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Faz-se o dia. Pela terceira vez acompanho o cantar dos pássaros ao amanhecer. Noites mais curtas no hemisfério norte. Johan e eu jantamos por três vezes no De Kroone, perto da capela de Sint-Hilarius, em Mullem, e percebemos as aves recolhendo-se para o repouso. Após, dirigimo-nos pelo caminho de pedras e entramos no templo. Três noites inteiras, tempo necessário para o silêncio dos pássaros diurnos. Uma coruja, talvez na cumeeira da capela, interrompeu em diversos momentos a gravação. Sentia-a partícipe. Após as sessões noturnas, as quatro obras de Lopes-Graça, inéditas, estavam registradas. Ao chegar em São Paulo, em meados de Junho, irei à minha Bragança Paulista da meditação e lá, tranquilamente, farei a seleção de todo o material gravado. Como sempre.
No final da tarde, houve o receio das cinzas do vulcão, mas o espírito de Lopes-Graça pacientou a cratera islandesa e cheguei a Lisboa, cidade que faz parte de minha respiração, assim como todo Portugal. Como amo essa terra de meu pai…

Lopes-Graça em apresentação na Academia de Amadores de Música.

Preparo-me para a longa tournée. Serão oito recitais e quatro conferências, com apresentações do Minho ao Algarve. O repertório, todo ele dedicado às excelsas obras de Lopes-Graça. Um escritor português, admirador inconteste do compositor, perguntou-me: “Por que Canto de Amor e de Morte e a longa integral das Músicas Fúnebres?” A resposta veio como indagações e certeza e dizia respeito à obra-prima. Pode ela ficar oculta pelo fato de não ter a repercussão pública necessária? Pode ela não ser frequentada por motivo temático? A obra-prima independe de razões outras. Ela é. E tanto Canto… como Músicas Fúnebres representam o absoluto. São criações do maior quilate. Sinto-me humildemente feliz como intérprete, o corredor de revezamento frente ao maratonista sem fim ― este, o compositor qualitativo ―, ao apresentá-las em primeira audição neste dia 19. Meu blog da próxima semana vai referir-se às apresentações.

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Algo coincidente ou não, ocasional ou movido por forças misteriosas, deverá ocorrer. Sem o saber, o recital deste 19 na lendária Academia de Amadores de Música, a interpretar essas obras fúnebres de Fernando Lopes-Graça, marca o décimo aniversário da morte de meu saudoso pai bracarense. Será dupla emoção e, se Lopes-Graça será o centro, lá no meu de profundis estabeleço um réquiem com meu progenitor. Tudo lá no coração. Ele está a bater mais intensamente. E que assim continue. Onde estiver, meu pai entenderá.
Preparo-me para várias entrevistas em programas da RTP-RDP. Há muito o que falar. Se a música portuguesa tem exemplos comparáveis ao que de melhor existe no planeta, qual a razão de intérpretes tão conhecidos além das fronteiras de Portugal a ignorarem? Tema delicado, mas pungente. Corrobora o que penso desde os anos sessenta. Organizadores, sociedades, críticos, todos insistem na mesmice. E os intérpretes, por motivo de sobrevivência, comodismo ou ainda pelos holofotes, cada vez mais procurados, submetem-se. Como dizia Lopes-Graça, é preciso lutar. Sou um mero soldado. Lutarei.
Seguirei no dia 20 pela manhã para Évora, a percorrer a planura alentejana. Évora, cidade envolta em mistérios…O recital dar-se-á no dia 21, sexta-feira, no Convento Nossa Senhora dos Remédios, sob os auspícios da Eborae Musica, prestigiosa instituição de ensino eborense. Já no sábado pela manhã o leitor, responsável pelo constante estímulo aos textos semanais, poderá ver as fotos do evento ao clicar www.eborae-musica.org. E a senda a se abrir …

After recording for three nights in Mullem, I flew to Lisbon. In Portugal I will give eight recitals and four lectures, going from Minho to Algarve. I’m also ready for a series of radio interviews in which I intend to discuss the quality of the Portuguese classical music composers and the dismaying lack of knowledge about them outside their home country’s border.

Quando Projeto Acalentado Chega a Termo
Capela de Sint Hilarius. Mullem, Bélgica

Confesso que cada travessia do oceano Atlântico traz-me ansiedade. Não pela viagem, mas pela longa preparação com desiderato preciso. Tudo tem de estar finalizado naquele período definido. Quando o repertório faz parte desde sempre das categorias mente, coração e dedos, a missão é repetir o já feito. A minha boa amiga Mônica Sette Lopes escreveu-me, pouco antes de minha partida, frase referente à leitura do post precedente “ Tinha lido seu post sobre o desejo de mostrar outros lados, lados não vistos. Concordo em gênero, número e grau com a necessidade de sair por esses lugares pouco visitados e parar de repetir o mais do que dito, na forma mais do que executada”.
A missão atual compreende a incursão pelo inusitado. Composições ignotas do grande mestre português Fernando Lopes-Graça. Não apenas obras, mas verdadeiros monumentos musicais. A responsabilidade é grande. Cada nota, cada compasso, cada sistema e o todo desvelado parcialmente, pois a criação do autor – o seu momento único – foi, é e permanecerá insondável. Ao partir nessa senda em direção ao interpretar obras como Canto de Amor e de Morte em seu original para piano e mais a integral das Músicas Fúnebres (as outras obras já foram apresentadas, Cosmorame por mim em 2009 e Música de Piano para Crianças, composição singela já executada, mas ainda não gravada), a sensação para o intérprete é a de que estamos a formar jurisprudência – com todo o respeito ao termo – quanto à execução. Essa assertiva apenas aumenta a necessidade de nada passar sem a atenção devida e, ao obedecer às intenções do autor, criar a própria execução. Acredito que, ao longo das décadas, o inusitado e o pouco ou nada frequentado – qualitativos, frise-se -, tenham sido responsáveis pelas minhas maiores alegrias interiores como pianista.
Confesso igualmente que toda a preparação poderia esbarrar num empecilho imponderável, o vulcão islandês Eyjafjallajökull. Durante a travessia, temi que ele se esfumaçasse ainda mais. Ao mesmo tempo acalmava-me, a considerar que a alma de Lopes-Graça, onde estivesse, estaria a proteger nosso acalentado projeto.
Após atrasos, devido ao fechamento do aeroporto de Lisboa, o avião pousou enfim em solo português. O painel apontava para muitos cancelamentos, sobretudo mais ao sul, Casablanca, Madeira, Faro e algumas cidades espanholas. O voo para Bruxelas, à medida que mudavam as posições, apontava para o imprevisível. Verdadeiro standby. Horas de espera. Motivo para a leitura e a observação.
Vieram-me reflexões. Quando do caos total em Abril, as pessoas se desesperaram. O inusitado acontecia. Como um vulcão tão distante poderia interferir nesse agitado ir e vir do cidadão? O choque sempre provoca surpresas. Nada a fazer, a não ser praguejar. E praguejaram. Mas senti, neste novo surto, que as pessoas se acostumaram. A impotência, hoje, é evidente em relação às cinzas regidas por ventos que sopram em direções previstas pela meteorologia. E os passageiros conformam-se em observar o humor do vulcão. O voo para Bruxelas, após longos avisos desconexos, enfim partiu. Ao chegar, muitas malas extraviaram-se. Tive a sorte de ver as minhas despencarem na esteira giratória.

JEM pouco antes do início das gravações. Foto Johan Kennive. Madrugada de 14/05/10.

Sem comboios àquela altura, liguei para meu guru da tomada de som, Johan Kennivé. Meu cúmplice nesses quinze anos de gravações veio buscar-me. Tivemos tempo de encontrar o dileto Tony Herbert, em cuja casa me hospedo durante todos esses longos anos. Em uma segunda-feira ainda encontramos, depois de muitas tentativas, um restaurante aberto. Nada como um bom spaghetti à bolonhesa e uma cerveja trapist (12°). O sono foi reparador a partir das três da madrugada em uma Gent com a temperatura de exceção de 6° e mais um gélido vento em plena primavera.
Manhã de terça. Já estabeleço os planos de estudos pianísticos. Em dois dias estarei a encontrar a mágica capela de Sint Hilarius. Estou ansioso. Lopes-Graça reverberando pela milenar torre de pedra do templo de Mullem! Bem haja !

My trip to Belgium on May 9 began amid the menaces of the drifting ashes from the volcanic eruption in Iceland, something that has disrupted air travels in and out of several European countries. But I believe Lopes-Graça, wherever he is, was protecting my project. Ashes cleared over some parts of Europe and my plane managed to land in Brussels, though hours behind schedule. I went to bed at 3 AM on Tuesday in Gent, already dreaming of Lopes-Graça’s sounds reverberating through the magic chapel of Saint Hilarius.

Quando a Redescoberta é um Tesouro

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Aqueles que se percam no caminho,
que importa ! chegarão no nosso brado.
Porque nenhum de nós anda sozinho,
e até os mortos vão ao nosso lado.

José Gomes Ferreira (Jornada)

Foram tantos os posts em que o sonhador visualizou o horizonte, certo de que atrás da linha imaginária tesouros estavam a ser desvendados. É bem provável que o jovem que se apresentou no Teatro Municipal de São Paulo em 1962, após longo período a estudar em Paris, já estivesse convicto de que tínhamos um iceberg submerso a ser explorado. Entendeu todavia, ao tocar pela primeira vez no Brasil a magistral Sonata para piano em Sol Maior de Tchaikovsky, recados precisos. A crítica, publicada dias após em jornal renomado e escrita por um músico que o jovem respeitava e continuou a admirar, apontava para o porquê de se revelar obra bem sepultada. Esse fato apenas ratificou tendências que se acentuariam com o passar dos anos. Tantas foram as obras apresentadas – desconhecidas do grande público – a partir de então. O inusitado não modificaria a maioria das consciências habituadas à mesmice. O sonhador ainda acredita que um dia a pouca oxigenação repertorial seja sentida pelo público. De que maneira? Após tantas décadas, já não saberia responder. O sonho acalentado na década de 60 será perenemente individual, mas, tenuemente, projetos de intérpretes conscientes, que almejam a renovação, tornam-se realidades, inclusive na divulgação de compositores da contemporaneidade.
A senda trilhada tem seu desafio maior na desconfiança ou incompreensão da maioria. É muito difícil a mudança de mentalidades relativa ao repertório pouco frequentado do passado e ao do momento atual. A troca de hábitos não surge espontaneamente, tampouco à força. Será necessário muito mais. Glorificar o sacralizado é fundamental, mas jamais o único caminho. Até que haja a mescla como ato natural, sem falsa benevolência, por parte das sociedades específicas, empresários e intérpretes, visando ao convívio constante do tradicional com o repertório ignoto de nível altíssimo, viver-se-á a parcialidade e… o empobrecimento cultural.

JEM e Lopes-Graça. Foto e verso. Sintra, Castelo dos Mouros, 19/07/59. Clique para ampliar.

A nova digressão terá início neste mês de Maio em curso. As obras de Fernando Lopes-Graça já me fascinaram anteriormente, desde a primeira impressão, quando o Mestre nascido em Tomar convidou-me, no longínquo 1959, para um primeiro recital em Lisboa. Ofereceu-me duas peças que apresentei no recital: Em Alcobaça dançando um velho fandango, das Viagens na Minha Terra, e Dança Antiga, das Bagatelas. Os dois manuscritos autógrafos, que conservei com carinho, estarão a ser entregues pessoalmente pelo intérprete ao Museu da Música Portuguesa quando dos recitais em Cascais. Ficarão no lugar devido. O Professor Catedrático de Sociologia da Música na Universidade Nova de Lisboa, Mário Vieira de Carvalho já observava a respeito dessa imensidão que é Lopes-Graça: “Há sempre uma nova perspectiva que antes nos escapara, uma nova dimensão por descobrir. Expostas à sua própria apropriação pelos intérpretes e pelos ouvintes, revelam a cada passo facetas diferentes, num processo permanente de historicidade imanente. Não são conclusas, no sentido em que cada audição nos devolvesse aquilo que nelas reconhecemos como familiar. Pelo contrário: cada nova abordagem, sobretudo por um novo intérprete, faz delas outra coisa. Suscitam um processo inconclusivo e inesgotável de conhecimento. Eis o que faz a diferença em Lopes-Graça e que o torna, cada vez mais, com o decurso do tempo, um grande compositor, um grande nome da história da música”. Não seria a minha admiração crescente pela obra de Lopes-Graça essa ebulição que se processa a partir de um maior conhecimento de sua criação? Quão mais estudo suas composições, mais aumenta o meu fascínio pela construção musical do autor. Quão mais conheço sua imensa obra literária, mais entendo ser Lopes-Graça um dos grandes pensadores portugueses do século XX.
O projeto que resultou nessa digressão encerra obras basilares de Fernando Lopes-Graça: Cosmorame (1963), Música para Piano para Crianças (1968-1976), a integral das Músicas Fúnebres (1981-91) e Canto de Amor e de Morte (1961). Já apresentara Cosmorame em 2009 durante a tournée por Portugal. Estará presente no álbum duplo de CDs que estarei a gravar na capela de Sint-Hilarius, em Mullem, na planura flamenga, entre os dias 13 e 15 de Maio, e que conterá as outras três obras mencionadas. Quanto às Músicas Fúnebres e Canto de Amor e de Morte, mantêm-se inéditas até o presente. Brevemente, a conferência que apresentarei em quatro cidades portuguesas, pormenorizando-me nos processos criativos de Lopes-Graça na elaboração do repertório em questão, estará à disposição no item Essays do site. Comunicarei aos leitores quando da inserção. Todavia, o texto de 2006, Piano sem Fronteiras, publicado on line pela Fundação Gulbenkian de Lisboa, encontra-se nos Essays.
O compositor, regente, pianista e escritor teve corajosa posição política durante todo o salazarismo, fato este que o levou a várias situações complexas. A sua não posse junto ao Conservatório Nacional devido à posição ideológica, a insistência em apontar totalitarismos, as canções de protesto, a militância política, as passagens pelas prisões do regime, o ter sido monitorado pela PIDE – Polícia do Regime -, todos são episódios que dimensionariam a criação composicional de Lopes-Graça. Sob outra égide, teve sempre a liberdade de escolher seus credos musicais. Elegeu seus compositores preferidos e, entre estes, Bela Bártok e Stravinsnky são importantes. Amou o povo como poucos, a preferenciar aquele habitante da aldeia e seu cancioneiro, os folguedos populares e as manifestações religiosas das comunidades campesinas. Dir-se-ia que o abstrato que provoca forte impacto e o paisagismo físico-espiritual frequentam o pensar de Lopes-Graça. A dimensão universal viria dessa fusão absoluta das tendências musicais existentes, mais o seu interior enriquecido pelos acervos que a vida lhe proporcionou.

Desenho de Luca Vitali. Maio, 2010. Clique para ampliar.

Interessou-me, após a gravação para o CD Viagens na Minha Terra de 2003 para o selo Portugaler, em que constavam unicamente obras de Lopes-Graça, essa atração pela morte, uma das fixações. Considere-se que duas das obras que serão apresentadas em primeira audição, Canto de Amor e de Morte, um ápice na criação portuguesa de todos os tempos, e a integral das Músicas Fúnebres, nove tributos a amigos que partiram, apresentam características a deixar evidente um idiomático técnico-pianístico do compositor, fixado, em parte, em seu de profundis desde os anos 30. O leitor poderá ouvir Três Epitáfios de 1930 ao clicar nos links no final do texto. O tríptico já não seria uma antevisão da mors certa hora incerta? Gravei-o em Leiria para o CD mencionado do selo Portugaler. Intriga o terceiro epitáfio, Para o Autor. Cosmorame , em suas 21 peças, torna bem transparente a intenção de Lopes-Graça de ver a união dos povos. Música de Piano para as Crianças é a síntese da síntese de um piano voltado ao miúdo em seus primeiros passos.
Atravessar novamente esse Atlântico e novamente poder estar no interior da Capela Sint Hilarius, sob a supervisão do incomparável engenheiro de som Johan Kennivé, e deixar registradas essas quatro composições de Lopes Graça gratificam as décadas de dedicação amorosa à música. Sint-Hilarius várias vezes percorreu outros posts. É a magia incrustada na Bélgica flamenga. Deslocar-se após as gravações para Portugal, percorrendo-o do Minho ao Algarve a interpretar essas quatro criações do Mestre de Tomar, torna-se raro privilégio.

On my 2010 concert tour in Portugal in May-June I’ll visit Lisboa, Évora, Tomar, Cascais, Lagos, Portimão, Lagoa and Braga. The recitals will present works by one of the main Portuguese composer of all times, Fernando Lopes-Graça: Cosmorame (a series of piano pieces fostering the friendship among countries), Música de Piano para as Crianças (Piano Music for Children), and the world premiere of Canto de Amor e de Morte (Song of Love and Death) and Músicas Fúnebres (Funeral Music).

Clique para ouvir os Três Epitáfios, de Fernando Lopes-Graça, com J.E.M. ao piano:

1. Para um céptico
2. Para uma donzela
3. Para o autor