Quando Afloram Homenagens

“Seigneur, disais-je, donnez-moi  la force de l’amour !
 Il est bâton noueux pour l’ascension de la montagne.
Faites-moi berger pour les conduire”.
Antoine de Saint-Exupéry  (Citadelle, CLXXXV)

Foram inúmeros os e-mails recebidos sobre o post do último dia 11, a homenagear a grande amiga Maria Isabel Oswald Monteiro, que partiu no dia 28 de Junho. Desta vez selecionei os enviados por três dos filhos de Maria Isabel, os de minhas filhas Maria Beatriz e Maria Fernanda, o do compositor francês François Servenière, fiel leitor de meus posts e que captou a magnitude da memorialista que foi a saudosa Maria Isabel, assim como o da competente pesquisadora, Profª Drª Susana Igayara, da Universidade de São Paulo,  uma das que receberia por parte da homenageada a acolhida generosa e atenta.

“Sem palavras!!!!!!! Texto justo e digno dessa linda e bela amizade que vocês dois construíram, e que você, com sua generosidade, hoje homenageia. Nessa grandeza você e Mamãe se reconheceram! Já incluí meus irmãos nessa mensagem, se me permite, vou divulgar junto a todos meus primos e amigos…. Muito emocionada me despeço e te agradeço por tão especial presente”.
Maria Clara Porto (Clarinha)

“A descriçao, seus momentos com ela, as palavras em seu blog para minha mãe foram como um raio de sol que invadiu meu coração! Obrigado por suas sinceras e tocantes palavras”!
Carlos Oswald Monteiro (Carlinhos)

“Somente hoje, de volta ao Rio de Janeiro, li seu texto sobre mamãe. É belíssimo, como era belíssima a amizade de vocês dois. Foram muitas as vezes que trocaram ideias, crenças em torno da música, pintura, gravura. Como mamãe adorava quando você chegava ao Rio. Mas não somente ela, mas papai também! De forma muito emocionada, agradeço a homenagem feita, expressa em texto de grande profundidade”.
Isabel Alice Oswald Monteiro Lelis (Belzinha)

“Que linda e justa a homenagem.
O artigo, as fotos que você escolheu. Parabéns, pai.
E comovente o que os filhos escreveram para você”.
Maria Beatriz Martins Lazzarini (Bê)

“Eu conhecia Maria Isabel apenas pelas elogiosas descrições de meu pai, até o momento em que tive a oportunidade de ir pela primeira vez ao Rio de Janeiro, hospedando-me em sua casa. Incrível anfitriã, de uma delicadeza e uma simplicidade que superavam os elogios tantas vezes ouvidos.
Era eu ainda uma adolescente e desconhecia muito o que ela dominava com primor, mas ainda assim ela se dirigia a mim com palavras que me faziam sentir como alguém de grande estima. Sua cultura era erudita, mas sua simplicidade e envolvimento com as demandas cotidianas revelavam grande equilíbrio. Tinha talento para os diversos domínios a que se dedicava, como artes, família, amigos e casa, sem que suspeitássemos quais as suas preferências. Havia cumplicidade entre ela e papai, perceptível na troca de olhares, na dedicação ao pesquisarem àquela altura a obra de Henrique Oswald, na compreensão, na amizade profunda que mantinham.
Me afeiçoei a ela e a toda a sua cativante família, em especial sua neta, Maria Cecília, com quem mantive amizade.
Tê-la conhecido foi um presente, assim como o foi constatar o resultado de sua dedicação à memória de sua talentosa família. Sua incansável colaboração com aqueles que continuaram sua luta – a exemplo de meu pai – fizeram dela uma mulher de grande valor”.
Maria Fernanda Martins Rosella (Fê)
 

“Primeiramente para dizer que é sempre mágico estar em contato com herdeiros de criadores como Henrique Oswald. O seu artigo me calou fundo, pois sabe você como sou admirador incondicional da obra do avô de Maria Isabel, como aliás escrevi em minhas Réflexions… E apreender que essa grande dama era igualmente filha do autor dos desenhos preliminares do Cristo Redentor, no Corcovado, foi para mim um choque suplementar, pois essa criação é  tão simbólica como a estátua da Liberdade ou a nossa Torre Eiffel. Há três obras modernas monumentais de amplitude universal em nosso planeta e ei-las mencionadas. Compreendo a vontade férrea de Maria Isabel de que uma placa fosse colocada ao pé do monumento, após o esquecimento oficial!!! Na realidade, isso ocorreria em qualquer lugar… Um homem político encomenda um monumento para a sua glória e se esquece do criador… Fenômeno histórico tão comum! Gostei imenso de todas fotos e retratos de uma mulher plena de humanidade, como você bem descreve em seu texto, afável e inspiradora, cultivada, talentosa e também tão propensa a ouvir e compreender os outros. Nessas fotos, aquela em que Regina está atrás de sua amiga em cadeira de rodas apresenta-se particularmente expressiva. Regina parece respirar a música que você toca, como em comunhão com o sublime. Se a obra interpretada é de Henrique Oswald, sofri o mesmo impacto ao ouvir tanto Il Neige, no post, como a Berceuse, esta no magnífico disco com o violinista Paul Klinck, pura maravilha. Comungo a perda imensa e, como você  bem diz, ‘os amigos se vão e a vida continua’. É assim, nós transmitimos a flama às gerações seguintes como as precedentes o fizeram, à maneira das corridas de revezamento que acabamos de assistir durante as Olimpíadas. Precisamos aceitar e viver a fundo os dias incríveis que nos são dados nessa Terra. O repouso virá quando não mais estivermos no planeta! Maria Isabel está hoje no paraíso dos músicos e pintores, como meu irmão Benoît, músico também”.
François Servenière

 “Seu texto-homenagem a Maria Isabel Oswald Monteiro fez com que eu rememorasse meu encontro com ela no Rio de Janeiro, na fase final de redação de minha dissertação de mestrado sobre a obra sacra coral de Henrique Oswald. E, ao rememorar esse encontro, coloquei-me a pensar em minha trajetória como pesquisadora e professora, nos temas para os quais me voltei e na importância de momentos como esses, que são oportunidades marcantes e definidoras para nossos caminhos e nossas escolhas.
Eu sou uma das pessoas que, generosamente, Maria Izabel recebeu e incentivou, atendendo ao seu pedido. Lembro-me perfeitamente daquele encontro, numa tarde ensolarada. Eu tinha dúvidas pontuais sobre as circunstâncias da composição de algumas obras, os dedicatários e, principalmente, sobre a relação entre Henrique Oswald e seu filho Alfredo, pianista que havia se tornado religioso. Eu imaginava que haveria uma ligação entre a produção de obras sacras e as atividades de Alfredo nos EUA. Nesse mesmo ateliê que você menciona, Maria Isabel permitiu que eu folheasse as cartas que Alfredo enviava para a família. É incrível como, ao ler alguns trechos, ao ver os desenhos que Alfredo fazia no papel finíssimo, eu começava a captar sua personalidade, seu humor (Maria Isabel comentava o quanto Alfredo era alegre). Aquelas cartas, entremeadas pela conversa com Maria Isabel, iam mostrando a força dos laços afetivos da família Oswald. Eis que, de repente, eu me deparo com uma das cartas que mencionava exatamente o que eu queria saber: Alfredo escrevia ao pai, em 1929, perguntando como estava a revisão da Missa, e se ele poderia tê-la logo. Com a permissão de Maria Isabel, transcrevi um pequeno trecho, que citei em minha dissertação, comentando ainda a importância desse conjunto documental.
Terminei minha dissertação em 2001, mas nunca mais abandonei o contato com a obra de Henrique Oswald, de quem falo com entusiasmo para algum aluno, todas as semanas. Um tema forte e verdadeiro fica para sempre! Sem dúvida, a divulgação da obra de Henrique Oswald deve muito à atitude constante dessa ‘guardiã da memória’, como dizem alguns estudiosos da relação entre memória e história.
Em 2011, terminei meu doutorado em História da Educação, voltado à produção escrita por mulheres sobre música. Mais uma vez, você estava na banca julgadora. E agora esse seu texto sobre Maria Isabel fez com que eu percebesse que, sem citá-la, ela está também refletida nesta última pesquisa que eu realizei, em que concluo que as mulheres tiveram um papel fundamental na preservação da memória das atividades, das personalidades, das práticas e dos repertórios musicais.
Maria Isabel realizou um grande trabalho como divulgadora e facilitadora de atividades artísticas e musicológicas, profunda conhecedora da vida e da obra de seus familiares artistas. Deixo aqui minhas homenagens e meu sincero agradecimento”.
Susana Igayara

A foto que ilustra o presente post foi tirada  durante nosso derradeiro encontro. O e-mail que recebi após nossa visita ficará guardado em minha mente e meu coração: “Quando você chegou aqui em casa e imediatamente abriu o piano, tocando duas músicas, a nossa querida ‘Il Neige’ e a ‘Berceuse’, a emoção tomou conta de mim. Ouvi-lo executar músicas de meu avô deixou-me sem fôlego. Cada nota foi valorizada e o som se espraiou doce e apaixonadamente por toda a sala. A gente chega a ficar parada para escutá-lo. Hoje te digo, não penso em outra coisa. Na alegria de sua visita, da Regina e sua neta Isabel. Penso que Deus é muito bom por ter permitido vê-lo novamente e ouvi-lo, espalhando seu talento, que é uma dádiva. Parabéns, Zé, por espalhar alegria e beleza por onde anda e obrigada por ser o musicista que você é”. Eu que sou grato  pela ventura de um dia, no longínquo 1978, ter conhecido figura tão especial, que marcaria decididamente a minha vida.

Clique para ouvir, de Henrique Oswald, a Berceuse Op.04 n.04, com J.E.M. ao piano. Gravação realizada na Bélgica.

My post on Maria Isabel Oswald Monteiro received much feedback. This week’s post is a selection of e-mails received, all expressing admiration for our friendship and for the remarkable woman she was.

Triste Realidade Brasileira

Todo o fim é contemporâneo de todo o princípio;
só a nossos olhos vem depois.
Agostinho da Silva

Londres ficou para a história. Um dia após o fim das Olimpíadas, os meios de comunicação pátrios já insistiam nos eventos que deverão acontecer no Brasil, a Copa do Mundo de Futebol (2014) e as Olimpíadas (2016). Toda essa parafernália já anunciada com ampla publicidade, que deverá se processar num crescendo vertiginoso até as datas previstas, oculta realidades que permanecerão em segundo plano.

As Olimpíadas de Londres foram planejadas em todos os pormenores, tanto os dos “templos” construídos, como o das comunicações em seus mais variados níveis, a recepção de turistas e, sobretudo, a preparação dos atletas, que valeram à territorialmente pequena Grâ-Bretanha o valoroso terceiro lugar entre os laureados.

E o Brasil? Estaríamos minimamente preparados para os eventos que estão próximos?  Vários temas mereceriam um debruçar, pois apontam para um futuro próximo no mínimo preocupante. Abordá-los sucintamente parece-me oportuno, mormente após duas semanas do término da realização londrina.

Vivemos num mundo de contradições e verdades que apenas têm validade quando interessam à determinada esfera. Se um governante permanece durante mais de uma década no poder, a mídia livre o denomina déspota, ditador, caudilho, pois, para que a democracia tenha vida, pelo menos seria o ideal, haveria a necessidade de renovação. Nos países democráticos há eleições e geralmente um candidato eleito permanece uma ou duas gestões. Nas Instituições esportivas isso não acontece e a renovação não se dá. Os escândalos que envolveriam a gestão do Presidente da CBF Ricardo Teixeira e a de seu ex-sogro, João Havelange (FIFA), bem evidenciam que a perpetuação no poder traz malefícios. Quanto ao Comitê Olímpico Brasileiro, a presidência de Carlos Arthur Nuzman perpetua-se desde 1995!  Não houve oxigenação no COB e os pífios resultados que estão sucessivamente a acontecer demonstram que algo está muito errado. Festivos, dirigentes esportivos perpetuam-se no poder e esquecem-se da realidade que poderia ser risonha num país imenso como o Brasil. Todavia, assistimos a um simulacro estabelecido através de estranha percepção do que sejam as Olimpíadas, o evento esportivo de maior visibilidade do planeta.

Um simples exemplo, insistentemente decantado pela mídia regionalista que procura não se ater às performances internacionais, caracteriza um erro profundo. Trata-se do índice olímpico, mera indicação avaliativa, a considerar o mínimo que um atleta pode atingir para chegar à competição. Reside nesse mínimo a exaltação pela mídia do atleta brasileiro que o atinge, isso feito, a “construção” de toda esperança em torno. Fixemos hipoteticamente no atletismo e na natação o número 10 como recorde olímpico e um número bem abaixo como limite para um atleta chegar às Olimpíadas. Vários países têm esportistas beirando aquela marca e o mínimo se apresenta apenas como referência. A obtenção do índice olímpico não é garantia de medalha,  apenas referência à aptidão de um atleta para determinada prova. Para o atletismo, o que conta é o cronômetro ou as medidas de altura a ser transposta, de distância a ser saltada ou alcançada através de lançamentos de martelo, dardos, disco ou peso. Assim como na F1 há carros que ficam sempre na rabeira, o mesmo se dá para aqueles que obtém o mínimo índice olímpico para a participação em Olimpíada.

Nos esportes coletivos a avaliação se faz através de torneios internacionais, e em esportes como judô, taekwondo, boxe, vela, como referências, as aferições também são realizadas a partir de torneios. Foram essas aferições preliminares de alto nível que permitiram as participações meritórias no vôlei masculino (prata) e feminino (ouro em Pequim e em Londres), futebol (prata), handebol feminino (digna participação apesar da ausência de medalhas) e láureas nas outras modalidades mencionadas. Quanto ao heróico, mas nostálgico futebol feminino, não recebe a modalidade o apoio digno da CBF. 

A ladainha de quase todos os nossos esforçados atletas era a mesma após eliminados nas provas classificatórias em Londres: “estou contente pois atingi meu índice pessoal”. Pergunta-se, é esse o objetivo de se levar contingente tão grande, a obtenção de índices pessoais, brasileiros ou sul-americanos? Olimpíada é Olimpíada e só deveria lá estar a nata do atletismo. Nossos atletas conseguem esses índices preliminares em competições não tão exigentes, tais quais os campeonatos brasileiros, sul-americanos e pan-americanos, que tantas vezes representam a aparência da verdade, pois ilusória, distante das altas performances olímpicas. Perguntará o leitor se a culpa deve ser imputada ao desprotegido atleta. A resposta pareceria clara, é ele o elo fraco de toda a engrenagem. Confederações e o Comitê Olímpico Brasileiro estariam sempre preocupados com o número de atletas em cada Olimpíada. Para o povo desavisado fica a ilusão da potência olímpica, pois centenas de participantes se dirigem a cada quatro anos para a realização de provas que os mais esclarecidos entendem, no caso, como miragem; portanto, longe do quadro de medalhas almejadas. A equação é matemática. Como exemplo, não será em uma Olimpíada que um nosso corredor que corre os 100 metros rasos em torno dos 11 segundos baixe significativamente a marca durante o certame. Todavia, para dirigentes, a presença de contingente elevado de participantes denotaria poderio, quando na realidade expõe o simulacro. E o pobre atleta, tantas vezes desprotegido durante os quatro anos de preparação inadequada, pungentemente, pede desculpas ao país e chora!

Outro aspecto importante tem a ver com a alta estima de nossos atletas. Sem o amparo que seria necessário, o atleta pátrio que chega às Olimpíadas já começa as provas eliminatórias sem confiança. Ao menos foi o que apreendemos através de respostas também tristonhas, tímidas e evasivas. Aquelas minguadas medalhas individuais vieram preferencialmente do atleta desconhecido da grande mídia e ausente das massacrantes publicidades privadas ou estatais que patrocinaram as transmissões. Tanto é verdade que as imagens desses raros medalhistas desconhecidos foram estampadas quase que de imediato nas propagandas aludidas. Discretamente, afastaram as figuras dos derrotados, o que demonstra, sob outro ângulo, um desrespeito à dignidade humana. 

Mais tangível ficou o não acompanhamento psicológico, mercê de uma ausência de visão voltada à preparação mental de nossos representantes. A mídia é também grande responsável, pois, ao incensar determinados atletas de maneira efusiva e como absolutos ganhadores de medalhas, apenas sobrecarregou responsabilidades. Cesar Cielo, Tiago Camilo, Maurren Maggi não teriam sobre os ombros o peso suplementar da imperiosa necessidade de ganhar? Fabiana Murer, ao abortar duas últimas tentativas no salto com vara, não sentiu o receio da falha que levaria ao “descrédito”? Culpa dos atletas? Parcialmente apenas, mas o equívoco residiria na apologia desmesurada que pode levar, se preparo mental não existir, ao fracasso. Independentemente do valor do nadador Tiago Pereira, ganhador de medalha de prata, não estaria ele livre de um peso consagrado inteiramente nos braços e pernas de Cesar Cielo? As lágrimas deste, a suposta descontração de Maurren Maggi, o desalento de Tiago Camilo, a inaceitável desculpa de Fabiana Murer não seriam o resultado dos holofotes intensos durante anos? Precisará Murer de um bom acompanhamento psicológico após as hesitações londrinas. Estariam dirigentes preocupados com as consequências mentais desse percalço da excelente atleta e que poderão levá-la à depressão?  

Para o COB o número de participantes é o que conta e seus dirigentes, em entrevistas triunfalistas, exaltam aquilo que foge à realidade mais pueril. Nossa participação em Londres foi lamentável e mais será em 2016. A preparação deveria estar a acontecer há décadas, mas nada se faz de efetivo. Continuaremos a ver países pequenos, com diminuta delegação, sobrepujando nossa pomposa arrogância numérica. Triste destino. Será que, para o bem olímpico do país, não poderia o presidente do COB e demais diretores renunciarem aos cargos,  deixando que uma possível nova geração diretiva tente salvar o drama anunciado para 2016? Não mais teríamos o ar rarefeito. Seria pedir muito, pois os donos do poder, após esse conquistado, não o abandonam.

Prefiro nem comentar o custo final dessas duas mais importantes competições mundiais previstas para 2014 e 2016. Chegaremos à estratosfera. Nada a fazer. Luca Vitali, artista e amigo, apreendeu situações que se anunciam, no desenho que me enviou.

Now that London 2012 Olympic Games are over, I reflect upon the poor results obtained by Brazil and the near-certainty that they will be repeated in 2016, when the Olympics will be held in Rio de Janeiro.

   

O Requinte Sonoro como Fim

Par ailleurs, je me persuade, de plus en plus,
que la musique n’est pas, par son essence,
une chose qui puisse se couler dans une forme rigoureuse et traditionelle.
Elle est de couleurs et de temps rytmés…
Claude Debussy
(Carta ao seu editor e amigo Jacques Durand. Pourville, 3 de Setembro de 1907)

As comemorações relativas ao sesquicentenário de nascimento de Claude Debussy (Saint-Germain-en-Laye, 22 de Agosto de 1862), apesar de tímidas em nosso país, trazem à pauta um dos maiores compositores da história. A importância de Debussy é incomensurável em toda a decorrência do século XX.

Se em sua formação haveria indícios de certa rebeldia contra métodos de ensino e mesmo à Instituição, seria contudo nas fronteiras dos séculos XIX-XX que, decididamente, Debussy  posicionar-se-ia como um compositor preocupado com a qualidade sonora a sobrepor a forma.  Não lhe agradando uma primeira versão de Reflets dans l’eau, primeira das peças do primeiro caderno de Images para piano (1904-1905), Debussy, em carta ao seu editor Jacques Durand, escreveria uma frase paradigmática “… resolvi, pois, compor uma outra, sobre dados novos e segundo as mais recentes descobertas da química harmônica…”. Se em tantas missivas o compositor emprega metáforas, a incursão definitiva num processo que estava a ser alimentado desde os últimos anos do século XIX faz-se “oficial”. Considere-se a  gestação da extraordinária ópera Pelléas et Mélisande  (1902), que duraria 10 anos!!!

Nestes últimos decênios têm surgido métodos analíticos variados, não descartando tabelas numéricas e gráficos, para não mais me alongar, distantes de outras tradicionais. Se enquete fosse feita entre os intérpretes, pouquíssimos consultam esses novos caminhos, por vezes áridos e cerceadores, bem mais frequentados na Academia ou por outros interessados não intérpretes, friso. Mesmo as análises tradicionais, que vigoravam durante a existência do compositor, não lhe causavam impacto. Aliás, o músico francês não gostava de ver suas obras analisadas, segundo o compositor Charles Koechlin (1867-1950). No caso de Debussy, compositor que causaria efeitos inalienáveis na música do século XX, da criação erudita à música de cinema e tantas outras vertentes, a observância de suas mensagens já estaria a apontar desideratos precisos. Confessaria bem tardiamente, em 1915,  ao seu amigo Bernardo Molinari, que “… estamos ainda na ‘marche d’harmonie’, e raros aqueles a quem basta a beleza do som”. Essa constatação englobaria um universo criativo outro que, para Debussy, era o fulcro de suas intenções. Buscar a essência essencial e, nesse caminho absoluto, distanciar-se do fulgurante, da explosão sonora tão característica em muitos compositores do romantismo e do século XX, assim como de elucubrações estruturais e formais. A busca sonora implicaria forçosamente a opção clara, contrária ao refletor ofuscante. As baixas intensidades propostas no conjunto de sua obra são testemunhos eloquentes, pois cerca de 80% de sua opera omnia navega entre p e pp; portanto, nas sonoridades seletivas. Essa escolha teria tributos a pagar. Debussy é conhecido majoritariamente por quantidade relativamente pequena de sua obra. Distante de estatísticas quantitativas relativas a de alguns de seus coetâneos, a produção debussyniana é até restrita, mas impecavelmente construída. Dizia o músico francês que escrevia quando sentia a necessidade de fazê-lo.

Se considerei técnicas analíticas erigidas nas últimas décadas, que surgem e tendem por vezes ao mergulho no esquecimento, geralmente “criadas” por não intérpretes, consideraria que três aspectos essenciais sempre deveriam estar à testa no momento desse debruçar sonoro. Salientaria: a agógica (flutuação do andamento), a dinâmica (entre as baixíssimas intensidades e raríssimos fortíssimos) e as acentuações. Outros mais tendem a ser negligenciados no que se refere particularmente à criação pianística: a onipresente mão esquerda, à qual Debussy reserva participação extraordinária, e a ter como indicativo a absoluta preocupação com as  acentuações e a dinâmica. Nada passa ao largo quando Debussy escreve a notação da mão esquerda, muitas vezes a buscar a região mais grave do instrumento. Minha mestra, a grande pianista e professora Marguerite Long (1874-1966), intérprete de Debussy e dedicatária de autores como Isaac Albéniz (1860-1909), Gabriel Fauré (1845-1924) e Maurice Ravel (1875-1937), afirmava sempre, ao considerar as obras de Debussy e de Fauré, à nous les basses. Não por outra razão o compositor francês vem a ser o primeiro músico a tudo assinalar, mormente após o início do século XX. A problemática dos andamentos é outra questão relevante. Com preocupação assiste-se hoje, mais acentuadamente, à tendência de “forçar” os andamentos de suas obras, o que provoca, em tese, um gosto para a elevação dinâmica (intensidades). Contrariam esse quesito, assumido por tantos intérpretes, intenções expressas pelo autor não apenas em seus manuscritos musicais, como na sua monumental produção epistolar. O resultado é desastroso, pois a aceleração progressiva tende a colocar as criações debussynianas para piano, principalmente as de andamento vivo, num patamar “virtuosístico” que não apenas descaracteriza determinadas obras, mas à força da repetição provoca uma espécie de modismo com seguidores “fiéis”.

Aspectos concernentes à interpretação mereceriam ser citados. Interessariam mais ao leitor com o conhecimento pianístico. Salientaria a “magia” a ser buscada no emprego dos pedais. O da direita a seguir as flutuações mais tênues, num processo que requer um aprimoramento que deveria ser meta essencial de um pianista. Deve, nessa oscilação, distanciar-se o intérprete do pedal até o fundo, raras vezes a ser utilizado o processo. O da esquerda, una corda, a ter emprego tanto nas baixíssimas intensidades como, em tantas oportunidades, em outras mais elevadas, nessa procura de timbres seletivos. Consideraria ainda a necessidade imperiosa da denominada substituição, quando, sobre determinada tecla já apoiada por um dedo, sem que esta seja “abandonada”, o pianista  coloca um outro dedo, a fim de que o legato, um dos segredos da interpretação das obras de Debussy, se concretize. Frise-se que essa prática não estaria apenas no singular, pois, por vezes, pode-se substituir vários dedos sobre teclas já pressionadas. Exemplo típico se encontra em  Et la lune descend sur le temple qui fut, segunda peça do segundo caderno de Images.     

Tenho insistido em tema que não parece ter o menor interesse entre a maioria dos intérpretes, empresários, sociedades de concerto e público receptor. No que se refere à obra para piano, tocam-se prioritariamente as mesmas composições de Debussy, e algumas como chamarizes para plateias que se identificam com o compositor nesse restrito repertório. Exaustivamente o fato se repete. Nada a fazer. Criações como a maioria das peças avulsas, os 12 Études, La Boîte à Joujoux, como exemplos, passam ao largo. Da Suite Bergamasque, pereniza-se Clair de Lune; dos cadernos de Images, prioriza-se o primeiro, mormente Reflets dans l’eau; dos dois livros de Préludes, que perfazem 24 peças exemplares, alguns apenas são frequentados. Quase sempre os mesmos. Tendo apresentado a integral para piano em quatro recitais, no Brasil e em Portugal, poderia afirmar que Debussy é um dos poucos compositores que não têm obra menor, se bem que seria o próprio autor que consideraria os 12 Études pairando num outro cimo de excelência.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, o Estudo “Pour les arpèges composés”. Gravação realizada por J.EM. em Mullem, na Bélgica.

Em todos os gêneros abordados deixaria suas impressões digitais identificadoras do estilo. Nessas marcas, o timbre inusitado, a combinação instrumental, a qualidade sonora… Considere-se ainda a devoção à natureza, não como elemento descritivo, mas como fonte essencial para a sugestão e para o simbólico.  Tem-se em muitas de suas obras o divisor absoluto das tendências na composição. Nas inefáveis mélodies para canto e piano, como exemplos, soube escolher os poetas que permaneceram: Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé, Charles Baudelaire, Pierre Louÿs e outros ilustres mais. Sob a égide poética, tantos são os títulos de obras para piano e para orquestra de Debussy com apelo  requintado. Cuidava o compositor desse amálgama sonoro poético. Nos Préludes para piano insere os títulos no final de cada peça levando intérprete e ouvinte à sugestão. 

A ilustração inserida no post é de autoria da excelente artista búlgara Penka Kazandjiev. Após recital que apresentei em Sófia, na Bulgária, em 1996, Penka inspirou-se em L’Isle Joyeuse de Debussy, uma das obras do programa, e com rara criatividade realizou a bela homenagem em que não falta exaltação a Leonardo da Vinci.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, “L’Isle Joyeuse”. Gravação realizada por J.E.M. em Mullem, na Bélgica.

Para o leitor interessado em se aprofundar no tema, sugeriria algumas obras exemplares: Claude Debussy, Monsieur Croche et autres récits, France, Gallimard, 1987, 361 pgs. Tem-se um conjunto de textos críticos do compositor. Claude Debussy Correspondance (1872-1918), Paris, Gallimard, 2005, 2.330 pgs. François Lesure, Claude Debussy, France, Fayard, 2003, 614 pgs. Creio ser a mais importante biografia do compositor. Recomendaria a consulta ao site www.debussy.fr  , do Centre de Documentation Claude Debussy, o mais significativo existente. Entre outras publicações, tem o Centro o renomado Cahiers Debussy, publicação anual.

Quanto às gravações, poderá o leitor consultar a ampla discografia de Claude Debussy e terá diante de si uma lista apreciável.  A escolha dos intérpretes tende a ser pessoal na maioria dos casos. Dos três CDs que dediquei à obra pianística de Claude Debussy, gravados para o selo De Rode Pomp da Bélgica, um foi reeditado no Brasil – “Doze Estudos para Piano” – pela Clássicos (www.classicos.com.br ).

In this post, a tribute to the seminal French composer Claude Debussy on the occasion we celebrate 150 years since his birth, I comment on some aspects of his works ― in particular pieces for piano ― with focus on issues such as interpretation of indications in the scores, performance and tempo, always bearing in mind that the essence of his creations lies in the use of selective instrumental timbres or, in his own words, the search for the beauty of sound.