Duas Manifestações Emotivas Antagônicas em Debussy

Je reçois ce matin le programme du Concert Parent
où vous devez jouer Masques et L’Isle Joyeuse…
Sans que je doute une seconde de la façon parfaite
dont vous jouez ces deux morceaux,
voulez-vous me faire l’extrême plaisir
de me les faire entendre demain Jeudi dans l’après-midi,
à l’heure qui vous conviendra le mieux ?
Carta de Debussy ao notável pianista Ricardo Viñez (Février  1905)

Mais, Seigneur ! que c’est difficile à jouer…
ce morceau me paraît réunir les façons d’attaquer un piano,
car il réunit la force et la grâce… si j’ose ainsi parler.
Claude Debussy sobre L’Isle Joyeuse.
Carta a seu editor Jacques Durand (Dieppe, Septembre 1904)

No supermercado recebo um tapinha nas costas. Ao virar-me, vem a pergunta imediata: “O que de intenso existe por trás de L’Isle Joyeuse?  Que bela ilustração você colocou! Fale-me dessa composição”. Marly estudou piano, mas dedicou-se a uma outra área do conhecimento e é professora. Conheço-a desde o início do século. Convidei-a para um café e, durante mais de meia hora, conversamos a respeito dessa e de outras criações de Claude Debussy entre 1903-04.   

Para quem conhece a opera omnia do compositor francês, ou ao menos uma boa parcela, L’Isle Joyeuse surge como um ápice emotivo, em se considerando outras preocupações de Debussy. São claras as intenções voltadas ao passional. Há razões para que isso aconteça nessa obra, preferencialmente, e em outras do período.

Debussy teve uma vida sentimental atribulada até a união com sua segunda mulher, Emma Bardac. A cantora Marie Vasnier, dedicatária de melodias inefáveis do compositor durante os anos de formação, Gaby Dupont, com quem viveu alguns anos, Lilly Téxier, sua primeira mulher, até os desdobramentos do envolvimento com Emma Bardac, que data de 1903.  Casada com um rico banqueiro judeu, Emma não apenas era admirada como cantora – Gabriel Fauré dedicou-lhe afeição profunda e La Bonne Chanson (1892-1894), Prison (1894) e Salve Regina (1895); Ravel l’Indifférent, a terceira peça do ciclo para canto e orquestra Shérazade (1903) -, mas também como frequentadora dos salões parisienses onde se reuniam artistas, intelectuais e os senhores do poder. Da ligação musical com Emma surgiria uma relação amorosa que permaneceria para sempre, mas que deixaria vestígios dramáticos durante os primeiros dois anos de idílio. Cartas enviadas à Lilly por Debussy já prenunciavam a separação. Em 30 de Julho de 1904, o compositor e Emma embarcam para a ilha de Jersey, na costa britânica, no fulgor da paixão. Lilly tentaria o suicídio com arma de fogo aos 13 de Outubro, assim como possivelmente o fizera Gaby Dupont em 1897. Parte considerável da sociedade parisiense tomou partido da mulher abandonada. No dia 6 de Novembro dá-se a primeira audição das Deux Danses de Debussy – há minha gravação para o selo belga De Rode Pomp das duas obras sequenciais na transcrição para piano solo do editor e amigo de Debussy, Jacques Durand (vide YouTube). Nessas Danses, originalmente para harpa cromática e orquestra de cordas, escritas entre Abril-Maio de 1904, capta-se também a intensidade emotiva vivida pelo compositor. Emma obteria o divórcio de seu primeiro marido e se casaria com Debussy. Tiveram uma única filha, Claude-Emma (Chouchou), nascida em 1905, menina super dotada que morreria de difteria em 1919 um ano após seu ilustre pai. Emma Debussy viveria até 1934.

Entre Junho-Julho de 1904 surge uma das criações para piano mais emblemáticas de Debussy, Masques que deveria integrar uma 1ª série de Images. Há mistérios sobre título e motivo dessa obra. Masques tem norteamento oposto a L’Isle Joyeuse, mas ambas foram escritas nos momentos de intensidade passional de Debussy. A indicação inicial Très vif et fantasque leva à reflexão. Masques apresenta flutuações dinâmicas intensas e austeridade a partir da forma  A-B-A, ou seja, uma primeira parte a percutir quintas à exaustão, por onde flui a temática, e que será basicamente a terceira parte, e a ter a intermediá-las uma contrastante, mais lenta e enigmática. Um de seus biógrafos, Marcel Dietschy, escreveria (La Passion de Claude Debussy, Neuchâtel, La Baconnière, 1962): “máscaras mordazes, fantásticas, apavorantes na branca impassibilidade, disfarce destruindo uma consciência alarmada”. Remorsos? Vislumbre de incerto percurso emocional? Lilly abandonada à sorte? Foi essa afirmação de Dietschy que levaria o notável artista norte-americano Johan Howard, que mais tarde ficaria conhecido como Dinossauro dos grafiteiros e também como o maior artista no gênero do Brasil, a realizar uma das ilustrações para meu livro O Som Pianístico de Claude Debussy (São Paulo, Novas Metas, 1982), criando instigante desenho. Para o leitor, recomendaria duas interpretações pianísticas exemplares encontráveis no YouTube: Marcelle Meyer e Monique Haas.

L’Isle Joyeuse é desse período passional. Considerou-se, durante muito tempo, que a obra fora escrita na Ilha de Jersey. Na realidade, ela teria sido composta um ano antes, período já impregnado pelo idílio avassalador. O compositor remanejaria L’Isle Joyeuse nos dias ilhéus, entre Julho-Agosto de 1904. A inspiração teria vindo do quadro de Antoine Watteau (1684-1721), L’Embarquement pour Cythère. Todavia, a pujança emocional que percorre toda essa peça extraordinária estaria a apontar que o  fulcro   procederia do envolvimento, ainda inicial, com Emma.

Não caberia neste post uma análise de L’Isle Joyeuse. Há muitas, sob os mais diversos métodos e tendências, tradicionais e hodiernas, espalhadas em livros e artigos. Creio que ao leitor poderia interessar uma apreciação muito pertinente realizada por Marguerite Long (1874-1966), pianista muitas vezes mencionada em posts anteriores por ter sido minha mestra durante anos em Paris.  L’Isle Joyeuse foi a primeira peça que Madame Long tocou para Debussy. Relata em seu livro: “Afeiçoei-me também a essa peça incrível, colorida, difícil e na qual a virtuosidade engrinalda uma harmonia, a sugerir as grandes obras do século XVIII. Tem-se visão fastuosa, um vento de alegria de prodigiosa exuberância, uma festa do ritmo onde, sobre vastas correntes modulatórias, o virtuoso deverá manter uma técnica exata, sob asas de sua imaginação” (Au Piano avec Claude Debussy. Paris, Julliard, 1960). L’isle… é a peça isolada para piano mais plena de segmentos diversificados, alguns repetitivos sobre outra roupagem, e rítmica basicamente obstinada.

Para L’Isle Joyeuse, Howard quis conhecer as origens da criação. Contei ao amigo a história a envolver a obra. Não faltaram os personagens centrais, Debussy e Emma, assim como Lilly a se afastar, La Vague (A onda) de Hokusai (1760-1849), que inspiraria o magistral tríptico sinfônico La Mer (1903-5), peixe (alusão a Poissons d’or para piano, que seria escrita poucos anos após), pássaro e outros ingredientes mais.

O belo trabalho gráfico de Penka Kasandjiev que ilustra o post sobre Debussy de 18/08/2012, inspirado em L’Isle Joyeuse, suscitou série de e-mails admirando a criação da artista. Naquele post, dedicado ao sesquicentenário de nascimento de Claude Debussy, inseri minha gravação de L’Isle Joyeuse realizada na Bélgica em 2005. Recomendaria duas gravações marcantes no YouTube, a de Wladimir Horowitz e a de Samson François. Esta última particularmente guarda qualidades essenciais da tradição francesa quanto à interpretação da obra de Debussy.

On Debussy’s works L’Isle Joyeuse and Masques and the relationship there is between the antagonistic passionate intensity of both pieces and Debussy’s personal life.

 

A Qualidade como Única Salvaguarda

Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro
do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações,
e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade…”.
Almeida Garret (1799-1854)  

A justiça há-de ser para nós amparo criador,
consolação e aproveitamento das forças que andam desviadas;
há-de ter por princípio e por fim
o desejo de uma Humanidade melhor;
há-de ser forte e criadora;
no seu grau mais alto não a distinguiremos do amor.
Agostinho da Silva (1906-1994)

Desde a antiguidade as cãs simbolizavam a concentração de conhecimentos. Envelhecer representava, aos olhares dos mais jovens, a compreensão de que aqueles que acumulavam experiências poderiam, se reunidos, orientar tal grupo. Assim foi durante muito tempo. Quando as sociedades se organizaram na formação das várias denominações de Estado ao longo da história e, a seguir, nos mais variados tipos de ordenamento, convivência, categorias, ainda nesses períodos o assim denominado – a depender dos grupos sociais – Conselho de Anciões permaneceria como uma espécie de corte decisória. No Velho Testamento, na Grécia antiga, no Império Romano e nas várias sociedades nesse caminhar da história, não apenas ocidental, a ancianidade determinaria o respeito dos povos.

Nos tempos atuais assistimos, em princípio nos regimes presidencialistas, aos personagens centrais dos Poderes Executivo e Legislativo eleitos pelo voto universal e os resultados aceitos nos países democráticos. Quanto ao Poder Judiciário do Brasil,  nos altos tribunais a escolha de seus membros decorre de decisões do Executivo e do Legislativo. O cargo não tem mandato fixo: o limite máximo é a aposentadoria compulsória, quando atinge o ocupante da cadeira os setenta anos de idade.

Reza a nossa Constituição em seu Artigo 101: “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Paragráfo único – Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.”

Pressupõem-se que os Ministros do Poder Judiciário estejam fundamentados no mérito, competência, experiência, discernimento, imparcialidade. A escolha  não deveria conter a menor possibilidade de dúvida quanto a essas qualidades, pois a vida pessoal e profissional do escolhido estaria a ser um espelho a refletir  idoneidade e isenção absolutas. O povo, mormente o que não teve acesso à educação condigna e, portanto, sujeito à manipulação, teria em quem confiar plenamente.

Sob outra égide, sentimos uma espécie de anestesia que bloqueia nosso poder de reação, sabedores que teria de haver uma reestruturação fantasticamente enorme para que eficácia, rapidez decisória e ausência de intermináveis recursos - que são do agrado de tantos advogados - dessem ao povo a certeza da total confiabilidade do Judiciário. Suspeitos poderosos têm à disposição os mais afamados advogados para sua defesa, a custos inimagináveis para o cidadão comum. É fato.

Acredito que uma medida necessária, que denotaria a absoluta lhaneza de todo um processo para a composição de um tribunal superior, residiria em outro modo de escolha de seus membros. Para tanto, haveria a necessidade de alteração da Constituição Federal mediante emenda constitucional do Artigo mencionado. O que não estaria a ser cumprido, em certos casos, é a escolha dentre os cidadãos de “notável saber jurídico e reputação ilibada”. Essas categorizações prestam-se, infelizmente, a tantas interpretações “subjetivas” na mente dos políticos!!!  Haveria que se terminar um dia, pelo menos vale a pena sonhar, com o processo que permite ao Presidente da República indicar o nome do membro do STF que, após sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e pelo plenário dessa Casa, se aprovado por unanimidade, é finalmente nomeado pelo chefe do Executivo. A depender de seu nível intelectual, pode-se incorrer em equívocos insanáveis e caracterizar, até, conotação política e de interesse. O hipotético desconhecimento dos mais elementares princípios do Direito por parte de um Presidente poderia acarretar, sempre a depender da decisão de uma só pessoa, resultado que levaria a dúvidas fortes quanto à competência do “ungido” e esse fato, por si só, é um drama. No campo das probabilidades, sempre haveria aspectos ideológicos insondáveis a nortear indicação de um nome para a Suprema Corte do Brasil.

O país poderia dar uma lição ao mundo se mudasse todo esse processo. Que a indicação de um membro para o Supremo Tribunal Federal fosse feita por representantes competentes da O.A.B. e do Ministério Público, a partir de currículos irrepreensíveis de nomes sugeridos pelas instituições para escolha daquele que deveria, doravante, empenhar-se no estudo de processos e nas decisões imparciais. Seria minimamente plausível entender que os “cabelos brancos”  mencionados estariam a evidenciar toda a trajetória plena de méritos de um escolhido, mercê de atividades precedentes nas várias esferas judiciais ou acadêmicas. Sob outro aspecto, nessa eleição intramuros, não poderiam pairar quaisquer dúvidas quanto ao não envolvimento ideológico de um futuro Ministro da Suprema Corte. A isenção teria de ser absoluta, irrepreensível, pois a menor suspeição indicaria que favorecimentos tenderiam a ocorrer nos julgamentos, tantos deles tumultuosos.

Apesar de esvaírem-se, tenhamos esperanças, ainda.

This post discusses our President’s power to nominate justices for the Supreme Court,  followed by their confirmation by the Senate, and how in my view this power may impact the goal of impartiality and independent thought one expects from our highest judicial body.

Originalidade está na lógica da criação
e se Debussy é feito de uma parte de franceses (até de Massenet!),
e uma terça parte de Moussorgsky,
lhe bastou botar uma terça parte de Debussy
na sua criação para ser original e chefe de escola!
Francisco Mignone (1897-1986)
(“A Parte do Anjo – autocrítica de um cinquentenário”. 1947)

Estou convencido de que elegemos nossos antecessores
e quais são nossos avós.
Eu elegi Mozart e Debussy como meus antepassados,
mas essa escolha não foi sempre imutável.
Há muitos anos, Webern foi meu antecessor;
num futuro próximo, poderei eleger um outro.
Mario Lavista (compositor mexicano nascido em 1943)
Entrevistado por J.E.M. em 1990

O sesquicentenário de nascimento de Claude Debussy (vide post de 18/08/2012) suscitou uma série de e-mails  competentes. Alguns em poucas palavras, exaltavam a importância do grande compositor francês, outros lembravam algum pormenor pouco ventilado na obra de Debussy. O leitor poderá observar que tenho inúmeras vezes inserido comentários do compositor francês François Servenière, que semanalmente lê meus posts em tradução Google, e os comenta, introduzindo nessas reflexões constantes alusões a outras áreas do conhecimento. Particularmente no post a homenagear Debussy, Servenière coloca posições que, por vezes, podem  ter outra aplicação se comparadas àquelas do intérprete. Explico-me: o envolvimento do compositor concernente aos seus autores eleitos, se traduzido numa assimilação espontânea, pode, mesmo nessa configuração, ficar explícito na nova criação. É natural essa possibilidade, é benéfica em parte, mas pode, se mal direcionada, encaminhar o compositor à nefasta imitação, ao plágio grotesco e até ao simulacro. Mais um compositor é talentoso, competente, autêntico e probo, mais ele terá todos os pruridos no sentido de trilhar o seu caminho voltado à originalidade, embasado na ampla compreensão do passado. Mas, para que isso ocorra, em conditio sine qua non, precisa ele ter o domínio técnico, pois é essa ferramenta que lhe dará a possibilidade de ser livre na criação. Quanto ao intérprete, tem ele outra visão relativa à partitura. Mesmo que receba uma composição criada um dia antes por um autor, estará a trabalhar já com o passado. A imitação estaria restrita à interpretação  de um repertório ascendente, esta sim podendo “conter elementos” de execuções de artista consagrado escolhido como modelo. Nesse caso, como no do compositor mimético frente a um seu eleito, estaremos diante do equívoco absoluto. Perdem compositor e intérprete, respectivamente, suas impressões digitais. Sob outra égide, Debussy impressionista (o compositor rejeitava) ou simbolista (esteve intrinsecamente ligado aos poetas do movimento), seja qual for o rótulo, estaria de maneira fulcral a influenciar todo, friso, todo o século XX, e não podemos - compositores e intérpretes -  aproximar-nos de suas obras a não ser com o maior respeito.

Insiro com prazer parte substancial do e-mail de François Servenière, a acreditar que o leitor poderá apreender opinião abalizada de um compositor e pensador francês de mérito. Seus conceitos têm interesse. Capta aspectos fulcrais relativos à criação de Debussy, não descartando o perigo da imitação e a absorção, mesmo que inconsciente, de seu estilo e a fluidez musical que teriam levado tantos compositores a se perderem na audição das Sirènes imemoriais.

“Debussy por si só é um enigma musical, ainda que encontremos em seus ascendentes ou coetâneos, da dimensão de Wagner, Schöenberg, Ravel ou mesmo Mahler, constantes ligadas à sua obra. Ausência de forma fechada, de evolução tonal ou, raramente, cadências de estilo clássico pouco frequentadas, frases com evoluções pouco convencionais… Há um ano, no Hotel Oslo, em Coimbra, recebi de suas mãos presente a conter a reunião dos seus textos sobre Debussy contidos em livros, assim como seus artigos nos Cahiers Debussy, pois toda essa soma é considerável ao tratarmos do grande compositor e das características de seu estilo. Parece-me evidente que Debussy prioritariamente, e mais Ravel e Stravinsky, teriam fundado a música do século XX e o que vem a seguir. Temos Schöenberg, presente nos estilos de seus dois alunos mais ilustres, Alban Berg e Anton Webern e por sua frase heróica ‘há ainda muita música a ser escrita em Dó maior’ e que já considerava essa modernidade em 1910, que levaria ao dodecafonismo e ao serialismo, como talvez uma senda um pouco solitária e pouco fértil para a música, enquanto que a de Debussy continuou a alimentar todo o século XX.

Acrescentaria, por minha conta, um imenso compositor que se tornaria muito influente no após pós-debussysmo e que começaria a ser reconhecido como tal, mas ainda pouco aceito pelos pósteros. Trata-se de Camille Saint-Saëns, importantíssimo e imensamente moderno para a época e, bem mais tarde, Francis Poulenc, que é também um homem de seu tempo com estilo monstruosamente claro para sua época. Refiro-me ao composto em França (pois  me esqueço, nessa enumeração, de  toda a música eslava do leste, russa, checa, romena, búlgara, húngara… e a música sul-americana de Oswald, Villa-Lobos…). Bom, precisaria ficar nesses exemplos e o fio de Ariadne é infinito, pois entramos na gruta dos compositores influentes do século XX. Aliás, podemos finalizar a enumeração nessa lista interminável?

Tive sempre um certo constrangimento ao considerar Claude Debussy, pois seu estilo forte e influente em todo o século XX  parecia-me pertencer a uma arte à parte, essencial, única, completamente ‘terminada’.  Para um póstero compositor poderia advir a questão: ‘como fazer melhor a partir de seu estilo?’ . Eu tocava Children’s Corner e amava profundamente La Mer, e não estava  longe de me tornar um debussysta na época em que fui fisgado pelo jazz e suas magníficas improvisações ao piano, mais condizentes ao estilo de meu gosto, pois o sentia instantaneamente, enquanto que, para o compositor que eu já era, imergir no estilo de Debussy seria adotá-lo. Queria, acima de tudo, ser independente no meu estilo, mesmo que este seja um melting pot de estilos anteriores, com mix de influências musicais eleitas (onde Debussy aparecia em certos caminhos). Seria eu verdadeiramente original no meu estilo em relação a outros compositores? Só a posteridade poderá julgar se minha obra é original e constitui um novo mix, uma nova ponte para o futuro.

Nos tempos atuais, aqueles que ouvem música de concerto ou erudita têm lá suas desconfianças, pois querem saber se há estilo inovador. Como compositor, a evidência é que minha música se descola da norma contemporânea, essencialmente preocupada em destruir a tonalidade, ocupando-se em navegar no pós-serialismo ou no vazio criativo  de certos demiurgos…  estaríamos no momento criativo baseado apenas em conceitos e não na interiorização e na honestidade espiritual. Assisti tantas vezes na escola a compositores ‘refazendo’ Debussy que fiquei até constrangido, pois algumas obras eram bonitas, mas a partir do seu estilo! Sim, tornava-se natural e necessário aprender o estilo do mestre. Deparávamo-nos pois com um estilo que tornava a evocação muito característica do período impressionista, estilo esse adorável, mas muito marcado…! Debussy é um compositor com estilo tão típico que revisitar seus melismas, seus arpejos e suas técnicas só pode suscitar opiniões voltadas à imitação de um seguidor facilmente detectado. Um criador cria ‘destruindo’, amalgamando o antigo com seu novo estilo, através de conteúdos de sua época, misturando todas as influências recebidas de uma maneira quase inconsciente, como faz um maître da cozinha. Aliás, é um tipo disso que realizamos, no senso estrito do termo. Tantas vezes pode tal atitude ser considerada reducionista ou mercadológica, na canção como no cinema e na música considerada ‘clássica’, quando estilos são retomados palavra por palavra, nota por nota, música por música. Ao contrário eu amo os estilos de Klimt ou de um Kush que criam o novo a partir do antigo. Não gosto absolutamente das obras de artistas que querem fazer terra arrasada do passado. Cada compositor, cada artista deve inserir-se em sua época, aceitando as novas normas, pois o mundo sempre caminhou dessa maneira, mas a história da arte não deve ser olvidada, como se tivéssemos de esquecer que falamos francês ou português para viver nossa época de maneira contemporânea. Esquecer a história, a arte, a linguagem, o seu país, é como destruir raízes.

Paradoxalmente, para bem ilustrar o de profundis de um criador que deveria ser detectável  em suas referências eleitas, na  liberdade para se embasar, afim de criar o novo, apreender as invenções e descobertas de sua época aos quais ele adere naturalmente, escolhi frase de um criador contemporâneo que me chocou profundamente na década de 1980. Explicava sua criação pelo seguinte teorema: ‘Desde que eu sinta uma referência na minha escritura, suprimo-a’. Em meu solilóquio, pensei: ‘Pois bem, se ele tivesse sido honesto intelectualmente e tivesse o conhecimento universal para tal afirmação, ele deveria deixar a página em branco’… Nós não somos senão referências e recorrências. Nossa entorno físico e mental nos molda desde a aurora de nossa vida. O livre arbítrio interviria nessa capacidade individual de assimilação de culturas tão diferenciadas no âmago de cada ser, pois ‘cada homem é uma ilha’. A obra tenderá pois a ser original, sem forçar propósitos, sem imitar o passado, somente através da escuta atenta. 

Debussy é um mestre francês do século XX, um dos maiores composi poistores de toda a história da música. Isso é indiscutível, mas todo criador deve enterrar o pai, mesmo que ele o admire tanto. É por essa razão que me distanciei do estilo de Debussy, pois este é muito forte poderia me aspirar, como ocorreu com tantos compositores. Muitos de meus amigos compunham e compõem ainda como Debussy, de tal maneira integraram seu estilo… Este dá impressão de uma magia onírica, espacial, impressionista, vaporosa. Amaria me abandonar a essas ‘facilidades’, pois aprendi na École Normale de Musique e com Michel Merlet em seus cursos particulares a escrever naquele estilo. 

O ‘dever’ de nossa época é de libertar-se do passado. Encontramos alguns aspectos debussystas em minha obra, certas cadências mozarteanas, certos contrastes orquestrais que podem lembrar importantes compositores das fronteiras dos séculos XIX e XX, algumas características técnicas à la Liszt ou Alkan em algumas criações para piano mais complexas, certas influências de Morricone nos meus espaços lentos e até determinadas orquestrações ligeiras e contrastes tchaikovskianos. Nada disso eu escondo, pois todos esses autores formaram minha escuta e forjaram minha cultura e orientaram minhas preferências, pois na vida criativa elegemos nossas escolhas e influências pela recusa (como bem explicou Henri Dutilleux em seu livro Mystère et mémoires de sons, entretiens avec Claude Glayman. Actes Sud, 1999) que nos distancia do que não gostamos, não queremos imitar, ontológico à criação.

Eu admiro profundamente Debussy, mas não quero fazer dele meu mestre, pois seu estilo ‘enfeitiça’, se bem que compreendo profundamente o prazer do meu amigo como esteta e pianista de sua obra. Creio, contudo, que o estilo de Debussy fecha um pouco a sua própria época, mesmo que ele tenha sido tão imitado posteriormente no cinema e na música erudita, a permitir a eclosão do século XX na música, mesmo se numerosos compositores e intérpretes, eu me incluindo,  considerem-no como uma personalidade maior… Não obstante, entendendo o criador, imitá-lo seria adotá-lo, cloná-lo, o que significa se perder.

Debussy é Debussy, ninguém faria melhor nesse estilo! Precisamos estar conscientes disso  durante toda a vida criativa. Em Arromanches, havia um pintor que pintava vacas no estilo cubista de Picasso. Inicialmente vacas, depois vacas, mais vacas, sempre o mesmo plano, o mesmo perfil, só as cores mudavam! Bom pintor, técnica apurada, muito sucesso, mas pode-se chamar o resultado de ‘obra’ de estilo definido na acepção da palavra? A busca do sucesso a qualquer preço!

O estilo é primordial, é necessário buscar o seu. Encontrado, quando se respira música, ficaria, em princípio, descartada a imitação. Deixar que a composição flua e que se ouça o  coração. Talvez nessa abordagem sincera se encontre a herança que Debussy nos legou no século XX. Faz-se necessário escutar sua música e admirá-la como esteta, defendendo-se de corpo e alma da imitação. Todavia, contrariamente, incorporar sua filosofia musical no ato da criação, pois essa é tão importante como sua obra. Para ser fiel a ele e à sua obra, hoje atenho-me até mais em suas frases históricas tão marcantes do que à sua música. Frases que você certamente sabe de cor, mas que amo repetir reservadamente, sem me entediar, o que me permite fugir da imitação:

‘Não escute os conselhos de ninguém, salvo do vento que passa e nos conta as histórias do mundo’; ‘Ver o dia nascer é mais útil do que ouvir a Sinfonia Pastoral’; ‘Não há teoria: basta entender. O prazer é a regra’.

Debussy é uma paixão sem limites para aquele que quer penetrar em sua obra e talvez seja isso que me provoca certo medo, pois a vida já é muito curta para um criador!” (tradução J.E.M.).

The French composer François Servenière and I maintain regular correspondence by e-mail. He reads my posts and later on sends me his comments. Two weeks ago I published a post about Claude Debussy. In this week’s post I translate the message received from him, speaking with full knowledge of the subject. It is worth reading.