Sylvain Tesson e os caminhos esquecidos da França

Atravessar vilarejos dava a impressão de passar em revista fachadas a meio mastro.
O que não estava fechado estava à venda,
o que estava à venda não encontrava comprador.
Os monumentos aos mortos levavam nomes gloriosos e
até os habitantes vivos vagando pelas ruas
bem poderiam se juntar à lista.

Sylvain Tesson
(“Sur les Chemins Noirs”)

Ao longo de treze livros resenhados neste espaço desde Maio de 2011 (vide menu “Resenhas e comentários – Lista”), a leitura de “Sur les Chemins Noirs” acentua determinadas constantes no pensamento de Sylvain Tesson, agregando outras, tangíveis após o grave acidente que sofreu em Agosto de 2014, ao cair de uma altura de 8-10 metros escalando as paredes da casa de um amigo em Chamonix. Esteve em coma durante bom tempo, sofreu várias fraturas, permanecendo indeléveis resquícios, sobretudo em seu rosto. Confessaria que “foi um acidente estúpido, sentia-me imortal”. Bem ele, que percorreu o mundo a pé, de bicicleta ou de moto, viveu tantas peripécias “no fio de uma lâmina” e viria a sofrer acidente prosaico nessa queda que deixou tantas sequelas.

“Sur les Chemins Noirs” (Paris, Gallimard, 2016) apresenta um caminho mais “modesto” de Sylvain Tesson, naquilo que ele mesmo confessaria nas primeiras entrevistas após o grave acidente, ao propor direcionamento mais humanitário a partir da queda brutal. O escritor aventureiro se propôs atravessar a França, percorrendo-a em linha diagonal sinuosa, no sentido sudeste-noroeste, não através das auto estradas ou de outras vias pavimentadas, mas orientando-se pelos caminhos negros, também chamados de routes jaunes, em terra batida, de pedras ou apenas trilhas. Descreve-os como “caminhos banhados de puro silêncio, miraculosamente vazios”. Durante o longo trajeto não negligencia ferrovias desativadas. Distanciou-se durante todo o percurso das cidades maiores, pois interessava-o aprofundar-se nesses espaços ruralistas, tantos deles ainda vivendo à la manière dos séculos anteriores.

A longa viagem pelos caminhos negros o faz inteirar-se dos costumes, hábitos, desconfianças e mutismo desses personagens rurais perdidos em seus rincões e tendo acesso ao pequeno povoado, onde não faltam os ingredientes atávicos, o café, a barbearia, a quitanda e os prestadores de serviços. Quando dialoga com o homem rural, fá-lo sempre de maneira curta, sem qualquer ligação de mínima intimidade. Para o leitor que acompanhou as longas viagens de Tesson pelo planeta, sente-se que o contato com outros povos, da Rússia e da Ásia Central, como exemplos, são bem mais humanos. Seria possível entender que nessa empreitada – possivelmente devido aos problemas faciais – a inseparável flauta, tão presente em vários livros como elemento primeiro comunicante com o próximo, estivesse ausente. Ficaria a impressão, pode parecer paradoxal, de que Tesson teria maior prazer no contato com essas etnias tão distantes do nosso conhecimento. Esse “cartão de visitas” sonoro, tantas vezes mencionado em narrativas anteriores, que encantava os moradores dos yurts (tenda redonda mongol) espalhados pela vasta planura da Mongólia, assim como habitantes de outras regiões longínquas,  desaparece em “Sur les Chemins Noirs”. Estou a me lembrar de dedicatória de Sylvain Tesson a uma pergunta que lhe formulei em manhã de autógrafos em Paris aos 12 de Janeiro de 2014: “O único momento em que não sou melancólico é quando escuto música triste, que se encarrega do fardo de minha pena”. Sete meses após, sofreria o acidente. O sonoro flautado inexiste como elo durante toda a travessia pelos caminhos negros, assim como qualquer traço de entusiasmo, mesmo quando amigos, isoladamente, com ele se encontravam para caminhadas durante poucos dias.

O ruralismo francês, cortado por esses chemins noirs, põe à mostra o descaso do Estado e a volúpia das empresas que, ao se interessarem por algum rincão, trazem o “progresso”, destroem tradições e têm interesses tantas vezes estranhos. Como arguto observador, não deixa de notar os animais domésticos, basicamente familiarizando-se à distância. Essas observações, paradoxalmente, excluem o pormenorizar lugares percorridos, não havendo qualquer vestígio de uma interpretação turística. Se tantas vezes a natureza o impacta, essa é anônima, perdida em um desses chemins noirs. Sob outro aspecto, fica mais evidente, nesse corte dos extremos do território francês, sudeste-noroeste num sentido longitudinal, um possível menor envolvimento com a geografia em comparação com as narrativas anteriores. Seria possível supor que atravessar sua França, país do chamado primeiro mundo, a observar a precariedade dos caminhos, das casas esparsas, da desassistência do Estado, do mutismo do homem rural desesperançado frente ao “progresso”, tenha provocado em sua mente um recrudescimento de aversão aos avanços em quase todas as áreas e o desprezo pelas elites. O pensamento de Tesson, nesse caminhar, mergulha nos tempos da idade da pedra até os feudais, tempos imóveis, segundo ele. O progresso sem controle fá-lo refletir sobre a velocidade dos acontecimentos, pois “a ode à ‘diversidade’, à ‘troca’, à ‘comunicação do universo’ surgia como o novo catecismo dos profissionais da produção cultural na Europa”. O observador verifica as consequências em torno dessa volúpia para que as coisas aconteçam: “os vales se viram afligir pelas grandes auto-estradas, as montanhas pelos túneis, o azul do céu pelas linhas brancas dos longos voos. A paisagem tornou-se uma decoração de passagem”. Verifica, ao percorrer vilarejos, “a presença de frutos e legumes tropicais na mais modesta quitanda”. Coloca uma questão nessas elucubrações sobre a mundialização: “por que não aceitamos que um ladrão de maçãs se introduza num pomar e por que permitimos que uma manga do Brasil reine numa quitanda d’Ardèche? Onde começa a infração?”. Comenta com certa dose de humor: “E interessei-me por uma inovação instalada em frente à Igreja: uma ‘máquina distribuidora de pães’ substituía a padaria. Um euro depositado na fenda e lá vinha a baguete. A máquina foi vandalizada. Moralidade à francesa: quando falta pão, o povo se revolta; quando faltam padeiros, ele quebra as máquinas”. Com quase resignação: “A ruralidade instituiu-se como princípio de resistência a toda empolgação. Escolhendo o sedentarismo, criou-se uma ilha no fluxo. Aprofundando-se nos caminhos negros, navegamos de ilha em ilha. Há um mês eu abro caminho no arquipélago”.

Alguns aspectos extraliterários devem ser abordados. Após o trauma sofrido, a lenta recuperação o obrigaria a uma intensa fisioterapia. Contrariando recomendações, o escritor aventureiro preferiu andar e atravessar o território francês. Diversamente dos livros anteriores, são inúmeras as menções de Tesson ao cansaço, às longas caminhadas. Constantes as lembranças do trauma sofrido. A narrativa não o esquece e praticamente todas as sequelas são homeopaticamente distribuídas em “Sur les Chemins Noirs”, de maneira por vezes pungente. O inveterado amante da vodka e das longas caminhadas, com estágio como “eremita” no lago Baikal, confessa: “Bebi para toda a vida nesses últimos anos, afogado nas caravanas de lembranças dos rios de vodka. Presentemente, acabou! A torneira mágica fechou”. Em outra menção, tem-se: “Foi-me proibido o vinho, mas eu podia ainda embebedar-me do vazio”. Rememora as décadas como viandante: “vinte anos nesse jogo sobre cumeeiras para, hoje, caminhar como uma idosa”. Durante o longo percurso, uma irônica observação, após ter dormido em um mosteiro: “Enriqueci-me com os 20 euros que recebi no mosteiro, pois uma velha senhora teve piedade ao ver meu rosto desfigurado: ‘Reze uma missa, para quem você quiser’, e lembrei-me de minha mãe, que jamais me teria feito tal pedido”. Encharca-se de medicamentos que o afligiam: “Acrescentaria as doses de colchicine para as complicações cardíacas e os produtos para atenuar as dores nas pernas. Incendiei minha vida, queimei as veias, dei um salto para escapar do incêndio e agora arrasto-me sobre os caminhos com uma inflamação geral que a medicina controla”. Jocosamente comenta: “tentemos não cair no rio, pensava eu passando por uma ponte, isso evitará à região uma poluição química”. Praticamente todas as partes do corpo afetadas pela queda em Chamonix são contempladas. A audição diminuiu e comenta noite em pequeno hotel onde, durante o jantar, a televisão estava em alto volume: “A vantagem da meia surdez está no fato de já termos o volume reduzido”.

O ataque epilético, nunca tratado em livros anteriores, pode ter sido provocado pelo traumatismo crânio-encefálico (TCE). Se o mal fosse anterior, creio que Tesson não teria permanecido meses, em pleno inverno, sozinho numa cabana siberiana (vide blog: “Dans les Forêts de Sibérie- Reflexões em cabana isolada na margem ocidental do lago Baikal”, 01/03/2014). Refere-se com naturalidade ao episódio. Estava Tesson a almoçar com amigo no alto de uma montanha quando lhe veio à mente a vontade de morrer: “era uma mancha negra que invadia o ser como a tinta de um choco escurece a água do mar”. Lembrar-se-ia, ao voltar a si, “era a epilepsia, o mal negro, e as fraturas de meu crânio favoreciam essas crises”.

À guisa de conclusão, Sylvain Tesson se posiciona: “Toda longa marcha tem lá seus ares de salvação. Colocamo-nos a caminhar, avançamos a buscar perspectivas nas dificuldades, evitamos os vilarejos. Encontramos abrigo para a noite, recompensamos em sonhos as tristezas do dia. Elegemos a floresta como domicílio, dormimos embalados pelas corujas, partimos pela manhã eletrizados pela empolgação da mata crescida, vislumbramos cavalos. Encontramos homens rurais mudos”. (tradução: J.E.M.).

Se, sob um aspecto, “Sur les Chemins Noirs” mais profundamente revela que os efeitos traumáticos tiveram influência na narrativa, sob outra égide o autor revela seu de profundis -  não falta um  sentido poético na narrativa -, justamente a percorrer seu território natal. Se desaparece o surdo prazer, palpável nas viagens anteriores, possivelmente a decepção ao verificar precariedades e o desinteresse do Estado, nessas bucólicas mas desprezadas terras, tenha aflorado “sentimentos” ocultos em tantas obras anteriores. Faz-me pensar no extraordinário ciclo de melodias de Modest Moussorgsky, “Sans Soleil”.

Sylvain Tesson iniciou o percurso pelos “Chemins Noirs” aos 24 de Agosto, chegando a termo aos 08 de Novembro de 2015.

In his book “Sur les Chemins Noirs” French adventurer, writer and geographer Sylvain Tesson walks across France from Southwest to Northwest  following the Chemins Noirs (black paths), the unmarked ancient routes of men and animals or abandoned railways, reflecting on government’s disregard for citizens’ needs, the greed of large corporations under the pretext that rural areas need to be “incorporated into modern France” and repeated mentions of the accident he suffered in 2014 (a ten-meter fall during roof-climbing) that took a heavy physical and mental toll on him. Also a philosopher, the 76-day adventure is a chance for Tesson to muse over issues such as nature, modern society and his impulse to challenge death.

 

Ana Cláudia Assis interpreta repertório desafiador

É necessário insistir sobre fato elementar,
pois o intérprete detém o poder essencial,
entendendo-se que é através dele que a música existe realmente.
Ao negligenciar essa evidência,
corremos o risco de falsear todos os problemas da criação musical.
André Souris (1899-1970)
(“Conditions de la Musique”)

Durante o Simpósio “Fernando-Lopes Graça em retrospectiva”, realizado em Cascais em Dezembro último, tive o prazer de reencontrar amigos e, entre eles, a pianista Ana Cláudia Assis e o compositor João Pedro Oliveira. Ana Cláudia ofereceu-me o CD “Vertentes”, a conter obras de vários compositores contemporâneos que residem em Belo Horizonte, sendo dois visitantes. Buscou Ana Cláudia, através dessa panorâmica, trazer ao ouvinte a contribuição desses criadores de diversas tendências, mas que, na seleção proposta pela pianista, resulta num conjunto coerente.

A criação musical dita de concerto, erudita, seletiva ou clássica tem, em especial a partir da segunda metade do século XX, apresentado multiplicidade de caminhos. As transformações escriturais que ocorreram, mormente após a técnica dodecafônica, o serialismo e, mais tardiamente, o emprego de processos eletroacústicos, entre tantos, possibilitaram a presença de compositores relevantes. Muitos romperam com os padrões do passado. Para outros, a tradição “atualizada” através das conquistas verificadas em todas as áreas, não foi esquecida. Se em Portugal Jorge Peixinho, Emanuel Nunes e João Pedro Oliveira singraram caminhos oriundos de técnicas novas, nem por isso autores como Eurico Carrapatoso e Sérgio Azevedo deixam de despertar muito interesse. Sem contar o grande Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o maior músico português do século XX, quiçá de sua história. A criação musical só é desinteressante quando as musas não visitam um autor sem talento.

Quanto ao piano, propiciou o instrumento uma série de novos procedimentos técnico-pianísticos – tantos deles oriundos da tradição -, enriquecedores nessa abordagem inusitada, sempre in progress, a que assistimos desde meados do século XX.  Poder-se-ia afirmar que o piano, apesar de recursos extraordinários, tem suas limitações, e o compositor consciente deve entendê-las, adaptando-se ao instrumento.  Nem sempre isso se verifica. Estou a me lembrar de recital que apresentei em Cardiff, no País de Gales (1996), interpretando vários compositores contemporâneos. Tive dois pianos para escolha, pois um terceiro, o melhor, estava praticamente impossibilitado devido a recital na noite anterior de pianista credenciado, que apresentou algumas obras para piano preparado, a interferir diretamente nas cordas e nos martelos, danificando-os de maneira irreversível. A Diretora do Departamento de Música da Universidade de Wales, Profª Caroline Rae, mostrou-se desolada. Lembro-me de meus tempos na USP, quando um duo pianístico, unicamente voltado à música contemporânea, pediu-me para ensaiar na sala em que dava aulas. Cedi com prazer, mas no dia seguinte cinco cordas estavam rompidas e um martelo quebrado. Tranquilamente me pediram novo ensaio, tendo eu recusado peremptoriamente. Em quase três décadas na Universidade, não me lembro de ter quebrado uma corda. Creio que é absolutamente fundamental para um pianista que se dedica à música de nossos dias ter praticado exaustivamente o repertório tradicional. Caso específico de Ana Cláudia Assis.

O CD “Vertentes”, lançado em 2017, tem a produção compartilhada de João Carreño e Gabriel Algusto. Apresenta composições de oito autores, alguns da novíssima geração.  Apesar de formações diferenciadas, constata-se uma possível “identidade” nas linguagens. As 11 faixas, ouvidas na sequência, assim permitem deduzir. Creio ser esse um aspecto positivo a evidenciar, friso, apesar de processos vários empregados pelos oito compositores. João Carreño escreve as notas e afirma: “Vertentes é a realização do desejo de explorar mais a fundo a identidade sonora da cidade que escolhi como minha casa, seus compositores, suas estéticas, seus sons”. Refere-se à cidade de Belo Horizonte. Continua: “Este álbum apresenta uma pluralidade de discursos, formas, estilos e técnicas que, postas em perspectiva através do pianismo lapidado de Ana Cláudia, cartografam os sons da capital mineira. Daqui, vertem obras que delineiam paisagens, exploram sons eletrônicos, remetem a gestualidades e compositores do passado, demarcam um caminho comum e ao mesmo tempo plural compartilhado pelos compositores jovens e por aqueles com carreira consolidada”.

Roberto Victorio abre o CD com a Sonata II (2017). Obra plena de possibilidades, “a partir da utilização e do intercâmbio de duas notações: proporcional e relativa”, segundo o autor. Nessa criação, como na maior parte das outras composições do CD, fiquei atento ao timbre sonoro, capacidade da exploração dos sons nas mais distintas camadas dinâmicas, e que, ao meu ver, é uma das constantes das obras do CD, mercê, frise-se, da qualidade da intérprete.

João Pedro Oliveira, professor titular da Universidade de Aveiro (Portugal) e da UFMG, é organista de formação e compositor de consagrada trajetória. Apresenta a obra Frozen… (Fred, Ferenc, Franz), realizando uma curiosa e bem solucionada prospecção do universo de três grandes compositores do passado: Chopin (Noturno em si bemol menor), Liszt (Rapsódia nº 2) e Schubert (lied Der Leiuermann). Apreende a contento “fragmentos” que remetem esporadicamente aos inspiradores, mas com engenhosa “metamorfose”. “Como se a música se congelasse”, afirma o autor.

A última tarde de verão, de Rafael Felício, traz resultados de interesse. Consegue amalgamar a interferência direta nas cordas do piano e utiliza igualmente sons eletrônicos. Considerem-se os efeitos de pedal em matizes de cuidadoso equilíbrio. Felício comenta que “a obra se constrói ganhando corpo e movimento sempre com o princípio de derivar um material do outro”.

Fui colega de Marcos Branda Lacerda na Universidade de São Paulo. Etnomusicólogo e compositor, Branda Lacerda tem vasto acervo de informações, pois sua tese de doutorado, defendida na Alemanha, abordou a música de Benin, na África. Curiosamente, Blue Notes, dedicada à pianista, é criação bem sofisticada que apreende várias culturas, não se descartando, consciente ou inconscientemente, segmentos que fazem lembrar determinados eteres próprios a Debussy.

Por um triz meus tímpanos não se romperam no início dessa criação de muito interesse. Creio que o piano, apesar de complexo, fica realmente minimizado, mercê da “avalanche” de sons eletrônicos flutuando entre os extremos da dinâmica. Levy Oliveira, em Por um triz, mantém tensão permanente durante todo o desenrolar da obra e a interação piano-eletrônica estabelece um amplo sentido de espacialidade.

Eduardo Campolina participa com Dois movimentos para piano solo. Como afirma, a obra bipartida tem “caráter contrastante no molde lento-rápido, muito comum na tradição ocidental”. O contraste não elimina, antes evidencia, a impressão digital do autor, possuidor de estilo definido.

Dubitável questiona os limites entre a precisão escrita e o improviso, o papel da intérprete como coautora de uma obra e a singularidade de cada interpretação de uma mesma peça”, considera João Carreño, compositor e produtor do CD. Estou a me lembrar de Três Estudos do notável H.J.Koellreutter que me foram dedicados, sendo o pianista o coautor. Essa configuração jamais permite a apresentação de uma obra construída graficamente na leitura realizada por intérpretes diferentes. Transfigura-se a partir da soberana presença da “matriz”. Carreño e a coautora obtiveram boa solução para Dubitável.

Sérgio Freire compôs De terras e raios, conseguindo resultados surpreendentes nessa transição a compreender a finitude dos sons do piano e a continuidade através dos sons eletrônicos. Essas transições estão muito bem pensadas e permitem reflexões a respeito da duração. O processo de De terras e raios propõe “sobrevida” ao discurso pianístico de maneira engenhosa.

Uma realização de mérito. Ana Cláudia Assis tem contribuído decisivamente na divulgação do repertório contemporâneo. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais e pianista respeitada, merece os maiores elogios pela contribuição valiosa que proporciona através do CD “Vertentes”.

Ao ser copiado, o link levará à breve apresentação do CD “Vertentes”, com explicações de alguns compositores e da intérprete:

https://www.youtube.com/watch?v=4HCjq_5EbIE

On the CD “Vertentes”, with contemporary classical music written by Belo Horizonte-based composers in the stunning performance of Ana Claudia de Assis, Brazilian pianist who is specialist in contemporary music interpretation and Associate Professor at UFMG – Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais in the city of Belo Horizonte.

 

 

 


Posições diferenciadas em torno da feitura composicional

A obra é inicialmente um criador. Deus não existe que através do mundo que ele criou,
o Papai Noel que pelos presentes que distribuiu,
o compositor que pelas obras que foram escritas.
Ora, o que é um verdadeiro artista criador
senão aquele que conjuga o controle do instinto,
a evidência do estilo, a recusa das soluções fáceis e, sobretudo,
a originalidade na utilização de meios
(mais do que os meios eles mesmos) com uma afetividade profunda?
Mas sem a técnica, e se apenas a afetividade existir, a obra não existe”.
Serge Nigg (1945-2008)
(o primeiro compositor a escrever obra dodecafônica em França)

O blog anterior suscitou posicionamentos diversos quanto à escrita musical de nossos dias. É natural que assim seja e entendo salutar posições por vezes antagônicas sobre a matéria. Creio que só deve ser descartado o pensamento unitário, radical, a ver uma só verdade. O velho adágio “pior do que não ter lido nenhum livro é a leitura de apenas um livro”. Portanto, recebi posicionamentos de leitores, assim como de Maury Buchala, que me enviou opiniões de músicos respeitados.

Como intérprete a percorrer repertório que tem origem no século XVIII até as correntes hodiernas, entendo que o acúmulo das décadas fez-me avaliar a boa escrita e o talento, assim como a má escrita e a mediocridade. Naquele século há muitas obras que não se sustentaram por falta de embasamento escritural e pela ausência do talento. Daí meu empenho, in conditio sine qua non, de revelar determinados autores quase esquecidos, mas profundamente merecedores de maior divulgação. Daí minha vontade de, entre os 23 CDs gravados no Exterior, em três deles ter privilegiado especialmente compositores contemporâneos com linguagens diversas: o CD New Belgian Studies (Bélgica – De Rode Pomp, 2004), a conter 10 autores belgas atuais, o CD “Estudos Brasileiros” (Brasil, Academia Brasileira de Música, 2006), a privilegiar oito compositores pátrios e o CD “Éthers de l’Infini” (França – Esolem, 2017), a abrigar quatro criadores de três países diferentes, França, Portugal e Bulgária. Os CDs com as integrais de Estudos de Alexandre Scriabine e Claude Debussy (Bélgica – De Rode Pomp, 2002 e 2006, respectivamente) deram início ao aprofundamento nesse gênero musical tão complexo, o Estudo.

Estou a me lembrar do saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali (1940-2013). Um episódio, já mencionado em blog bem anterior, fez-me pensar numa observação arguta de Luca tão logo entramos numa galeria que apresentava mostra de pintores contemporâneos abstratos. De longe destacou algumas poucas obras de mérito, descartando a maioria. Perguntei-lhe sobre sua aferição da qualidade. Explicou-me técnica e criatividade e a ausência desses atributos em muitos expositores nessa mostra. Serenamente percorremos os corredores e disse-lhe que na música se dá o mesmo, quando da apreciação de alguém versado na matéria. Nas duas áreas das Artes a mídia tem papel preponderante e o incenso pode ser sentido tanto para os meritosos precedidos pela fama como para a mediocridade, a depender de julgamentos tantas vezes estranhos. Nada a fazer.

Admiro a escrita musical competente, oriunda sobretudo de alguns centros de estudos do hemisfério norte. Diria apenas que há outras tendências, baseadas nas estruturas tradicionais. Contudo, há uma paradoxal desproporção quando da avaliação de projetos composicionais pelos institutos de fomento, tanto em nossas terras como bem acima da linha do Equador. Aqueles voltados às tendências “progressistas” – e nelas incluiria a música a partir de sons eletrônicos – recebem as maiores benesses, apesar de, no todo, resultarem em audiências pequenas. Um de seus adeptos já teria confessado em entrevista que se trata de música ainda destinada a guetos. Contudo, aos que professam tendências mais tradicionais, essas verbas de incentivo mostram-se nulas ou minguadas e não é difícil constatar que o apoio dos Institutos de fomento destina-se basicamente às linhas de composição “progressistas”. Não incentivam a linguagem estruturada na tradição, escrita essa professada na atualidade por muitos músicos de inegável valor. Esse é fato real. Como mencionei, apenas a falta de técnica e de talento não deve ser prestigiada. Quanto à linguagem praticada por compositores de diversos credos, posições dogmáticas são perniciosas sob todos os aspectos. Não obstante elas existem, hélas.

Das mensagens recebidas, salientaria inicialmente a do compositor e pensador francês François Servenière, tantas vezes com posições a enriquecer Ecos de blog anterior. Escreve: “Concordo com o post precedente e apenas uma qualidade pode unir as duas entidades de artistas, a sinceridade”. Servenière, voltado a uma linguagem com fortes raízes na tradição, no jazz e na improvisação, apesar de ter conhecido e praticado conteúdos da vertente dominante composicional em França, comenta: “Nossas composições, as de Maury e as minhas, num espelho. Duas escolas de pensamento em comparação, dois modos de expressão ambivalentes, que vão no mesmo caminho de trabalho sensível da apreensão íntima da sociedade; no entanto, duas expressões radicalmente diferentes”. Conclui: ” Na França ainda há forte influência do legado deixado pela escola de Pierre Boulez. Humana, espiritual e artisticamente, essa tendência me deixa frio como gelo, apesar de admirar o domínio escritural incontestável no caso específico das obras de Maury”.

Maury Buchala enviou-me três curtas mensagens de músicos saudando o CD. O renomado compositor Jorge Antunes escreve: “Parabéns pela bela resenha de seu ex-professor. Aproveito para dizer que também ouvi o CD e fiquei impressionado. Gostei bastante das tuas obras, todas muito bem estruturadas e com detalhismo admirável na construção dos pequenos objetos sonoros”. Alexandre Rosa, contrabaixista da OSESP, felicita-o: “Parabéns, bela e merecida crítica deste seu excelente trabalho”. A soprano belga Françoise Vanecke saúda e rememora: “Bravo! Bravo! Conheço pessoalmente José Eduardo Martins!”. Em 1995, Françoise e eu apresentamos, em recital na cidade de Gent, o Poemetto Lirico “Offelia”, de Henrique Oswald. O músico Philippe Hurel e o ótimo violinista Francesco D’Orazio felicitam calorosamente Maury Buchala pela realização de “Portrait”.

Por fim uma “mensagem oral”. Encontrei velho amigo ao passar pelo Largo de São Bento no Centro Histórico de São Paulo. Após cumprimentos, Alfredo diz-me diretamente não entender e não gostar da música de “laboratório”, pois lera o post e ouvira várias obras de Maury através do Youtube. Tínhamos algum tempo e fomos a um café próximo. Uma sua frase, “essa música não tem sentimento”, serviu para que eu lhe explicasse que a prática da escuta leva a entendê-la, possivelmente não sob esse prisma de cunho bem romântico, dos sentimentos, da emoção – “langage du coeur”, nas palavras bem anteriores de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) -, mas através de uma compreensão racional e que, como intérprete, apesar de ter minhas nítidas preferências, e essas são voltadas à música tradicional que para nós, pianistas, remonta ao repertório do século XVIII, ainda sob a égide do cravo, ao me debruçar sobre repertório bem contemporâneo sinto prazer de estudar a trama escritural e as possibilidades sonoras novas. Concordei com ele no sentido de que a música muito bem escrita do Maury Buchala não é para o grande público. Há longo caminho até que a escuta majoritária chegue realmente a apreciá-la. Ao menos nossa conversa de uns bons 15 minutos deve ter servido para reflexão, pois, ao se despedir, Alfredo disse sorrindo: “vou pensar no que você me disse, professor” (num tom bem jocoso, diga-se).

O que podemos imaginar da música do amanhã? O repertório voltado à tradição já deu provas de imanência. Da contemporaneidade, quem subsistirá? Quais obras conseguirão ultrapassar a arrebentação, essas ondas próximas à praia que, vencidas, levam ao grande oceano, à perenidade. Não seria a discussão meramente ideológica um entrave para que a obra, seja qual for a tendência, flua com naturalidade? O embate a partir de ideias pré-estabelecidas pelos “contendores” não levaria a criação, seja qual for a tendência, ao impasse?

Duas frases famosas de Claude Debussy (1862-1918), neste ano em que se comemora o centenário de sua morte: “La musique doit humblement chercher à faire plaisir, l’extrême complication est le contraire de l’art” e “N’écoute les conseils de personne, sinon du vent qui passe et nous raconte les histoires du monde”.

The previous blog (on Maury Buchala’s CD “Portrait”) received much feedback, with some messages holding opposing views on contemporary trends in classical music composition. I believe diversity of opinions is welcome. As a pianist, though I cannot deny my preferences for the traditional piano repertoire, the one recognized as excellent over a long period of time, I’ve always tried to be open to new musical languages, as far as I see in them talent and quality. But will they stand the test of time?