas criam distorções. 25/04/2009), considerava a apropriação indevida da palavra criativo, há tempos tão a gosto do profissional de propaganda e marketing. Vulgarizaram o termo. A publicidade atual evidencia tantas e tantas vezes o caminho da repetição em todas as áreas, pois se uma publicidade ganha grande visualização, outros “criadores” das muitas empresas, para produtos da mesma área, seguem o abominável caminho da repetição. As empresas a abrigarem “criadores” não estariam nessa zona “inflada, incensada, rotineira, banalizada, de conforto”, como expõe, sobre outra égide, Servenière?

O pensador francês prossegue: “O show business é o enterro da arte excepcional do passado. Quando se fundem na mesma expressão social, negócios e criação, o resultado é uma linguagem empobrecida no limite da precariedade, do sucesso fácil. A frase imbecil ‘todo mundo é um artista’ simboliza a triste realidade”. Em termos brasileiros, o funk não representa o que de mais desprezível existe sob o rótulo inapropriado de manifestação musical?”.

Servenière continua: “Uma conclusão rápida deve, pois, nos induzir à ideia de que as piores condições de vida aumentam consideravelmente o instinto criativo, que é integralmente relacionado ao instinto vital. Esse instinto pode atingir seu ápice aos 20, 40, 60, 80 anos. É evidente que a juventude transmite uma energia eruptiva em suas obras. Mas seriam elas profundamente pensadas, organizadas, arquitetadas, perenizadas?  Enfim, a ciência e o saber acumulados durante a senectude verão nascer produções raras, que terão certamente maior pertinência. Não obstante, haveria a necessidade de o artista ter uma longa existência e saber  organizar socialmente seu viático (sucesso, ensino, negócios, outro métier…) para ainda persistir a vontade de criar aos 80 anos. Os insucessos potenciais e recorrentes da vida podem reduzir toda vontade criativa a zero muitíssimo antes da chegada à idade avançada. Quantos não são os artistas que param toda a atividade bem rapidamente diante de um fracasso e  partem para outro métier? Uma imensa maioria. Nem o talento, nem a força do talento, nem a pujança criativa renovada são ofertados a todo  mundo. Na idade de 60 anos, os resistentes às vicissitudes da vida de artista são exceções em suas gerações.

Basicamente não se pode sinceramente criar grandes obras sem que se seja um faminto pela vida. Pareceria evidente. Sob outro aspecto, a depressão destrói tanto o instinto criativo como a  vitalidade.

Numa outra apreensão, a luz do sol tem papel fundamental no humor das pessoas, terapia para as depressões sazonais, segundo confirmações da medicina desde o fim do século XX. O outono e o inverno nos deixam sombrios, enquanto a primavera é a fonte da juventude, de criatividade, de fluxo de hormônimos, mercê do aproveitamento pleno da seiva. Quantos não foram os artistas do passado que, em carruagens, desceram às terras do Mediterrâneo ou do Norte da África, ou mesmo atravessaram oceanos em busca de outros hemisférios, simplesmente para evitar que o ato criativo tivesse uma queda? Legiões. Não por acaso, a Califórnia tornou-se um dos centros mais criativos do planeta nas últimas décadas… Cria-se mais em espaços de bom humor e energia, geografias essas onde o sol nos invade com excesso de Vitamina D. No passado há exemplos dessas cidades florescentes, plenas de sol benfazejo: Roma, Florença, Atenas.

Se essa apologia ao sol é válida, consideremos que o Astro Rei representa o exemplo da superficialidade, do descompromisso, enquanto a pouca luz existente nas estações frias da nossa Europa favorece a introspecção e o aprofundamento. O hedonismo se opondo naturalmente à austeridade. A metáfora é possível e contraditória, praias e mosteiros. Ambos favorecem, à sa manière, a criatividade, embora por caminhos rigososamente diferentes.

Ao observarmos esse parâmetro climático para falar sobre criatividade e hedonismo, emergem dois polos essenciais da cultura humana, aquele do norte – países frios – outro do sul – países quentes. Considerando a concepção europeia de arte, há forma, estilo, ambiente que poderíamos considerar como mediterrâneos, tendo como centro a Itália, assim como outra, nórdica, centrada na Alemanha. Duas culturas extraordinárias, nascidas na Europa e espalhadas para o mundo. A Itália e a Alemanha  resumiram as oposições de estilo e pensamento. J.S.Bach e Vivaldi não seriam exemplos nítidos?

A cultura mediterrânea pareceria mais superficial e hedonista, enquanto a nórdica mais cerebral e conceitual. Encontraremos grande quantidade de músicas muito sensíveis na Itália, berço histórico da lacrimosa, enquanto a Alemanha nos oferecerá as formas musicais mais científicas, pensadas, organizadas e com resultados surpreendentes. A ciência pareceria alemã, a sensibilidade, italiana. É claro que essa definição esquemática se torna simplista. Há o contraexemplo, pois gênios italianos serão considerados ‘alemães’ e esses, ‘italianos’. São incontáveis os ‘vazamentos’ culturais e assimilações mútuas.

Na arte, como na luz, há todas as cores do arco-íris, todas as gradações possíveis, todas as nuances regionais que nos induzem a pensar que não existem regras absolutas… Seria um erro se, ao contemplarmos o globo terrestre e a disposição dos países, nos dispuséssemos a acreditar que a influência do sol determinará a criação de tendências maiores ou menores. Dir-se-á que tal estilo, tal caráter é francês, alemão, russo, chinês, mexicano, brasileiro, português, espanhol, americano, africano, etc, etc. Muito sol provocaria a preguiça, a fadiga e a hedonismo, e muito frio congelaria o cérebro. Os países temperados são os privilegiados sob a esfera da criatividade: nem tão frio, nem tão quente. Não se trataria apenas de uma questão da personalidade individual, como se constata em todas as partes do mundo. Há inúmeros exemplos que estabelecem as exceções nas civilizações habituadas aos extremos… Evidentemente, podemos analisar a personalidade individual, em todas as suas conjunturas, como integrante da vontade individual, mas que será duramente impactada pelo meio onde ela emergir. Seria um acaso o aparecimento de gênios e grandes artistas, durante séculos, em Paris, Roma, Moscou, Londres, Amsterdam? A política, a abertura de espírito e a sensibilidade dos príncipes, a riqueza do comércio, o limite das populações e as geografias climáticas favoráveis, a curiosidade das massas, a filosofia e o pensamento dominante do entorno (todos parâmetros interdependentes) tiveram papel fundamental na história da arte e não podem ser desprezados. O artista ex nihilo não existe, aquele que surge a partir no nada. Ele vem de longe, de alguma parte, de uma forja cósmica social e universal, potencializada pelo tempo e pelas gerações. É ele filho, produto de um ambiente propício, de um acúmulo de camadas, de uma predisposição mental certa, mas também de uma cultura. Ele passará ao lado de seu destino, ou não. O acaso e a necessidade farão sua obra no segmento biológico que constitui a sua vida” (tradução: JEM).