De Volta um Seriado que Marcou

Bonanza

O you youths, western youths,
So impatient, full of action, full of manly pride and friendship,
Plain I see you, western youths, see you tramping with the foremost,
Pioneers! O pioneers!

Walt Whitman

As séries televisivas norte-americanas inundaram nossa televisão mais acentuadamente a partir da década de 60. Poder-se-ia dizer que um boom extraordinário se daria e telespectadores de todos os rincões ficaram durante anos fixados na tela, a aguardar o momento do episódio. Estou a me lembrar de séries como Rota 66, Os Invasores, O Fugitivo, Combate, Bonanza, Os Pioneiros, Chaparral e tantas outras. Dois fatores básicos levavam o adepto a assisti-las: a violência moderada – a insana ainda não invadira os noticiários e séries – e o episódio com fim definido, assim como um cunho moral em que o bem prevalecia, diferentemente da novela brasileira, com suas longas histórias arrastando-se durante infindáveis meses. Confesso que deste último gênero jamais assisti a um capítulo sequer, devido à dependência ao desenrolar da trama. Apesar de afluências enormes em todo o país, a novela realmente nunca me interessou.
Numa outra perspectiva, tem-se neste país o costume, enraizado em determinada camada pertencente à inteligentzia, de menosprezar preferências eleitas e não pertencentes ao que é de circulação restrita. A leitura de recente e instigante livro de François Noudelmann (Le Toucher des Philosophes), a abordar duas faces de filósofos renomados que, diante dos seus pares, preferenciavam certos compositores de moda, ditos de vanguarda, mas privadamente cultuavam o que de mais tradicional existia, dá bem a medida de interpretações diferenciadas. Será tema para futuro post.
A adolescência e a juventude deixam marcas indeléveis. Assim, sou da geração dos westerns que encantaram gerações. A pujança do gênero, que declinaria com o passar das décadas, mormente com a avalanche dos spaguettis realizados na Itália – já decorrência da decadência – não retirou dos verdadeiros aficcionados o prazer de assistir a um bom faroeste. Nesses períodos mais difíceis, louve-se Clint Eastwood, com vários excelentes filmes do gênero. Anteriormente, como não lembrar de Randolph Scott, Gary Cooper, John Wayne, Richard Boone, Alan Ladd, Chuck Connors, Gleen Ford e tantos outros. Mocinhos e bandidos que povoaram nossa imaginação e que, ao tombarem vítimas de balas certeiras, morriam majoritariamente no instante, e sequer a câmara com eles se importava. Mortes rigorosamente assépticas, contrariamente àquelas psicopáticas de inúmeros filmes atuais, onde a crueldade no seu limite máximo acompanha o algoz das macabras intenções.
Distanciei-me irremediavelmente de todas as películas em que diretores perturbados “vomitam” nas telas o que de mais escabroso possa existir, voltando-me às películas mais amenas. Essa ascensão não teria tudo a ver com a violência absurda que presenciamos no cotidiano, quando vidas são ceifadas por um nada e tantas vezes de maneira cruel e sádica? A droga, assim como a parafernália sem sentido e descomunalmente assustadora, sob aspecto outro, dos decibéis altíssimos de “gêneros musicais” ridiculamente grosseiros não seriam porventura exemplos de influências que surgem nas telas? Comentaristas não têm insistido no tema da invasão das favelas do Alemão, como conscientização do povo após Tropa de Elite I e II? Amálgama. A violência expressa a fazer o cidadão refletir. Paradoxal, mas fato.
Uma série a que assisti com prazer foi Bonanza, que teve longa duração. A série foi apresentada de 1959 até 1973. Tornou-se, em pouquíssimo tempo, um dos maiores sucessos da TV norte-americana e do mundo, e ainda hoje é tida como aquela que granjeou uma das maiores popularidades em todos os países onde foi exibida. A temática trata sempre da preservação física dos quatro personagens, o viúvo Ben Cartwright (Lorne Greene) e de seus filhos nascidos de mães diferentes: Adam (Pernell Roberts), Hoss (Dan Blocker) e Litle Joe (Michael Landon). Este último faria duas outras série de sucesso, Os Pioneiros e O Homem que Veio do céu. Outro hilariante personagem é o cozinheiro chinês Hop Sing. A depender do episódio, nem sempre todos atuam, pois nesses casos o diretor de filmagens centra em determinado membro da família.
A sensação que me traz Bonanza é a do regresso a momentos descontraídos e felizes em que esperava o dia do seriado, que sempre apresentava história conclusa, o que me parecia salutar. Traz-me nostalgia também. Felizmente o Canal a Cabo TCM está a apresentar toda a série.
Bonanza se passava no Velho Oeste com histórias sempre renovadas, apesar de se poder antecipar o final que era, logicamente, a união dos quatro Cartwrights. Todavia, perpassavam pela série valores hoje minimizados por parte da sociedade. Possuidores de uma vastidão de território – o Rancho Ponderosa – tem Ben Cartwright princípios de honradez em que palavra dada é soberana, assim como senso de justiça e generosidade. Passa essas virtudes aos filhos e o constante desafio em manter indivisível Ponderosa não exclui a cessão de determinados torrões àqueles que, inicialmente arredios, lutam por um pedaço de terra. A violência tem sua medida e jamais extrapola, a não haver tampouco a arbitrariedade movida pela ideologia no sentido de se invadir terras. Há ou ambição de celerados ou súplica de desesperados. Aqueles acabam invariavelmente tendo o que a justiça determina; estes, necessitados que buscam na lisura o chão para a sobrevivência, terminam beneficiados pelos Cartwrights. Foragidos que assaltam bancos, remanescentes dos índios que ainda atacam, comancheros e pistoleiros de plantão completam a lista dos oponentes dos heróis. Sob aspecto outro, há um misto de admiração e inveja por parte dos cidadãos de Virginia City, a cidadezinha mais próxima, em relação ao fazendeiro e seus filhos. Atores que ficariam bem conhecidos mais tarde passaram por Bonanza em determinados episódios: Leonard Nimoy (série Jornada nas Estrelas), Vic Morrow (série Combate), James Coburn, Martin Landau, Ida Lupino…
Em incontáveis “capítulos” a figura feminina aparece como “miragem”. Cada membro do grupo, com periodicidade proposta pelo roteirista, saberá cortejar a mulher, seja filha de pequeno fazendeiro ou de lojista de Virgina City, seja alguma bela viúva ou mesmo atraente mulher de saloom, ou ainda aventureira bonita recém-chegada. Quando esta última pertence à idade madura, certamente já teve caso com o patriarca Ben Cartwright. Também torna-se lógica a não continuação dos respectivos romances. Seja qual for o desfecho de uma relação afetiva, é fácil a cicatrização.
Recentemente, um episódio chamou-me a atenção. Hoss, vivido por Dan Blocker, o filho grandalhão, talvez o menos esperto, mas o mais generoso e possivelmente o melhor ator do quarteto, faz amizade com outro personagem igualmente forte e enorme, forasteiro absolutamente desprovido de ínfimo raciocínio lógico. Não distingue o bem do mal. Mostrar-se-ia violentíssimo em determinados momentos, sem ter a menor sensação de que assim procedera. Curiosamente, o personagem é extraído por inteiro do célebre romance Ratos e Homens, de John Steinbeck (1902-1968), com variações naturais. No livro, os amigos George e Lennie vivem de trabalhos esporádicos durante a forte recessão econômica dos anos 1930 nos Estados Unidos. Lennie, ingênuo, sem qualquer possibilidade de organizar o mínimo raciocínio, vaza para Bonanza. Os personagens do romance Of Mice and Men e do episódio do faroeste passam por circunstâncias semelhantes e suas mortes têm ainda maior proximidade. O livro de 1937 motivaria, bem depois de Bonanza, o filme com os excelentes atores John Malkovich (Lennie) e Gary Sinise (George). Sinise seria inclusive o diretor de Of Mice and Men (1992). Quanto à Bonanza, seria possível apreender que o produtor David Dortort, igualmente autor do roteiro piloto, buscou inspiração em figuras de tantos outros romances. Em um dos episódios, não colocaria como personagem central Mark Twain (1835-1910), o autor do célebre As Aventuras de Tom Sawyer ? Em torno do festejado tema musical de Jay Livingston e Ray Evans, foram muitos os arranjos bem elaborados que percorrem o seriado, a depender dos contextos. Seria correto asseverar que as tramas, sempre muito bem conduzidas, e essa ausência de violência pela violência, mas sim a seguir uma naturalidade sem provocar choques, tenham conquistado o público de outras gerações. O certo é que, enquanto o seriado estiver sendo apresentado, procurarei assisti-lo, sempre com prazer renovado.

I’ve always been fond of Westerns and actors strongly associated with Wild West movies: Randolph Scott, Gary Cooper, John Wayne, Richard Boone, Alan Ladd, Chuck Connor, Clint Eastwood. In the sixties one of my pleasures was to watch the long-running TV show Bonanza, the story of the widow Ben Cartwright and his three sons living on a ranch called Ponderosa and the troubles they went through: affairs of territory, conflicts with neighbors, natives and wanderers, gunfights, fleeting romances. Whenever possible I still watch reruns of Bonanza on cable TV, admiring with nostalgia its restrained violence, ethical heroes, values of honor and sacrifice, simple morality tales. Pleasant memories revisited…

A Morte e o Retorno às Mãos do Senhor

Almeida Prado (1943-2010). Clique para ampliar.

“Levantando de novo os olhos,
olhei e vi quatro carros que saíam dentre duas Montanhas:
estas eram montanhas de bronze”.

Zacarias 6,1
(Versículo inserido na Profecia em forma de Estudo nº 1 de Almeida Prado)

A salvaguarda do homem frente à existência é não saber o instante do acontecido, a inexorabilidade da visita da morte. O momento chega para todos e a maneira como nos preparamos durante a vida será determinante para a nossa partida. Se houve serenidade, se o homem pregou o bem e espalhou generosidade, todos os que o cercam, mormente os familiares, captarão essa transferência vida-morte com a naturalidade possível. Deslizes não terão importância, pois o que ficará na memória e no coração será aquilo que o ente que partiu deixou semeado através de seu amor e exemplos. Se, entre outras virtudes, ele transcendeu na Arte, sua obra poderá tornar-se imorredoura.
Na noite de 10 de Novembro último, uma quarta-feira, comunicava a Almeida Prado, um de nossos maiores compositores, que brevemente receberíamos as passagens aéreas para uma viagem a Paris, onde nós ambos faríamos parte do júri encarregado de julgar duas teses de doutorado na Universidade Sorbonne. Uma das teses aborda sua música religiosa para piano. Conversamos longamente por telefone e era notória a enorme felicidade do amigo ao ter sua criação reconhecida numa tão respeitada Universidade. Confessou-me que sentia ser um dos grandes momentos de sua trajetória musical.
No dia seguinte, mercê dos efeitos da diabetes adiantada e de complicações outras, o compositor é hospitalizado, sofre parada cardiorrespiratória prolongada e permaneceria em coma induzido até a manhã do dia 21, quando a morte veio visitá-lo, e essa figura humana transcendente nos deixou.
José Antônio Rezende de Almeida Prado nasceu em Santos e teve no Brasil três professores fundamentais: Dinorah de Carvalho – piano, Osvaldo Lacerda – harmonia e Camargo Guarnieri – composição. Se as bases pianísticas foram sólidas, as composicionais, sob a tutela de Guarnieri, ficariam indeléveis. Contudo, no convívio frequente com seu conterrâneo Gilberto Mendes (1922- ), uma das glórias de nossa música, o então jovem José Antônio entendeu que deveria buscar novos caminhos. Paris em longo aprofundamento e a passagem por Darmstadt surgiram naturalmente dessas conversas em Santos, terra natal de nossos dois grandes compositores. Esse debruçar maior em França deu-se sob a orientação de Nadia Boulanger e de Oliver Messiaem, dois ícones na música no século XX. Em Darmstadt soube apreender conteúdos de György Ligeti e Lukas Foss. Seria todavia Messiaen o compositor que mais fortemente marcaria a escrita de Almeida Prado, assim como acentuaria no músico santista o olhar místico, pois parte considerável da obra de nosso pranteado autor tem forte conotação religiosa. A inclinação ao sagrado está traduzida nos vários gêneros musicais, orquestra e câmara. Seria entretanto nas criações para coro e sobretudo na vasta produção para piano – seu instrumento eleito – que Almeida Prado revelaria por inteiro esse olhar místico, que perduraria durante décadas até os dias finais.
Como professor, Almeida Prado atuou junto ao Conservatório Municipal de Cubatão e principalmente na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Suas aulas acadêmicas eram concorridas, mormente pela ampla visão cultural que emanava de seus ensinamentos. Aposentado-se em 2000, continuou a ministrar cursos de estética musical, quando, com extrema maestria, comentava grandes criações do passado, exemplificando-as ao piano.
A produção de Almeida Prado é bem extensa a chegar a centenas de criações. Suas obras têm frequentado salas de concerto do Brasil e do Exterior, o que o deixava mais estimulado a produzir. Era membro efetivo da Academia Brasileira de Música, a convite do insigne compositor Francisco Mignone (1897-1986), como me confessaria na última conversa telefônica que mantivemos horas antes de sua hospitalização.
Tratando-se de uma singela homenagem a esse grande músico, que permanecerá pela qualidade, não me poderia furtar de revelar ao prezado leitor a interação plena entre o compositor (maratonista a correr uma prova sem fim) e o executante (atleta apto às corridas de estafetas). O intérprete, ao morrer, terá seu sucedâneo imediato. Contudo, um amálgama pode realizar-se quando compositor e executante interagem, este a propor ideias ou simples sugestões, aquele acatando-as ou metamorfoseando-as à sa manière. A integração absoluta tem resultado em criações extraordinárias por parte dos compositores e, discretamente, o intérprete recebe a decorrência de expressivas e brilhantes inteligências, a ter como consequência, tantas vezes, o maravilhamento. Assim foi com Almeida Prado. Entre 1987-1999 desceram da mente privilegiada do compositor para o papel pautado obras contundentes, pianísticas, sensíveis, totalizantes. O estímulo que discretamente buscava transmitir a Almeida Prado, para que compusesse determinadas(s) obra(s) para efeméride ou apresentação especial, jamais deixou de ter guarida por parte do amigo. Todas as suas criações, a partir desse desiderato, apresentei em primeira audição no Brasil ou no Exterior. Ao todo 12 obras, que enriquecem o repertório pianístico brasileiro e que foram a mim dedicadas. Motivo de intensa alegria.

Aquarela, pagina de rosto de Linha Melódica de Almeida Prado. Clique para ampliar.

Quando do centenário de nascimento de Heitor Villa-Lobos, coordenei caderno publicado pela Universidade de São Paulo. Das 10 composições de músicos convidados do Brasil e do Exterior, Noturnas Saudades do Rio Solimões (04/06/87) evoca, sob outra égide, o Chôro nº 5 – Alma Brasileira, do homenageado. Gravei-a em 1996 em Sófia, fazendo parte do CD Music of Tribute – Villa Lobos, lançado pelo selo Labor (U.S.A.) em 2001. Obras de Villa-Lobos e outras homenagens constantes da coletânea figuram no CD em apreço.

Primeira página de Homenagem a Camargo Guarnieri de Almeida Prado. Clique para ampliar.

Para o caderno em Homenagem a Camargo Guarnieri, igualmente publicado pela USP, Almeida Prado compõe interessante obra (06-10/10/87), a empregar, através da notação anglo-germânica, tema em que cada nota corresponderia a determinada letra dos nomes Camargo Guarnieri (C-dó, a a-lá lá, g g-sol sol, a-lá, e-mi). Para recitais que daria na antiga Alemanha Oriental, Potsdam e Berlim em Maio-Junho de 1989, meses antes da queda do muro, Almeida Prado comporia, entre 23 de Setembro e 10 de Outubro de 1988, as magníficas Três Profecias em Forma de Estudo, verdadeiras obras-primas. Gravei-as na Bélgica em 2004 e fazem parte do CD Estudos Brasileiros lançados pela Academia Brasileira de Música em 2007.

Clique para ouvir, com J.E.M. ao piano, a 1a Profecia em forma de Estudo (1988) de Almeida Prado

Integrando o livro de Prelúdios, José Antônio dedicou-me o Prelúdio nº 5 em ré menor (12/07/89), tendo na página de rosto do manuscrito uma bela aquarela do compositor. Sabedor do intrigante Estudo Eisler e Webern caminham nos mares do Sul, de Gilberto Mendes, constituído de uma linha melódica apenas, por vezes preenchida por um acorde, Almeida Prado compõe a singela Linha Melódica um Desenho Sonoro (23/04/91), a ter igualmente expressiva aquarela na página de rosto. Em 1995, Almeida Prado honrar-me-ia com os pungentes Quatro Corais para Piano sob versículos da Bíblia: 1º “Aquele que me viu, viu também o Pai” (13/04/95); 2º “Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino !” (05/04/96); “Coral de Glória a Santo Adão e Santa Eva entrando no Paraíso, levados por Jesus, o Cristo Redentor” (06/04/96); “Coral das Santas Mulheres: Santa Maria, Mãe de Jesus-Deus, Santa Maria de Cléofas, Santa Joana, Santa Maria Madalena, Santa Marta, Santa Susana, Santa Salomé, Testemunhas felizes da Ressurreição do Senhor Jesus !” (07/04/96). Tanto a Linha Melódica, como os Quatro Corais, apresentei-os em primeira audição na cidade de Gent, na Flandres. Conversara com Almeida Prado sobre minha gravação da integral dos Estudos de Scriabine para piano, que se realizaria em 2000 na Bélgica para o selo De Rode Pomp. Admirador confesso do extraordinário compositor russo, Almeida Prado compõe o intrigante estudo À la Manière de Alexander Scriabine – Étude de Couleurs en Forme de Pathwork pour le Piano (03/11/99) de 16 páginas ! Em longa carta, Almeida Prado explica a construção do excepcional Estudo, para o qual empregaria seleção de motivos existentes nos Estudos de Scriabine. Finalmente, em duas páginas suplementares, inseriu a Sequência de acordes usados nos desenhos rítmicos, sempre a pensar nos acordes seletivos de Alexander Scriabine. Apresentei-o no recital em que interpretei a integral dos Estudos de Scriabine em Gent, logo após a gravação da monumental obra do compositor russo em Mullem.
Nessa série de magníficas obras mencionadas de Almeida Prado, frisaria as Três Sonatas Barrocas – Scarlattiphonia, Triptico para piano à la Manière de Domenico Scarlatti (12-17/01/07), dedicadas à minha mulher, pianista Regina Normanha Martins. Almeida Prado era confesso admirador de suas interpretações do grande gênio napolitano.
José Antônio de Almeida Prado foi um ser privilegiado. Granjeou a admiração e a amizade de todos os que o conheceram. Estava sempre disposto a discorrer sobre música, pois tinha conceitos bem definidos, sem ser, contudo, intolerante. Se temas extra-musicais surgiam, José Antônio era aquilo que popularmente se entende como o “bom papo”, pois sabia encantar quem dele estava próximo com histórias por vezes hilariantes. Sua facilidade para improvisar ao piano em vários estilos tornou-se conhecida e admirada. Um grande compositor que nos deixa, e também uma enorme figura humana. Certamente está nos braços do Senhor !

Almeida Prado (1943-2010) was one of the greatest Brazilian composers of the 20th century. He died on 21 November in São Paulo, just two months before our trip together to Paris to take part in the jury of two theses defense at the Sorbonne. One of the thesis is about his religious music for piano. Almeida Prado wrote orchestral, choral and solo instrumental music and this legacy will live on forever. He has dedicated 12 of his piano pieces to me, and I premiered them all in Brazil and abroad. With his death, we all lost a great composer, an extraordinary human being and I lost a very dear friend. He will be missed.

Travessia, Sereias e Amarras

Crayon de Carlos Oswald (1882-1971). Clique para ampliar.

A vida é como uma vela
que vai ardendo,
quando chega ao fim
lança uma chama
mais forte antes de
se extinguir.

José Saramago

Muito me reprovo e o aprovo tanto
quanto outrora aprovei o que hoje me reprovo.

Agostinho da Silva

A cerimônia que marcou minha admissão como acadêmico honorário na Academia Brasileira de Música, no Rio de Janeiro, teve sensível saudação ao ingressante nessa categoria especial nos quadros da ABM proferida pelo ilustre acadêmico efetivo e notável compositor Ricardo Tacuchian. Seu texto me emocionou muito ao considerar a Arte como sendo uma metáfora da Vida. O tempo nos torna mais sensíveis e a comoção advém como inevitável.
Sinto-me impedido de transcrever o texto na íntegra, não pela qualidade impecável do escrito, mas por não me pensar merecedor. Ao lê-lo, Tacuchian mencionou uma frase que me levaria às reflexões. Não as externei em minha imediata palestra, pela simples razão de que elucubrações já estavam a se formar em minha mente.
A certa altura do texto, Tacuchian comenta: “José Eduardo Martins abriu mão dos holofotes dos repertórios standard para a luz de vela da música brasileira. E quanta luz ele nos revelou com sua corajosa opção !” Desde os anos 1980 tenho-me referido aos holofotes como um dos maiores males para o auto-aprimoramento. Os holofotes inebriam tantas vezes aquele que se submete à sua intensidade. Tratar-se-ia de um processo de submissão. Diria que metaforicamente, têm eles a força de sedução das Sereias, essas figuras marinhas de alta periculosidade e perdidas no tempo. Contra os holofotes deve-se, porém, tomar as precauções outrora asseguradas por Ulisses na Odisséia de Homero, que, aconselhado pela feiticeira Circe, faz-se amarrar ao mastro de seu barco e atravessa o mar povoado pelas Sereias, sem deixar, contudo, de ouvir o canto sedutor. Não cede ao encantamento, mas desfruta o prazer de ouvir. Para o intérprete, esse posicionamento poderia representar a autorepressão: amarrar-se para não sofrer a sedução. Todavia, Ulisses não deixou de ouvir as melodias do encantamento. Seria uma questão de vontade para que um outro tipo de sedução nessa metáfora não conduzisse o intérprete a uma “morte” das intenções. Os holofotes existem, não se pode evitar. Ulisses ouviu o mavioso canto, diferentemente dos remadores do barco que tiveram ou ouvidos tampados com cera para não se jogarem ao mar, seduzidos. Fugir dos holofotes seria escapar da realidade. Submeter-se à sedução constituiria o perigo. Ponderaria, o amarrar-se unicamente visando a essência essencial da música, e não à virtuosidade pela virtuosidade, poderá evitar o entorpecimento mental. E o amarrar com os ouvidos atentos faria o músico realizar a travessia sem traumas, mas enriquecido. Ficariam ao largo, bem distante do barco, a vaidade – uma doença, segundo Saint-Exupéry -, a mesmice repertorial ad aeternum, o gestual acrobático para a platéia e, como tentáculo voraz, a composição entendida como inferior ao ato da execução. O intérprete a vencer as águas povoadas pelas mortíferas Sereias.
Sob outra égide, os holofotes têm ímpar idiossincrasia pelo inusitado. Procuram mesmo desviar o seu foco. São antagônicos. O Sistema abomina o repertório pouco frequentado. Seria este, para o status quo, o anátema de suas pretensões constituídas de agentes, mídia, público conduzido e, a finalizar, o lucro como desiderato maior. Holofote é sinônimo de concessão. Palavras irmanadas que ad nauseam provocam a repetição repertorial como fator único de sobrevivência do Sistema.
A vela tem infindáveis interpretações desde a antiguidade. Chama que mantém a vida e que, pouco a pouco, ao se extinguir, leva à morte; agrupadas, estimulam a devoção coletiva; contempladas, conduziram a pena de compositores, poetas, escritores, teólogos, pensadores…; acesas na união dos amantes, alimentaram a flama da paixão; oscilando nos berços, despertaram a esperança. A aparência de fragilidade da tênue iluminação foi responsável pelo caminhar pensante das civilizações. A luz de uma vela tem como sinônimos meditação, concentração, humildade. Não se coaduna com a superficialidade ou com o desamor. Pressupõe, em suas oscilações motivadas por mínima respiração, a possibilidade da serenidade que virá a seguir, quando a chama retornar ao impassível. A luz de uma vela tem propriedades que sempre entendi surdamente musicais. A chama dança, transfigura-se em suas contorções; enriquece o prisma das cores ao modificar, como em um caleidoscópio, as suas intenções de luz; dimensiona os contrastes da sombra; proporciona-nos a metáfora da dinâmica sem som, pois suas intensidades variam sempre.
Estava ainda a refletir sobre esse binômio antagônico quando encontro meu dileto amigo e colega uspiano Gildo Magalhães, Professor Associado da FFLCH da Universidade de São Paulo e um dos mais requisitados mestres da Academia para participações em congressos e colóquios no Exterior. Retornara de Genebra há dias, onde esteve a coordenar grupo reunindo dezenas de representantes de vários países, que lá estavam a tratar propostas para minimizar dificuldades na vida de deficientes físicos. Mente tranquila, mas ágil e brilhante. Fomos tomar um curto. Cientista, sabe apreender conteúdos técnicos. Disse-lhe que estava a pensar sobre a dialética holofote-vela. Fiquei surpreso. Gildo começou a expor o multum in minimo que a chama de uma vela contém. Disse-lhe que anotaria suas precisões na matéria. Sorriu e continuou: “… a chama da vela transforma o ar em plasma, no qual os elementos constituintes se separam. Isto provoca a dinâmica da forma, das cores e do próprio brilho. O plasma é o quarto estado da matéria, além dos sólidos, líquidos e gases. Só há esse fenômeno visível a olho nu no Sol, pois ele tem toda a dinâmica – manchas solares, protuberâncias representadas pelas explosões. O Sol com o fenômeno da larga irradiação é responsável pelas perturbações na ionosfera terrestre.” Entusiasmava-me o relato espontâneo de Gildo, que continua: “A vela quando queima é também um microscópico Sol, com propriedades tão interessantes que levaram o inglês Michael Faraday (1791-1867) a escrever um dos maiores clássicos da história da ciência, ‘A história química de uma vela’, sem conhecer ainda a teoria moderna do plasma”. Nossa conversa se prolongou e, ao despedir-me do amigo, senti-me enriquecido.
Ricardo Tacuchian proporcionou-me encontrar uma chave que leva ao enigma pessoal. Vela. Enquanto a chama estiver acesa, continuarei a buscar o inusitado e a difundi-lo, repetindo-o nessa tentativa de mostrar a qualidade de autores que permanecem injustamente pouco frequentados, do passado e do presente. A própria vela está a queimar há muitas décadas. Sua chama ainda tem intensidade.
Jean Christophe, músico e personagem central da saga que marcaria gerações de leitores através desse romance notável de Romain Rolland, já a morrer diria sobre a música: “Eu nunca te traí, você jamais me traiu, nós estamos seguros um do outro. Partiremos juntos, minha amiga. Fique comigo, até o fim !” A minha senda continuará a ser trilhada. A musa permanece ao meu lado, pois a chama ainda ilumina. Que assim seja até o fim !

The speech made by the composer Ricardo Tacuchian at the cerimony of my nomination as an honorary member of the Brazilian Academy of Music led me to reflections upon the differences between the spotlight and the candle light and other thoughts.