Origem de Fascinante Envolvimento

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Enquanto Rameau
não ocupar o lugar ao qual tem direito
entre os maiores mestres,
a história da Música do século XVIII e
através dos séculos não terá sua total orientação.

Georges Migot

Ao mencionarmos Rameau a muitos frequentadores de concertos em nossa cidade, a grande maioria sabe de sua existência e pode até lembrar-se de uma única peça para teclado, Tambourin, que ainda é dedilhada em conservatórios. Não se produz Rameau em nossas salas. E de pensar que sua importância para a ópera tem a dimensão daqueles grandes compositores do século XIX eternamente interpretados. Sempre os mesmos. O autor da epígrafe, compositor de méritos, observaria, referindo-se ao teatro sinfônico e lírico dos séculos XVIII, XIX e XX: “O inovador foi incontestavelmente Rameau ao renovar a concepção da harmonia, mas a obedecer à mais perfeita organização dos segmentos”. O Traité de L’Harmonie Réduite à ses Principes Naturels, magistral livro em que o teórico Rameau fixa as bases da harmonia, teria influência decisiva sobre as estruturas musicais até o alvorecer do século XX. Claude Debussy, admirador incondicional do compositor, escreveria: “Rameau mostra o caminho pelo qual passará toda a harmonia moderna; e falhou, talvez, ao escrever suas teorias antes de compor as óperas, pois seus contemporâneos acharam ocasião para concluir a inexistência de toda a emoção em sua música”. E nesse ponto preciso reside toda a apreciação pública que persiste, ainda, em entendê-lo preferencialmente como teórico. Debruçar-se sobre o extenso catálogo de Rameau revelará um dos mais líricos mestres da história da Música. Mas, necessário se faz ouvir suas obras, apresentá-las nos teatros e nas salas de concerto. Estaria propenso o Sistema a mudar conceitos?
No post anterior mencionei o descortino que se abriu à pianista chinesa Zhu Xiao-Mei ao conhecer as Variações Goldberg, de J.S.Bach: “foi o encontro musical de minha vida.” Esse “estalo”, lembrando-me do Padre Antônio Vieira, acontece e, quando com ele nos defrontamos, a revelação se dá.
Em 1967 completava três anos sem me aproximar do piano por decisão pessoal, a buscar entender o possível sentido da música em minha existência. Ao regressar da França após anos a estudar em Paris, sentia que os programas das temporadas musicais se apresentavam tradicionais sob o aspecto repertorial e os primeiros passos da música na universidade eram ainda tênues. Casei-me e, para a sobrevivência digna, dediquei-me a outra área, comercial, onde permaneci longos anos. Ao visitar minha saudosa prima Lourdes Gandra em Ribeirão Preto durante o sepulcral silêncio sonoro que perdurava por três anos, encontrei-a a preparar o jantar. Após congraçamento sensível pediu-me para que fosse até seu estúdio, a fim de verificar alterações que fizera. Lourdes era dedicada professora de piano. Em sua biblioteca havia uma quantidade de pocket books contendo partituras fundamentais. Peguei com curiosidade a obra completa de Jean-Philippe Rameau. Sentei-me em frente ao piano e comecei a ler. Algo extraordinário se passou a partir do momento em que meus olhos e dedos liam e percorriam o Prélude do 1er Livre de Pièces de Clavecin (1706). O arrojo, a noção maior da dissonância – grande ousadia -, a construção excepcional do compositor de gênio em seus 23 anos de idade subjugaram-me. Na minha juventude já ficara encantado com a magistral interpretação das criações de Rameau pela excelsa pianista Marcelle Meyer (vide Marcelle Meyer 1897-1958 – A Redescoberta Merecida, 06/03/07). Dedilhei outras peças e, após o jantar, percorri o trajeto até o hotel e custei a dormir. Algo confuso ocorria, dizendo-me que jamais deveria ter parado. Só mais tarde senti que foi necessária a interrupção, a fim de que dúvidas não mais pairassem. O interregno, hoje entendido benéfico, fez com que o obstáculo maior referente à eterna repetição repertorial fosse enfim transposto. Doravante escolheria aquilo de que gostasse, quase sempre a preferenciar o qualitativo inusitado. Aquela pequena parcela de uma ponta do iceberg, friso, diminuta porção, eternamente sacralizada e repetida, poderia ser visitada, mas distante estaria de meus objetivos futuros. Quando frequentada, atenderia a projeto temático individual. E assim se deu. Essa opção rigorosamente pessoal distanciou-me de empresários e de determinadas programações rotineiras. Na realidade, cada intérprete sabe o que decidir, assim deveria ser, ao menos.
Ao retornar aos meus estudos a visar a edificação de algumas integrais, pontificou inicialmente Jean-Philippe Rameau, a chama que me indicou o caminho. Diria, o “estalo” de minha vida musical. A função de representante comercial deixada há tantas décadas dava-me tempo suficiente, àquela altura, para os estudos pianísticos e a leitura de incontáveis tratados e livros sobre música. Diria que foi uma das mais importantes fases de minha vida quanto ao aprofundamento voluntário e solitário sob a égide da Música e da Cultura. Estou a me lembrar que aos 24 anos, prestes a regressar ao Brasil, temeroso, perguntei à minha professora, a lendária Marguerite Long, sobre o meu incerto futuro pianístico. Colocou sua mão sobre meu ombro e disse que o que aprendera naqueles anos, sem quase nenhum contato com o Brasil, a não ser as cartas familiares semanais, dava a ela a certeza de que a mensagem musical fora transmitida num amplo leque repertorial e sobretudo estilístico, competindo só a mim o desenvolvimento em meu país. Assim se deu.

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Estudava a obra para teclado de Rameau e lia com respeito seus tratados teóricos. A insistência de Rameau quanto ao contributo imenso das fundamentais, sons de sustentação, foi determinante para a minha concepção interpretativa da obra do Mestre de Dijon e do repertório pianístico como um todo. A grande revelação que foi a obra para teclado do grande compositor surtiria o primeiro efeito em 1971, quando apresentei a integral em dois recitais no Auditório Itália, em São Paulo. O saudoso amigo e sensível pintor Theodoro Meirelles captaria, em desenho, um instante de uma das récitas. Em 1983, ano do tricentenário de nascimento de Rameau, apresentei novamente a obra completa para teclado na Temporada da Sociedade de Cultura Artística. Outros tempos aqueles do saudoso Alberto Soares de Almeida, entusiasta planejador das temporadas da tradicional Sociedade. Em Lisboa, no belo Teatro São Luiz, a integral seria repetida e constou no catálogo de efemérides do Ministério da Cultura da França.

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Estava a gravar em Sófia no ano de 1996 um CD a homenagear Villa-Lobos e tributos a ele prestados por vários importantes compositores do Brasil e do Exterior. Num dos intervalos da gravação na magnífica Sala Bulgária, no isolamento quase que absoluto, toquei por puro prazer várias peças de Rameau. Sem que eu soubesse, Heiner Stadler e o saudoso Athanas Bainov, que cuidavam do registro Villa-Lobos, estavam a ouvir na cabine de som. Veio o convite para a gravação da integral que se realizou em 1997 com o apoio decisivo de meu querido irmão João Carlos. Bainov impressionar-se-ia com os 5.000 e tantos mais ornamentos contidos nessa criação de período monárquico e magnificente! Para a realização da ornamentação Rameau criou uma tabela, a visar, sua resolução precisa. Apenas em 2001 seria lançado pela De Rode Pomp na Bélgica o álbum a conter os dois CDs dedicados à integral de Jean-Philippe Rameau para teclado. O ilustre François Lesure (1923-2001) aconselhou-me a incorporar à gravação o que de mais significativo existia nas transcrições que o autor realizou de sua ópera-ballet Les Indes Galantes, entre as quais a Ouverture e a magnífica Chaconne.
É com imenso gosto que verifico a acolhida da Clássicos Editorial para com essa gravação da obra de Jean-Philippe Rameau para teclado. A apresentação de algumas de suas extraordinárias criações será no recital do dia 21 deste mês na sala de câmara da Sala São Paulo, antes da sessão de autógrafos. Revisitar Rameau tem um significado de catarse. Retorno ao Grande Mestre, como aquele que entende estar diante de um iluminado. É pena que a repetição repertorial persista em nossas salas de concerto, os mesmos autores sempre ouvidos em suas obras mais conhecidas – outra ponta de iceberg – e a permanecerem como opção básica para intérpretes. Nada a fazer, pois as mentes deveriam ser trabalhadas.
O texto do encarte dos CDs Rameau já está à disposição do leitor no item Essays de meu site. Inclui a significativa apresentação de François Lesure, a explicar que não há mais nenhum sentido no debate cravo-piano. No seu entender, o que importa é o estilo do intérprete.

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O post sobre Rameau, devido ao lançamento dos CDs neste 21 de Novembro, manteve numa lista de espera outros textos que sairão em momentos defasados. Estão eles no meu baú mental. Contudo, o passar do tempo equalizará todos os temas, pois importa a intenção deste que insiste em escrever ininterruptamente todas as semanas, a entender o ato uma respiração. A experiência em Goiás durante uma semana intensamente musical seguida pela Maratona de Revezamento no lendário autódromo de Interlagos, Santa Cecilia sob o olhar terno vertido em conto por Idalete Giga e mais o artista da Hiper Super-Ação, Evilásio Cândido, estarão a fluir como as águas que descem os rios.

Clique nos links para ouvir três peças de Jean-Philippe Rameau constantes dos CDs a serem lançados:

Prélude
Air pour Borée et la Rose
Gavotte et doubles

On 21 November my double album with the complete keyboard works of J.P. Rameau will be released in São Paulo. This post focus on the origin of my interest in Rameau’s works. By clicking the links below readers may listen to 3 pieces of the album, including the sober and extraordinary Prélude (1706), the root of my fascination with the composer.

A Pianista Zhu Xiao-Mei e os Segredos Desvelados

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Meus relacionamento com as pessoas eram puramente
animais, automáticos, maquinais…
Sim, eram de alguma maneira histórias de animais !
Que me compreendam hoje,
pois não me é mais possível contar todo o meu passado filosoficamente,
olhando do alto, com serenidade,
os bons velhos tempos de horror e de absurdos.
Agradeço ao céu ter-me tirado do inferno,
como se fosse o desenho indecifrável da Providência.

György Cziffra

Trabalha-se a argila para se fazer vasos,
mas é do vazio de seu interior
que depende o seu uso.

Lao-Tzé

Quantos não foram os artistas, escritores, intelectuais que viveram as situações as mais dramáticas em campos de concentração ou de “reeducação”. Os regimes dirigidos por títeres não têm clemência, e no intuito de sedimentar ideias totalitárias, tantas vezes proclamadas democráticas, impõem aos cidadãos as maiores agruras. Alexander Soljenítsin (1918-2008) denunciaria as repressões em campos de prisioneiros soviéticos, e o conjunto de sua obra, incluindo-se o Arquipélago Gulag, render-lhe-ia o Prêmio Nobel. Wladyslaw Spilman (1911-2000) escreveria a narrativa Morte de uma Cidade, décadas após reeditada com o título O Pianista. Conta a sua história nos guetos de Varsóvia durante a Segunda Grande Guerra e o seu instinto de sobrevivência. Roman Polansky dirigiria o premiado filme O Pianista a partir do dramático relato. György Cziffra (1921-1994), telúrico e extraordinário pianista húngaro conheceria durante longo período as maiores adversidades e o contato permanente com a morte em campos de prisioneiros nazistas e comunistas, relatando-os em livro (Des Canons et des Fleurs. Paris, Robert Laffont, 1977, 291 págs.). Lilly Krauss, notável pianista austríaca sofreria em campo de concentração nazista. O bailarino Li Cunxin narra também sua história plena de tribulações em Adeus, China – O Último Bailarino de Mao (Brasil, Fundamento, 2007, 400 págs.). Há uma tendência mórbida dos senhores da guerra nessa perseguição às artes, à liberdade de expressão, ao livre pensamento, às comunicações independentes, às ciências ou, paradoxalmente, ao incentivo ao desempenho excepcional de alguns como forma de propaganda política. Assim aconteceu no Terceiro Reich, na União Soviética, na China e em Cuba não apenas para intérpretes e bailarinos de exceção, como para atletas fantásticos. Entretanto nem todos tiveram a mesma sorte e sucumbiram aos horrores, como os músicos levados pelos nazistas ao campo de Terezin, ou os milhões deportados para a Sibéria, ou ainda aqueles destinados ao terrível paredón. Ditadores e seus acólitos estão sempre à espreita. Aguardam apenas a oportunidade. E, hélas, periodicamente ela reaparece. Todo um rancor que parecia extinto ressurge e cidadãos aparentemente normais tornam-se ferozes, a serviço dos títeres. Vítimas da Revolução Cultural na China de Mao Tsé-Tung pouco a pouco vão tendo a coragem de expor sofrimentos incomensuráveis.
Zhu Xiao-Mei é pianista chinesa. Há excepcionalidades em vários aspectos. Escreveu sua saga que vem somar às precedentes mencionadas (La Rivière et son secret. Paris, Robert Laffont, 2007, 330 págs.). Nascida em 1949, pertencia à família considerada de “má origem”, pois burguesa letrada. Já na infância, devido aos infortúnios provocados pelo regime comunista de Mao Tsé-Tung, sua família sofreria dificuldades. Pianista precoce, tem lá seus sucessos quando a estudar no Conservatório de Pequin. Aos 14 anos, já possui base sólida, mas uma brincadeira juvenil leva-a a júri coletivo. Vivia-se o período da terrível Revolução Cultural. As denúncias, estimuladas pelo regime, não perdoavam aqueles que se desviassem do Livro Vermelho de Mao, única leitura possível. Lavagem cerebral provoca uma sua carta em que se arrepende de ser indigna frente a Mao, traidora da Revolução, a entender serem seus pais de “má origem”. Zhu tinha apenas 14 anos! Incorpora a ideologia maoísta e torna-se, sempre temerosa, uma jovem revolucionária. Tem crises não reveladas publicamente, pois entendia que tudo teria de ser feito a seguir preceitos para que a Revolução Cultural vingasse, mas dúvidas quanto aos procedimentos a deixavam perturbada. Assiste a seus mestres – alguns deles idosos – serem humilhados e surrados no pátio do Conservatório pelos jovens da Guarda Vermelha. Entende, nesse turbilhão de incertezas e confusões interiores, que excessos estavam a ser perpetrados. Acusados de terem propagado a música ocidental, de J.S. Bach aos mais modernos, professores perderiam tudo e seriam desterrados para campos de reeducação. Outros suicidaram-se nesse período de desvario absoluto. Todas as partituras do Conservatório foram queimadas, pois traduziam a cultura ocidental decadente e, portanto, distante da classe proletária. Lembrar-se-ia “das execuções sumárias, dos cadáveres sobrepostos no anexo do Conservatório”. Com coragem, Zhu Xiao-Mei observa que houve longo tempo em que acreditou na Revolução, tão grande a pressão exercida. Encaminhada para campos de reeducação, permanece cerca de dez anos longe da família – dispersa em outros campos -, da prática da música e a passar as maiores agruras e humilhações, ainda a acreditar na Revolução. Colegas e outros estudantes partilharam momentos difíceis, onde não faltavam a denúncia coletiva diária e a leitura do Livro Vermelho de Mao, atividades realizadas após dura labuta nos campos agrícolas, quando imundos e fragilizados. Só após essas terríveis sessões o infortunado tinha direito à parca alimentação e à mínima higiene pessoal. E, numa declaração de amor à música, escreve “A Revolução Cultural estava a fim de nos tirar todo o sentido de humanidade e isso não foi possível. No fundo de nós mesmos existia um lampejo de humanidade, esse que os regimes totalitários que subestimam as potencialidades do homem, esquecem sempre, infelizmente para eles. É esse lampejo que a música trouxe de volta”. Comentaria: “Mao percebeu o poder da arte e principalmente da música sobre o povo. Ele sabia que os artistas eram perigosos, questionando sempre o real, querendo sempre mais liberdades. Esse o motivo para os atacar, a razão pela qual deixava sua esposa se apropriar da arte através de seus Yanbangxi. Na verdade, Mao considerava o saber em geral como perigoso: seu obscurantismo organizado, sistemático, extremista é testemunho.”
As vicissitudes sofridas pela pianista levaram-na a vários traumas que a acompanham. No último período em campo de reeducação conseguiu “burlar” incultos guardas e recebeu de sua mãe o seu velho piano da infância. Cordas quebradas eram substituídas por arames e J.S.Bach, Beethoven e outros, no dizer de Xiao-Mei, eram ouvidos pelas autoridades como se fossem música chinesa revolucionária. A ignorância deles, para resignado prazer da pianista, resultaria na possibilidade de estudar. Reiteradas vezes menciona a indecisão e a dúvida como integrantes de seu pensar. Ao sair da China para os Estados Unidos, depois de enormes tribulações, certezas em relação à música antagonizavam-se às dúvidas quanto à sobrevivência. Nesse país trabalhou como doméstica, faxineira em restaurante e mais outras atividades, a habitar em tantas casas de imigrantes que a acolhiam. A fim de obter o green card, casa-se por conveniência. Estuda em Boston, mas seu instinto leva-a a Paris. Obteria mais tarde, após difíceis tramitações, o passaporte francês. Hoje é reconhecida internacionalmente como pianista e professora do Conservatório Superior de Música e Dança de Paris. Seus pais e suas irmãs estão sempre em sua mente, nesses constantes deslocamentos. Retornaria à China mais de uma vez, mas com as salvaguardas da diplomacia internacional.
Quantos não são os momentos em que sente insegurança frente à vida prática? Num outro contexto, em muitas oportunidades comenta com ênfase que apenas a música livrou-a do naufrágio absoluto. O livro tem como epicentro repertorial as Variações Goldberg de J.S. Bach. A grande revelação. No entender de Zhu Xiao-Mei, trata-se da maior criação para teclado. Percorre o mundo a interpretá-la, entre tantas obras do repertório consagrado. Tão grande a empatia da artista frente à monumental composição, que se torna dignificante lê-la descrever emocionalmente da Ária às variações. Pormenoriza-se na última, Quodlibet e na reprise da Ária, quando Bach finaliza a obra. Dir-se-ia que Xiao-Mei percorre seu próprio caminho ideal, sem máculas ao descrever as Goldberg-Variationen. No Youtube-vídeos pode-se ouvir a grande criação do Kantor interpretada pela pianista chinesa. A partir da Ária, apresentada de maneira singular, pois imbuída da maior reflexão, capta-se parcela da profunda identidade de Zhu Xiao-Mei com as Goldberg… e com a vida. O gestual da pianista é econômico. Observa, a partir de conto chinês a respeito de um pintor e sua obra, a fim de exemplificar a inocuidade do gesto exagerado ao interpretar uma composição: “…ele pintou sobre o solo uma serpente de um realismo tal que o réptil parecia vivo. Uma pessoa ao passar pela rua, pisou na pintura e começou a gritar: ‘fui picado pela cobra!’ Os transeuntes se aproximaram para ver o que acontecera. Todos também pisaram exclamando: ‘Jamais vimos uma serpente tão bem pintada’! Logo, o povo conheceu a criação do artista. A fim de torná-la mais bela, o pintor colocou patas na cobra, mas ao perceberem a serpente assim configurada, os cidadãos disseram: ‘Que animal ridículo’! E o pintor caiu no esquecimento”. Em outra imagem significativa, a sugerir a introspecção frente à composição: “Para se ver o fundo de um lago, é necessário que a superfície da água esteja lisa e calma. Mais ela é tranquila, mais transparente é o fundo”.
A leitura de La Rivière et ses Secrets, ao revelar a perene insatistação da artista frente à perfeição e ao gestual inócuo refletido pelos holofotes, vem apresentar a essência essencial do que deveria ser entendido por interpretação sincera. Escreve: “Sinto-me incapaz de atingir a perfeição que eu sonho. Como tantos outros intérpretes, estou impregnada por essa impotência. Como Richter, que no final da vida diria ‘Eu não me amo’. A sabedoria seria certamente reconhecer que a perfeição não existe. Os chineses entendem bem esse axioma, quando introduzem um defeito num bordado ou na caligrafia, considerando que o defeito tornará a obra mais bela ainda. Os iranianos fazem o mesmo em seus tapetes para testemunharem que apenas Deus é perfeito”.
Zhu Xiao-Mei lega-nos um testemunho de fidelidade à música, sem jamais traí-la. Seu livro merece ser lido. O conteúdo de La Rivière et son Secret faz melhor compreender a força criativa da artista, a lutar no desespero, mas na confiança, contra a bestialidade humana. A obra foi traduzida para o português: O Rio e o seu Segredo (Guerra & Paz).

In this post I give my view of the book “La Rivière et Son Secret”, the amazing and true story of the Chinese pianist Zhu Xiao-Mei. We follow her as a young girl in China, her efforts to go on with her piano practice during the Cultural Revolution, the years in a working camp. In 1979 she managed to leave China for the US and today lives in Paris. Now internationally acclaimed, she is an example of a strong female character who never gave up her dream.

Lembranças e Interpretações

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Foi uma alegria nostálgica, mas intensa, ter recebido inúmeros e-mails de leitores que ou estiveram a se lembrar de leituras das enciclopédias da adolescência-juventude ou teceram observações consistentes (vide O “Thesouro da Juventude, 17/10/09). Torna-se difícil, no espaço proposto, contemplar todas as mensagens recebidas, daí ter selecionado algumas que estabelecem a ligação com uma coletânea que marcou gerações. Com os frequentadores de meu blog semanal, partilho algumas dessas opiniões.

“Maravilhamento foi também a leitura do seu último texto ‘O Thesouro da Juventude’ ! O breve poema do nosso saudoso Eugénio de Andrade, que preludia o texto, diz-nos tudo sobre a preciosidade dos livros. Feliz todo o ser humano que tem acesso a eles sobretudo, a começar na infância, porque eles são, na realidade, os nossos mais fiéis companheiros. Mas há livros e livros. Há os belíssimos, transparentes, sábios, cheios de Harmonia, sempre prontos para nos transmitir a beleza, as coisas práticas da vida, mas também os seus mistérios. Claro que são estes que nos ajudam a crescer de forma equilibrada. Foi assim ‘O Thesouro da Juventude’ (18 volumes !) que iluminou a sua adolescência e o ajudou a formar um tão forte carácter! Hoje há milhares de enciclopédias disto e daquilo para crianças e jovens. Mas há sempre uma lacuna que os livros da nossa adolescência não tinham – a questão da formação humanística, a formação moral dos jovens era uma preocupação constante que estava presente na literatura que nos era dirigida. Hoje confunde-se moral com religião. Ao mesmo tempo que se foi perdendo o sentido do sagrado, as sociedades contemporâneas também se esvaziaram de valores morais imprescindíveis para nos respeitarmos e amarmos uns aos outros. No meio desta selva, continua a haver, felizmente, muitos pais que sabem educar os filhos….”
(Idalete Giga – Portugal)

“Também tive o meu Tesouro da Juventude, ainda que certamente o tenha lido de um modo diferente do seu. Outros tempos, é verdade, as fontes já eram mais variadas também”.
(Mônica Sette Lopes)

Tomo IX, pág. 2837. Clique para ampliar.

“Não tive o privilégio de ganhar, como você, uma coleção de O Tesouro da Juventude. A dádiva veio de outra forma: a meninice e a puberdade passei-as nas plagas então recolhidas do seminário de São Roque, desimpedido de preocupações outras que não a da prece, diversão e estudo. A prece extinguiu-se, a diversão desvaneceu-se, o estudo arrefeceu, mas entre as poucas lembranças desse período restou justamente a dos volumes do Tesouro, carregados de histórias, poemas e ilustrações. Foi neles que fiz as primeiras descobertas do mundo da fantasia e onde se abriu a aventura que ainda hoje me dá alento: a leitura… Há alguns anos eles me foram de extrema solicitude. Queria reencontrar um poema que naquele feliz período me encantara, mas não havia meio de lembrar o nome do autor; as pessoas consultadas, embora conhecedoras do poema, também não se recordavam de quem o compusera. Veio-me à lembrança o Tesouro, fui a ele no acervo da biblioteca da Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes (hoje em Campinas), e lá estava o poema:

História de um cão

Luiz Guimarães Junior

‘Eu tive um cão. Chamava-se Veludo.
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
para dizer numa palavra tudo,
foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo,
não me queria acompanhar por nada.
Enfim – mau grado seu – o vim trazendo’.
[…]

Pena seja longo demais reproduzi-lo agora. Mas fica o registro e a menção de que Guerra Junqueiro também rimou essa mesma história, que intitulou Fiel e que em seus versos começa assim:

Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,
havia o que quer que fosse
d’intimo desgosto:
era um cão ordinário, um pobre cão vadio,
que tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
percorria de noite os bairros da miséria
à busca d’um jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
o velho cão uivava uma canção funérea,
triste como a tristeza ossiânica do mar.”

(Cláudio Giordano)

Tomo XIII, pág. 4009. Clique para ampliar.

“Você falando do Thesouro da Juventude! Ainda não li seu blog, mas só de mencionar o nome daquele tesouro voltei atrás e ainda estou vendo os volumes encadernados em azul claro, lembro-me de mamãe lendo uma história antes de eu dormir e de chorar longamente por que achei a história triste e de mamãe dizer que se era para eu chorar com as histórias, ela não leria mais para mim. Era qualquer coisa com a história de um pinheirinho. Enfim, nós adorávamos essa coleção. Obrigada por me fazer lembrar de um tempo tão feliz, pois estou revendo aquelas páginas grossas, brilhantes, as ilustrações. Enfim, uma parte de mim que se foi, mas que continua presente”.
(Maria Helena Etzel)

“Também nós tivemos em casa a coleção toda do Thesouro da Juventude, realmente um tesouro e me marcou muito. Lembro-me de que a nossa ainda era com a ortografia antiga, do tempo de PH e do Brazil com Z. Por falar nisso, por quantas reformas ortográficas passamos, não? Pensar que a ortografia de língua francesa data do século XVI…”
(Maria Cecília Naclério Homem)

“Minha relação com os volumes sempre foi muito respeitosa, porque nos anos 50 e 60 não tínhamos acesso à estante de livros, como as crianças têm atualmente, mesmo sendo esta em casa. Essa forma de agir deixava em nós um vínculo de respeito pelo livro, principalmente o encadernado, de capa dura e de coleção. Todas as vezes que manipulávamos o livro era com grande cuidado e por uma boa causa: a nossa educação formal. Essa pequena biblioteca que tínhamos nos proporcionou (a mim e mais três irmãos) momentos agradáveis com amigos se agrupando, em nossa casa, para fazermos as pesquisas de trabalhos escolares.
Essas foram as formas que permearam a minha relação com o Tesouro da Juventude, que juntamente com a Barsa, coleções de arte, de prêmios Nobel de Literatura, e muitos outros livros encantaram minha infância, minha juventude e agora a minha saudade.”
(Eliana Bento)

“Li seu blog sobre o ‘Thesouro da Juventude’. Esplêndido.
Em nossa meninice, em que não havia televisão ou internet, era a bíblia dos jovens. Li-o quase por inteiro.
Alegra-me que você tenha relembrado aqueles tempos, em que todos criávamos o próprio mundo a partir da leitura e não o recebíamos ‘enlatado’ nos programas montados pelos novos técnicos de comunicação. E o mundo de nossa imaginação era muito mais ambicioso do que aquele que a atualidade cria.”
(Ives Gandra Martins)