Artista da Hiper-Super-Ação

Você não se sente livre sendo filho,
você não se sente livre sendo mãe.
Livre é um caminho crítico,
por felicidade na liberdade.

Luca Vitali

Mestre Luca Vitali e Evilásio Cândido. Clique para ampliar.

Em posts anteriores, referi-me ao emprego inadequado de certos termos. Outros mais, à força da reiteração, banalizam-se e não mais correspondem à sua real acepção. Incluiria nessa categoria a palavra superação. Igualmente mencionada ad nauseam em propagandas e nos meios de comunicação, raras vezes adequa-se ao verdadeiro sentido que deveria ter. É um fato com que nos deparamos a todo instante. Em qualquer das atividades humanas há aqueles que conseguiram a superação após vicissitudes de toda a ordem, assim como há a sua “aparência” em tantas mais figuras divulgadas pela mídia. Todavia, legião de verdadeiros heróis poderia ser citada. Felizmente esta existe, a fim de que exemplos dignificantes sirvam como faróis para a trajetória do homem. Já mencionei no post anterior Edson Dantas, bi-campeão da Maratona de Nova York na categoria amputados, como cidadão forjado no destemor e que soube superar o que poderia parecer impossível.
Há contudo uns poucos, raríssimos, que ultrapassam a aplicação do termo superação. Incapacitados para a vida e dependendo inteiramente de ajuda diuturna, representam esses seres extraordinários exemplos para todos aqueles que, pelos mais variados pretextos, tendem a viver na lamentação. Quando a fé inabalável – a que remove montanhas – tem a alimentá-la a força criativa sedimentada pelo tempo, surge o herói verdadeiro, o demiurgo que encontrará seu espaço e será paradigma para todos os mortais. Ergue-se sob a égide da Hiper-Super-Ação, figura acima das tão decantadas superações, válidas, inquestionáveis, mas apenas superações.

Evilásio e seu universo. Clique para ampliar.

Através de relatos pungentes de Luca Vitali, habituara-me a ouvir a saga de Evilásio Luiz Cândido, um vitimado pela paralisia cerebral. No inícío dos anos 90, o adolescente, assistido pela Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), com extrema dificuldade externou a Luca Vitali o seu desejo de pintar, de mostrar ao mundo as aspirações acalentadas às quais o destino parecia opor-se. Foi Luca que, ao conhecer o drama de Evilásio, indicou-lhe a senda da luz, aquela que, ao ser percorrida, pode explicar a passagem do homem pelo planeta. Torná-lo exemplo. Apreendeu o mestre que a vocação de Evilásio seria a de pintar, sonho aparentemente irrealizável. Mas como ajudar alguém que em cadeira de rodas, sem poder fazer uso dos membros superiores e inferiores, com sérios problemas de coordenação da fala e de outros movimentos corporais, inclusive da cabeça e da boca, a encontrar realização na pintura? A AACD já adaptara uma tiara, a fim de que Evilásio pudesse escrever. Luca adaptou à tiara um pincel. Isso se deu em 1992. Magia. Tiara do desvelamento, possibilidade única para que o imaginário rico de Evilásio pudesse vir à superfície. Tiara da esperança, da concretização da luz. Pincel, instrumento a fixar os mistérios da mente. Houve momentos de desalento por parte do discípulo, não relacionados ao desejo final, mas às próprias dificuldades sobre-humanas do aprendizado. A técnica lhe foi ensinada com paciência e relação de afeto: planos, cor, perspectiva a partir dos tons claros aos escuros, entrada da luz e das sombras, a noção das distâncias, harmonia, dimensões dos quadros, do pequeno à grande tela, misturas, limpeza de pincéis. Evilásio dedicou-se com afinco, aprendeu o métier e hoje, amparado pela dedicadíssima mãe Dilza – entre outras tarefas, é ela que diariamente carrega o filho ao subir os 12 degraus que levam ao quarto de dormir -, pela irmã Juliana e a ter como verdadeiro anjo protetor Eliana Pereira Bento, carinhosa especialista a cuidar dessa difícil comunicação de Evilásio com o mundo que o circunda. Eliana é fonoaudióloga e tem acompanhado o desenvolvimento de Evilásio há longos anos, não apenas a solucionar problemas do cotidiano, mas também estabelecendo contatos com os que se interessam por arte. Frise-se o apoio que o artista recebe até o presente do Núcleo Assistencial Irmão Alfredo.

Flora. Pintura de Evilásio Cândido. Clique para ampliar.

Luca confessou-me que jamais interveio nos desideratos do discípulo. Ele é o mestre a guiá-lo, tão somente. A temática criativa de Evilásio passaria a brotar como o magma das profundezas da terra, e o interior singular do pintor tem emergido em deslumbramento da cor, em apelo à vida e à compaixão. Como não pensar no Douanier Rousseau (1844-1910) e suas florestas tropicais, fauna e flora, oriundas da imaginação?

Primavera. Pintura de Evilásio Cândido. Clique para ampliar.

Impressionaram-me pinturas brotadas não apenas do espírito criador, mas de uma reflexão concernente à vida, seus embates e conflitos, mas igualmente dessa incessante busca da pureza do espírito e da luz como almejo final. Se pinturas como Flora e Primavera traduzem um universo que o homem teima em extinguir; se Recanto leva-o a pensar num abrigo tranquilo para um Evilásio morador em casa simples e prestes a vê-la demolida pelas máquinas impiedosas da modernidade; se Israel, representado pela árvore enroscada por galhos que a sufocam, estaria a lembrar um país sem paz duradoura, mercê de intolerâncias; uma outra árvore, aquela que conduz o olhar à luz em Iluminada, não seria a confissão desse artista que tem como fim único a aspiração do bem e do belo? Não representaria a Ponte, a transição do “impossível” a almejar a plena humanidade?

Recanto. Pintura de Evilásio Cândido. Clique para ampliar.

Quis conhecer Evilásio. Sua figura, constantemente exaltada com emoção por Luca, contagiou-me. O amigo agendou esse encontro. Ao leitor diria que Evilásio é um ato de fervor. Entrevistei-o, a questionar-lhe os porquês da opção, a relação com a vida, possíveis desencantos pelo impedimento quase que absoluto de participar do cotidiano de todos. Suas necessidades básicas têm de ser acompanhadas. Tem alma pura e seus sentimentos revelam grandeza de espírito. Evilásio ultrapassa qualquer julgamento a respeito da superação. É ele essa encarnação da Hiper-Super-Ação, pois as vicissitudes imprimiram em seus 33 anos de existência o sentido do espírito solidário, do amor vertido nesse pincel preso à tiara que pouco a pouco traduz o que sente em cores vivas, a natureza em festa ou em paz, os miúdos em seus folguedos. Deles participa na imaginação e no olhar, sem jamais ter tido a oportunidade de fazê-lo fisicamente. Sente ternura pelas crianças. Ama a vida e a humanidade, sem quaisquer barreiras. Um iluminado.

Israel. Pintura de Evilásio Cândido. Clique para ampliar.

Fiz-lhe muitas perguntas. Respondeu a todas, apesar da complexidade da fala. Pergunta: O que é liberdade para você? Resposta: É poder ir a qualquer lugar sem sair de minha cadeira de rodas. Apesar de todas as dificuldades, sou livre e viajo quando estou pintando e procurando as cores, que são a minha luz. P: Luz, indaguei? R: Sim, luz é coisa de Deus e eu me sinto um iluminado ao fazer o que mais amo. Realizar tudo sem medo de ser feliz e de poder sonhar. P: O Evilásio gosta da natureza e das crianças. Qual a razão dessas preferências? R: Amo a natureza, pois os grandes espaços me dão o sentido da vida e da liberdade. Amo as crianças, pois participo interiormente de suas brincadeiras. P: A natureza parece estar sempre em harmonia nos seus traços. Como você a recria? R: Eu sei que ela está lá. Televisão e livros mostram imagens que nunca conhecerei. A natureza que eu pinto, árvores, campos, é aquela que está dentro de mim. P: Há uma quase fixação em cenas do Natal, como demonstram seus cartões postais, que propiciam parte de sua subsistência. Seria fruto de sua infância difícil? R: Jesus e Natal representam uma coisa só. Sem o menino Jesus o que seria do Natal? P: E Luca em sua vida? R: Não tenho o que falar, só a agradecer pelo fato de ter acreditado em mim. Incentivou-me a ser o que sou. Mesmo quando está longe, ouço a sua voz me aconselhando. P: Sei que você gostaria de conhecer a França e que estuda não apenas francês, como português. R: Estudo para estar preparado. Francês com a professora Maria Lúcia Vaz Guimarães, mas também português, pois tenciono escrever um livro.
Eliana Bento Pereira ratifica as palavras de Luca Vitali. Para a fonoaudióloga, tudo é extremamente difícil para Evilásio, mas jamais o artista desiste. “Há uma força descomunal nesse ser humano que não conseguiria sobreviver sem atenção diuturna. Procura retribuir carinhos com o amor que suas pinturas traduzem.”

Iluminada. Pintura de Evilásio Cândido. Clique para ampliar.

Observa-se que, para aqueles que superaram adversidades, geralmente a compensação acabará dando alento novo à vida. Para Evilásio, o impasse permanente está sempre a apontar ou para o naufrágio à espreita, ou para a absoluta impossibilidade física, com exceções da mente criativa e da tiara-pincel redentora. Para Evilásio, a hercúlea vontade de expor ao mundo a vocação artística, apesar dessa sofrida dependência, é inequívoca. A arte não trouxe a restauração física, tampouco a possibilidade do ir e vir. A pintura é para Evilásio a própria mensagem divina, a revelar ao homem a sua fraqueza ao lamentar-se seja qual for a situação. A paralisia de Evilásio que, paradoxalmente, tornou-o pintor e até digitador de um computador, é o sinal Superior dado a todos nós de que se amor e esperança houver, a redenção se dá. Evilásio não é apenas o ato de amor, mas também o estímulo vivo para os incapacitados físicos, a lição permanente para os que têm o privilégio de conhecê-lo.
Através do site www.projetoevi.org e do e-mail evicandido@gmail.com, pode o leitor ter acesso aos seus cartões de festas natalinas, aos calendários por ele idealizados e a sua pintura singular. Cenas do Youtube revelam parcela desse universo desconhecido por nós, razão de viver de Evilásio Cândido:
http://www.youtube.com/watch?v=dBBjr2SAeFU

Ponte. Pintura de Evilásio Cândido. Clique para ampliar.

Evilásio Cândido is a 33-year-old painter. What sets him apart from other artists is that he was born with brain paralysis and can only move his head and eyes. His severe disabilities make communication difficult, but he managed to express to the painter and graphic designer Luca Vitali his wish of learning to paint. It was so that Luca began to instruct him in the techniques of artistic painting, which he has learned with gigantic determination, working with the paintbrush attached to his forehead. This post tells a little of the story of this extraordinary human being, his thoughts, his art, his efforts to make something of his life, his refusal to give up, his permanent lesson of encouragement for those who have the privilege of knowing him.

Ayrton Senna Racing Day

Viviane Senna e seis integrantes da TA LENTOS. Clique para ampliar.

Amor à vida no tempo
corra bem ou corra mal…

Agostinho da Silva

No post anterior escrevia que chegara bem tarde da noite de minha semana musical em Goiânia. Às seis e meia da manhã do dia seguinte já estava no autódromo de Interlagos. Participar pela segunda vez da Maratona de Revezamento Ayrton Senna Racing Day em sua 6ª edição foi uma grande alegria. Nossa equipe TA LENTOS foi pouco a pouco chegando, pois cada integrante já era conhecedor de sua posição no revezamento. Competia a cada corredor da TA LENTOS dar uma volta no lendário circuito. Fui o segundo a sair após receber a braçadeira de Franco, bem mais jovem e mais rápido do que eu, o Matusalém do grupo. Para esta prova Regina e Cristina não puderam correr e foram substituídas à altura por Paulo e Fernando. Curvas, descidas e subidas, entre as quais aquela temível que leva à reta dos boxes e que é mostrada em uma das ilustrações, constituem o belo traçado do autódromo. Assim mesmo baixei meu tempo em quase dois minutos em relação ao ano passado nesse percurso de 5.275 metros, distância para cada integrante das equipes de oito corredores. Em post anterior descrevia a sensação realmente intensa de percorrer o circuito de Interlagos (vide TA LENTOS – Sinônimo de equipe solidária 29/11/08).
O congraçamento nessas provas de revezamento é grande. Todos imbuídos de uma intenção única, a de participar e conviver durante aquelas prazerosas horas.
Novamente nossa equipe recebeu a simpática recepção de Viviane Senna, irmã do grande tricampeão mundial de Fórmula 1 e dedicada organizadora do evento.

Edson Dantas, Ezequiel Costa e J.E.M. Interlagos 08/11/09. Clique para ampliar.

Um fato chamou-me a atenção. Durante o aquecimento passava por mim um corredor amputado da perna esquerda pouco abaixo do joelho. Exercitava-se desenvolto e notava-se tratar-se de alguém experiente. Continuava meu aquecimento quando, ao cruzarmos o caminho uma outra vez, indaguei-lhe a respeito. Disse-me que perdera parte do membro em acidente e que corria com prótese há alguns anos. Quis saber mais, mas o nosso atleta prometeu continuar o diálogo, pois estava a exercitar-se em várias velocidades. Chegou o meu momento, fiz o percurso e passei a braçadeira para Américo, colega de equipe. Como em prova transpira-se muito, há a necessidade de alongamento após a corrida e ingestão de líquidos. Preferencialmente trocamos de camisa uma ou mais vezes após o término. Lá pelas tantas chegou o atleta amputado, que ainda deveria participar. Fazia-se acompanhar daquele que o precederia, Ezequiel Costa, também amputado, de um braço. Continuamos o diálogo interrompido. Soube tratar-se de Edson Dantas, excepcional corredor. Atencioso e modesto, disse-me que era bi-campeão na categoria amputados da concorrida Maratona de Nova York. Estava feliz, pois regressara a poucos dias dos Estados Unidos com o tempo para os 42.200 metros percorridos em 3hs16’. Tem 43 anos e invulgar disposição. Na categoria, é tricampeão da São Silvestre e ostenta prêmios em lugares os mais diversos. Utiliza-se de uma prótese alemã especialmente elaborada para ele. Apreendi que a tal prótese é constituída de fibra de carbono, a conter várias especificações ultramodernas, proporcionando ao atleta uma impulsão superior nas passadas. Como os dois teriam ainda de participar, pedi ao Américo para tirar uma foto. Sérgio Yuji disse-nos mais tarde que Edson Dantas passou por ele como uma flecha. Pudera, estava o amigo diante de um dos melhores atletas paraolímpicos da atualidade e especialista também nos 5 e 10kms. É surpreendente e emocionante verificar essa disciplina que leva à grande superação.

Subida em direção aos boxes. No pulso esquerdo a braçadeira do revezamento. Foto Webrun. Clique para ampliar.

Pouco a pouco os oito de nossa equipe foram cruzando a linha. Findava-se o revezamento. Fomos um pouco mais rápidos do que no ano anterior. Isso para nós não tem a menor importância. Estou a me lembrar da frase de Sérgio Yuji Yokoyama quando da nossa Maratona em 2008: “O melhor resultado não é da equipe que consegue o melhor tempo; o melhor resultado é daquela que consegue desfrutar da alegria, do prazer, da satisfação de estar entre amigos e fazer perdurar isso pelo maior tempo possível…”. Não apenas Sérgio, mas Sato, Ademir, Américo, Franco, Paulo e Fernando partilham da mesma opinião. Alguns de nossa equipe correrão a São Silvestre em seus 15km. Américo e Sérgio, certamente. Já fixamos o encontro em frente ao metrô Brigadeiro no próximo 31 de Dezembro. Sairemos lá atrás, mas o importante será a permanência irmanada durante o longo trajeto, apesar de nossos ritmos diferenciados.

TA LENTOS completa e o capacete do ídolo Ayrton Senna. Clique para ampliar.

Findava este post, horas após ter dado o recital de lançamento do álbum duplo de CDs contendo a integral de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano. (vide Jean-Philippe Rameau – Origem de Fascinante Envolvimento, 14/11/09). Qual não foi minha alegria ao ver a TA LENTOS completa a assistir ao recital. Na fala que precedeu à apresentação, mencionei o fato de tê-los presentes. Se as mensagens musicais serviram para uma outra categoria de congraçamento, comprovaram aos queridos amigos da equipe que os meus dedos correm bem mais velozes do que as septuagenárias pernas. Sob outro aspecto, Luca Vitali, atento, conversou com integrantes da TA LENTOS após o recital. O artista, jocosamente acaba de me enviar sua interpretação do grupo nipo-brasileiro. Uma só alegria.

TA LENTOS no desenho pleno de humor de Luca Vitali. 25/11/09. Clique para ampliar.

Once again I participated in the relay marathon held yearly in São Paulo at the Interlagos circuit, the venue of the F1 Brazilian Grand Prix. I was one of the eight members of the “TA LENTOS” team. This time I had the chance to meet a man of exception, the amputee runner Edson Dantas, who has twice won the New York City Marathon and three times the local Saint Silvester Road Race for athletes with physical disabilities, proving that determination can push us to new limits. “TA LENTOS” didn’t win the race, but we had a great time together. Some of us have already arranged to meet at the Brigadeiro subway station on 31 December to run the 15 km course of the Saint Silvester competition through the hilly streets of São Paulo.

Cidade que Cultua a Música

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Goiânia nasceu para ser capital,
nasceu sem infância histórica,
sem adolescência interior,
madura demais para tão pouco tempo de criação.

Nasr Fayad Chaul

Há mais de duas décadas visito Goiânia, não com a frequência que desejaria, mas sempre com imensa alegria. Rever amigos e sentir em pleno Planalto Central uma cidade pujante em seus 76 anos de existência. Realmente uma urbe agradável. Seus belos parques causam forte impressão. Dei muitos recitais ao longo dos anos. Cursos de piano, conferências e participação em bancas integraram-me ao convívio singular goianiense. A cidade faz parte de meu universo de afeto. Muitos foram os músicos de qualidade que conheci em Goiânia e que estão a batalhar pela causa. Mencionaria, como baluarte da sólida escola pianística goianiense, a saudosa amiga Belkiss Carneiro de Mendonça, formadora de gerações de bons pianistas e professores, entre os quais Glacy Antunes de Oliveira, que se destaca com produção relevante.
Fui convidado pela dedicada Professora Gyovana Carneiro, da Universidade Federal de Goiás e uma das organizadoras da série Concertos na Cidade. Juntamente com Ana Flávia Frazão, outra competente Professora da mesma Instituição, também da nova geração, tem conduzido uma bela programação, a contar com as parcerias da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e do Centro Educacional SESC Cidadania. Recital, conferência e também participação como membro de júri de Concurso de Jovens Talentos da EMAC 2009 preencheram minha semana no começo de Novembro.
O recital se deu no ótimo Auditório do SESC com um público entusiasta, o que contagiou o intérprete. A conferência, no Auditório da EMAC-UFG, impressionou-me pela qualidade das perguntas de professores e alunos, quando dos debates. O Concurso fez-me pensar. Só aceitei participar como jurado por saber que não haveria qualquer pressão, tão comum em outros certames do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Fiquei deveras feliz ao ouvir jovens talentosos e dedicados buscando realização através da música de concerto. Juventude sadia, estudiosa. Ouvimos belas vocações. Fui incumbido de dar os resultados. Conversei em público com os candidatos. Frisei com veemência que todos eram vencedores, pois subir em um palco diante de júri e realizar provas a contento requerem não apenas esforço, como amor, dedicação, disciplina e coragem. Não há vencidos. O resultado, infelizmente, tem de proclamar os mais acurados desempenhos.
Aproveitei umas poucas horas de uma tarde que intercalava calor e chuva para correr 7,5km no exterior do belíssimo parque Areião, percurso a contemplar longas descidas e subidas. Uma felicidade. Tinha de me preparar para a Maratona de Revezamento em São Paulo.
Dois importantes jornais da cidade entrevistaram-me: Diário da Manhã (Aline Mil) e O Popular (Edson Wander). As matérias foram publicadas nos dias 3 e 4 de Novembro, respectivamente. Pedi a autorização, que me foi concedida gentilmente pelos órgãos de imprensa, e reproduzo nesse post as entrevistas na íntegra.

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Diário da Manhã (3 de Novembro de 2009)

Pergunta: O projeto Concertos da Cidade é voltado para um público que não tem o costume de apreciar a música clássica ou nunca entrou em contato com esse nicho da arte. Como você enxerga essa inserção da música clássica no dia-a-dia do brasileiro? Nós caminhamos para uma maior difusão desse tipo de trabalho no país ou estamos cada vez mais longe disso? Resposta: É fundamental (a inserção da música erudita no dia-a-dia do brasileiro). Há um decréscimo progressivo da música clássica, dita de concerto, junto às massas. Fatores múltiplos como elitismo, propagação desmesurada da música de alto consumo, como rock e seus derivantes, sertaneja em todos os níveis e muitas outras manifestações. Diria que a música erudita, clássica ou de concerto tem a magia da perenidade – quando qualitativa – e, por não ser descartável, pode proporcionar ao homem a reflexão e a apreciação do belo, que tem tantas outras ligações com o aperfeiçoamento individual.

P:Você já viajou bastante, estudou fora e se apresentou em vários lugares. Como funciona essa difusão da música clássica lá fora? R: Há lá fora e lá fora. A gradação depende do lugar onde há a apresentação. Creio que o respeito que se tem ao cidadão em todos os níveis, desde o cuidado dos governos quanto à saúde, à educação e à segurança, tenha influência decisiva. Faz parte dos costumes de muitos países cultuar o passado, seja através da conservação dos museus e dos logradouros históricos, seja na preservação das culturas. Para a música, o intérprete é o elo que transporta a criação do compositor ao público. Divulga-se e preserva-se a tradição em tantos países. Ir a um concerto tem essa feliz rotina que se encontra em outras ações, como ir à missa, a um passeio, conviver com a família e com os amigos. Faz parte dos costumes e isso é salutar.

P: Dos visitados e conhecidos, em qual país o senhor mais admirou o tratamento e a valorização dada à música erudita. R: Todos nós elegemos nossas cidades e países. Faz parte da natureza humana. Tenho especial afeto por Portugal, Bélgica, França, Bulgária, Romênia… Diria que já visitei dezenas de vezes Portugal, sempre para recitais ou conferências. Sou um admirador incondicional da música erudita portuguesa, do barroco à contemporaneidade. Tantas outras vezes estive na Bélgica para apresentações e gravações, todas realizadas na mágica capela de São Hilário em Mullem, no coração da região flamenga. Data do século XI e, dos 20 CDs que gravei no Exterior, 15 foram naquela bela capela. A França está enraizada através de minha formação com grandes mestres. Mantenho relação profunda com Paris, mercê de meu trabalho relacionado a Claude Debussy e a Jean-Philippe Rameau, compositores extraordinários.

P: Onde o sr. se sente mais a vontade, nos grandes palcos ou nas apresentações mais reservadas e com produção mais tranquila, como essa que vai ser feita em Goiânia? R: Desde meados dos anos 90 estou mais ligado às gravações. Prefiro-as à apresentação pública. É um ledo engano pensar que microfones não captam a alma do intérprete. Tudo está lá. Aos 71 anos dirijo-me à idade da síntese e a gravação tem a magia de registrar o que realmente sinto e penso. Sim, o palco é importante, mas pode tantas vezes representar o culto ao holofote. Sob outro aspecto, desde os anos 80 me apresento em Goiânia. Faz parte de meu universo de afeto.

O Popular (4 de Novembro de 2009)

Pergunta: O que pesa mais na hora de escolher o repertório de seus concertos? Resposta: Habitualmente, o intérprete herda repertório sacralizado. Se considerarmos o amplo leque a abranger as salas de concerto em países que acatam a música denominada clássica ou erudita, verificamos que uma parte do repertório, bem menor do que a ponta de um iceberg, é apresentada em público. Ousaria dizer que não ultrapassa um dígito o percentual do qualitativo apresentado para as platéias ávidas por ouvir sempre as mesmas obras e, de preferência, os mesmos intérpretes. Até os 30 e tais anos aprendi e toquei muito o repertório super tradicional, importantíssimo para a formação de todo pianista. Mas, a uma certa altura, parei de tocar por três anos. Ao retornar, em fins dos anos 60, a escolha estava feita. Só estudaria aquilo de que gostasse e um imenso universo se abriu.

P: Há uma crítica frequente de que nossas escolas pouco estudam e executam os compositores brasileiros. O senhor comunga dessa visão? R: Não é bem assim. Toca-se sempre as mesmas obras, de Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e tantos outros. Mas toca-se. Não há a vontade por parte de tantos professores de sondar o inusitado, e ele existe. Estou a me lembrar de Henrique Oswald, o nosso grande compositor romântico. Quando iniciei os meus estudos relativos à sua obra e à sua vida em 1978, tocava-se dele para piano duas ou três peças apenas. Isso é fato. Minha tese de doutorado foi sobre Oswald, no longínquo 1988. Gravei cinco LPs no Brasil e três CDs no Exterior contendo expressiva parcela de sua obra de câmara e para piano solo. Presentemente, mais de uma dezena de teses e gravações esparsas estão a apontar para um caminho que deu certo.

P: O senhor se aposentou na USP, mas há ainda alguma relação extemporânea com a universidade ou outras universidades? R: Tenho ainda um orientando, que defenderá sua dissertação de mestrado, e três alunos de graduação. Por motivos pessoais, após a compulsória dou as aulas em minha casa e no fim do semestre repasso as notas à secretaria. Brevemente estarei totalmente sem relação com a Universidade de São Paulo. Convites recebo, como o presente, mas raríssimos. No Exterior não houve a menor descontinuidade, e continuo a tocar e dar palestras em Universidades como em Évora, Coimbra, Minho em Portugal, Sorbonne em França e outras salas de concerto da Europa. Se tenho artigos a escrever para o Exterior para revistas e livros arbitrados, sinto-me, sob outro aspecto, liberto das amarras, tantas vezes inócuas, do jargão acadêmico. Meu blog semanal, ininterruptamente escrito desde Março de 2007, é prova.

P: Seu site é uma iniciativa que destoa da relação que os artistas do meio erudito têm com a tecnologia, não? R: Estava na antecâmara da aposentadoria. Hoje, como a música, o blog tem sido respiração. Curiosamente, os temas e desenvolvimentos surgem quando corro pelas ruas três vezes por semana. Já participei de dez provas oficiais, inclusive da São Silvestre. Deverei chegar em São Paulo no sábado à noite e já às seis da manhã estarei em Interlagos para a Maratona de Revezamento. Nossa equipe tem o sugestivo nome TA LENTOS. Já estou inscrito para a próxima São Silvestre em seu percurso de 15km.

P: O senhor mantém ainda seu programa de rádio? R: De 1993 até 2004 fui o coordenador de Tempo de Concerto, da Rádio USP-FM. Quando acometido de um câncer com prognósticos sombrios passei a coordenação ao grande violonista e professor Edelton Gloeden, dileto e fiel amigo. Continuei a apresentar contudo meu programa. Meses atrás, sentimos pressões quanto à programação, que apresentou não apenas infindável coleção de CDs inéditos como entrevistas extraordinárias durante 16 anos. Pedimos o desligamento. Foi tudo. Havia sim interação e o público escrevia-nos, o que resultava em forte estímulo. Mas há os tempos do Eclesiastes. Quanto ao público, está a haver diminuição. Diria natural, devido à estrondosa ascensão de outras manifestações “musicais”.

P: Acha que o impacto das novas tecnologias (o MP3 em especial) sobre o consumo da música de concerto é igual ao da música popular? R: Diria, outro tipo de impacto. Ajudará contudo a divulgação maior da música de concerto.

P: Em seu blog, o senhor citou o pianista Oscar Levant, dizendo que na guerra das vaidades do meio gostava mais de ser considerado segundo melhor pianista que o melhor. Quem o senhor acha o melhor “segundo pianista” brasileiro hoje? R: O drama é o holofote. Na medida que ele se torna o epicentro, nada a fazer. Pode o intérprete ser hábil virtuose, o público incensar, mas e a música, onde ficaria em sua mente? Acredito que desde que apenas o compositor a ser interpretado seja a essência, o pianista, no caso, deixa de preocupar-se com ser ou não “o melhor”. A arte pianística não pode ser julgada objetivamente, como no caso do atletismo. A mídia e os empresários podem induzir o público a entender quais os melhores. Todavia, se não houver a plena identificação com a profundidade musical, haverá sempre uma lacuna, mesmo que salas fiquem repletas e luzes iluminem mais acentuadamente determinados músicos. Sinceridade e fidelidade relacionadas à música. Poderia acrescentar que, fora desses parâmetros, vive-se na ilusão. E a ilusão é a aparência da verdade.

P: E os novos projetos? há novas gravações em vista? concertos fora do país, publicações etc.? R: Jean Philippe Rameau é um imenso compositor. Gravei na Bulgária a sua obra completa para teclado, que foi lançada em duplo CD na Bélgica, pelo selo De Rode Pomp. Dentro de alguns dias haverá o lançamento desse álbum em São Paulo pela Clássicos Editorial. Dias após será a vez de meu segundo livro de textos publicados no blog: Crônicas de um Observador (II). Até 2012 tenho apresentações, gravações e atividades musicais na Bélgica, Portugal e em França. Os projetos surgem. Aos 71 anos, tenho sempre esperanças.

The city of Goiânia, in the Central-West of Brazil, is the capital of the state of Goiás. It is only 76 years old, with plenty of green areas and intense musical life. I’ve been playing regularly in Goiânia for the last 20 years and have strong bonds of affection with the city. In this post I give an account of my last visit two weeks ago for a recital, a talk to students of the Universidade Federal de Goiás (UFG) and to take part, as member of the jury, of the New Talents Competition – 2009 of EMAC (School of Music and Performing Arts of UFG). I also transcribe the interviews I gave for two of the major newspapers of Goiânia.