Interpretação de uma Charge

A Justiça. Charge de Luca Vitali. Setembro 2009. Clique para ampliar.

Se o acaso te fizer conhecer três homens das ruas,
certamente eles terão algo a te ensinar.

Confúcio

Luca Vitali é ouvinte paciente. Quando entendo determinado tema do interesse do amigo, comunicamo-nos e vamos ao Natural da Terra tomar um curto. Leio pausadamente o post da semana. Luca, atento, pensa por vezes em imagens e a criação vem, sem eu nada pedir, via e-mail. É uma alegria ter seus desenhos a ilustrar meus textos.
Desta vez, deu-se o contrário. Instigado por outro apelo, sugestão de uma nossa amiga virtual para possível ilustração de um livro, realizou um desenho daquilo que ele entende por Justiça. Vi seus traços firmes e disse-lhe apenas que se tratava de forte e irreverente interpretação. Poderia pensar num futuro post? Achou graça e concordou, pois generosidade faz parte de seu cotidiano. São tantos os deficientes físicos que se realizaram a partir de seus ensinamentos artísticos ! Tema futuro, sem dúvida.
Várias corridas pelas ruas levaram-me a pensar. O desenho não saía de minha mente. Escrevia posts após reflexões, mas a charge de Luca continuava acesa em meus pensamentos. Traduzia aquilo que também passei a aceitar como integrante de surdo clamor existente no cidadão comum, longe das pesquisas, tantas vezes comprovadamente falhas. Sob aspecto outro, refletiria o desenho uma quimera, pois o acesso à Justiça mostra-se para o homem do povo, aquele dos transportes coletivos abarrotados, das longas jornadas de trabalho, da ausência de assistência médica, da absoluta impossibilidade de ter segurança, uma lâmpada apagada num túnel sem fim. Comprovadamente sabe esse cidadão que transita pela cidade que, se cometer algum delito, ou buscar reivindicar direitos, terá não apenas imensas dificuldades para inteirar-se das tramitações pertinentes, como estará à mercê de advogados, nem sempre com méritos, e sem o prestígio de alguns luminares que conseguem, através de argumentações mais embasadas ou da aura imbatível, defesas sustentáveis para casos complexos.
Nos dias que se seguiram ao curto com Luca, indaguei a várias pessoas se acreditavam na Justiça brasileira. Diria que, de vinte e tantos questionamentos para uma classe média a obedecer nuances, a resposta veio sempre instantânea, o não sem titubeio. Apenas uma exceção, um a se dizer advogado que se limitou a sorrir ironicamente. O mais contundente entre os negativistas, rosto entre milhões d’outros, disse que o santo caíra do altar. Quis saber o que queria dizer. Respondeu-me que meses atrás assistira pela televisão a uma sessão do Supremo Tribunal Federal. Houve discussão de tão baixo nível entre ilustres Ministros da Suprema Corte que sentiu vergonha. Um filho seu que se preparava para vestibular de Direito, ao ver a cena disse ao pai que estava a desistir naquele instante e que buscaria outra opção. Perguntei-lhe se realmente desistira. Com sorriso que transparecia resignação, retrucou “Ele e eu. Fará Economia e eu desisti de acreditar na Justiça que chega a esse nível em nosso país”. Emudeci. Mais do que o lamentável episódio ocorrido entre dois respeitados representantes de nossa Corte Suprema, calou-me o fato de que possível vocação de um jovem lhano – a tudo indicar pela atitude – tenha sucumbido ao vislumbre de um destempero. Decisão sem retorno, pois a partir de exemplo extremo. Mais ainda apreendi a mensagem de meu dileto amigo desenhista e pintor.
Luca teria captado algo patétito. Compreendeu, como artista, a realidade que parece ser sedimentada, sem condições de melhora. Creio que a mídia, a denunciar tantos escândalos quase que todos os dias, sem a menor possibilidade de resultados que incriminem culpados, tenha propiciado àqueles com o mínimo de esclarecimento o descrédito pelo nosso Poder Judiciário. Escândalos do Congresso Nacional e crimes de toda ordem, amplamente divulgados, repercutem em todo o país, sem punições para as figuras conhecidas envolvidas. Se elas acontecem, são quase sempre tênues, ou a paliativa prisão domiciliar. Ratificam para o homem que transita pelas ruas a desconfiança e o desalento. A impunidade proclamada pelos meios de comunicação mostra-se acentuada para aqueles que têm recursos para pagar honorários a causídicos renomados e convincentes. Fiquei entristecido com o resultado da minha simples pergunta. E nossas doutas cortes, em todas as instâncias, têm muitos dos mais brilhantes cérebros jurídicos do país, que lá chegaram através de méritos, seja por difíceis concursos, ou indicações políticas a partir de serviços prestados ao país.
Numa outra visão, aquela de um pobre sentenciado que conheci em Prados, Minas Gerais, está a apontar a absoluta diferença quanto aos julgamentos. Participei, entre os anos 80-90, de alguns Festivais de Música nessa pequena e bonita cidade, perto de Tiradentes. Ao lado da casa onde fiquei hospedado há a prisão e um só preso ocupava a cela. Conheci-o, pois durante o dia deixavam-no lavar um ou outro carro, e o sentenciado angariava alguns trocados. Moradores diziam que o rapaz, realmente bem simples, tinha boa índole, daí esse afrouxamento durante algumas horas. Quando em um bar bem típico, onde fui tomar café requentado, perguntei a um pradense qual a causa da punição e qual a pena a ele infringida, recebi como respostas: “roubou um saco de batatas e foi condenado a cinco anos de reclusão”.
A ilustração de Luca Vitali alusiva à Justiça, uma charge a considerar diversos aspectos por ele interpretados em traços que fazem parte de seu idiomático, traduz muito do que se ouve nas ruas a respeito do Poder Judiciário. Luca auscultou-se. Esse ouvir interior não seriam seus acúmulos silenciosos frente ao que todo cidadão também ouve, lê e vê diariamente?
A Justiça é representada com venda nos olhos em estátua grega. Essa venda teria origem no século XVI e representaria a isenção necessária nos julgamentos. Simboliza a Justiça “cega”, sem mácula, imparcial. Contudo, venda nos olhos pode pressupor sua retirada, o que tornaria injusto qualquer juízo, pois doravante a pender para uma das partes. A interpretação da charge de Luca mostra-se transparente. Ele idealizou a Justiça realmente cega e a sua balança só teria um prato para aferição e a suportar um Código, daí ter utilizado velho medidor tão comum nas feiras de antigamente. Sequer pensou na balança de dois pratos, equilibrada, isenta. Cego tem geralmente a guiá-lo cão fiel, mas Luca preferiu pensar numa raposa também sem a visão como guia e um gato como “observador”. A cegueira conduzida pelo estranho instinto da raposa. A espada a simbolizar o poder da Justiça, que sem bainha pressupõe a presteza decisória na tradicional representação, estaria substituída pelo guia, a manter junto a si a raposa. Notório entender que o preceito latino suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu) estaria a sofrer tendências tergiversantes.
Os Poderes Executivo e Legislativo têm dado exemplos não dignificantes, mercê em parte da enorme diversidade de formação de seus integrantes eleitos pelo povo. Alguns bons governantes existem, assim como bons legisladores. Há quantidade deles que servem aos Municípios, Estados, União. Porém, quantos não são aqueles que, a exemplo das ervas daninhas, têm permanentemente escândalos divulgados? Tendem a macular nossas Instituições e, entre elas, o Poder Judiciário. Salvaguarda fundamental deste país, graças, inclusive às biografias de seus membros, o Poder Judiciário deveria, sine qua non, ser o baluarte da credibilidade para o cidadão. É o descrédito pela Justiça, assinalado nesse minúsculo questionamento que realizei, motivo de preocupação? É-o, na necessidade absoluta e imprescindível do respeito que todos nós deveríamos ter pelo Poder Judiciário em sua abrangência, a reforçar, inclusive, a auto-estima do brasileiro. Não podemos, sob qualquer pretexto, perder a confiança na Justiça, mas ela tem de apresentar resultados que levem o cidadão a acreditar.
Certamente, o polêmico desenho de Luca Vitali tenderá a suscitar as mais variadas interpretações em todas as direções. A charge do amigo tem a força expressiva e criativa do artista e seus mistérios insondáveis. Por mais que haja objetividade na ilustração, um conteúdo oculto está por trás. Não seria a forte diminuição da credibilidade de nossa Justiça junto ao cidadão comum fato para a mídia dimensionar, o povo criticar, o artista idealizar, e eu abordar neste post? Houvesse a total imparcialidade a considerar o preceito constitucional de que todos deveriam ser iguais perante a lei, existisse a presteza nos julgamentos, e certamente a charge poderia ser outra e o presente post não teria razão de ser escrito. Arte, Luca a tem nas veias e acredito eu, não fosse o seu desalento, que é o de parcela majoritária esclarecida da população do país frente à Justiça, haveria tantos outros caminhos criativos para a sua pena percorrer.

Looking at an illustration made by my friend and graphic designer Luca Vitali, portraying the symbol of Justice as he sees it, I was led to reflect on the issue of dispensation of justice in Brazil and on the reasons why the common man has always had a distrust of our judiciary, tending to regard it as an exclusive reserve of the elites.

Horizontes Abertos às Gerações

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Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.

Eugénio de Andrade

Desde Março de 2007, rememorar o passado tem preenchido posts. Faz parte da existência olhar o presente, vislumbrar passos a serem dados, mas também revisitar mentalmente caminhos trilhados. O regresso às lembranças registradas e às leituras que permaneceram apenas dimensiona a apreensão do todo de uma vida. Somos forjados nesse gigantesco acúmulo que, ao final da trajetória, deverá resultar na interação completa dos tempos de maneira harmoniosa, ou demonstrar que certas sendas levaram a impasses, dependendo de nossa atitude frente à vida, ou até do imponderável.
A geração a que pertenço cresceu sob égides desconhecidas ou difíceis de serem entendidas pelas que a sucederam. No quesito leitura, a formação dos pais pode ter sido determinante à qualidade dos livros. Se interessados, sabiam como entusiasmar os filhos nessa mágica viagem que os volumes proporcionam. Não havia distrações ditadas pela tecnologia em veloz aceleração, o que permitia ao jovem concentração maior nas poucas alternativas existentes. E o livro preponderava.
Estou a me lembrar das coleções que ganhei de meus pais, mercê da evolução pianística paulatina a causar guarida no coração dos dois. Serviam de estímulo aos progressos alcançados pelo adolescente. Sabiam qual orientação dar, não se esquecendo contudo de preferências individuais de cada filho. Foi assim que recebi O Mundo Pitoresco em nove volumes, que me abriu a janela geográfica do planeta (vide Leituras sobre o Himalaia (I) – Origens do Fascínio, 07/12/07), Os Doze Trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato em doze fascículos e, nessa ampla visão enciclopédica, o Thesouro da Juventude em 18 substanciosos compêndios (Estados Unidos da América do Norte, The Colonial Press. Inc., s.d. Distribuído no Brasil pela W.M.Jackson, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, 5.904 págs.). À Introdução, o insigne Clóvis Bevilacqua escreve: “ É, portanto, o Thesouro da Juventude uma biblioteca apurada, escolhida e condensada, onde se acham as noções essenciais das ciências, os conhecimentos de utilidade geral, as artes e a moral, e que resume e substitui uma dispendiosa e vasta, que muito poucos podem adquirir, e menor número ainda consegue ler”.

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A obra é realmente um tesouro. Atendia às mais variadas áreas do conhecimento, a possibilitar, inclusive, a precoce escolha de uma profissão pelo adolescente que frequentava a leitura dos compêndios ricamente encadernados. Cada um tratava harmoniosamente de várias categorias, prioritariamente denominadas livros. A fim de não se tornar cansativo, cada seção não se exauria de uma só vez, mas era intermediada por todas as outras. Dessa maneira, o retorno a segmento já apresentado pressupunha a visita progressiva a todos os outros “livros”, ou o encontro mais adiante com a categoria de interesse naquele momento. Estruturava-se a divisão nos seguintes compartimentos: O Livro da Terra, O Livro da Natureza, O Livro da Nossa Vida, Os Livros do Velho e do Novo Mundo, Cousas que Devemos Saber, O Livro dos “Porquês”, Homens e Mulheres Célebres, O Livro dos Contos, Cousas que Podemos Fazer, O Livro das Bellas Acções, O Livro da Poesia, Os Livros Famosos e O Livro das Licções Attrahentes. Todos os segmentos apresentavam-se em doses homeopáticas, distribuídos pelos 18 compêndios. Se as poesias escolhidas mantinham-se quase sempre na íntegra, o mesmo não acontecia com os Livros Famosos ou o dos Contos, apresentados resumidamente, mas a estimular o jovem leitor ao conhecimento da obra na sua abrangência. Nos títulos O Livro da Terra, O Livro da Natureza e O Livro da Nossa Vida, deparávamo-nos não apenas com o universo e seus mistérios, assim também com todas as implicações da origem, formação e sedimentação do planeta – mares, rios, águas subterrâneas, minérios, fauna, flora. O Thesouro… aguçava o conhecimento da história e da geografia através dos Livros do Velho e do Novo Mundo – apresentados separadamente. Exemplos dignificantes ficavam reservados aos Livro das Bellas Acções e Homens e Mulheres Célebres. Muitas das atitudes perante à vida não teriam sido influenciadas por exemplos representativos? Nos segmentos: O Livro das Licções Attrahentes, O Livro dos “Porquês” e Cousas que Podemos Fazer, aprendemos lições teóricas e práticas que serviriam para a vida. Estou a me lembrar que, nesse último compartimento, minha mãe disputava a leitura quando algo referia-se às prendas domésticas.
O ilustre economista Roberto Macedo escreveria uma sensível crônica com o título O “Thesouro da Juventude”, publicada em O Estado de São Paulo (30/12/1999, pg.2), a relembrar os efeitos duradouros que a obra teve sobre sua formação humanística. Comenta “Seja por interesse ou porque na época não havia muitas alternativas, particularmente as audiovisuais que hoje tanto atraem a juventude, devorei quase todos esses livros e devo muito a eles”. Creio que para todos aqueles que tiveram o grande privilégio de contar com essa extraordinária coletânea, lendo-a preferencialmente, marcas indeléveis permaneceram, mercê da diversidade das áreas abordadas em textos claros, objetivos, sintéticos, mas sempre a provocar o aprendiz da leitura.

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Minhas filhas ainda chegaram a consultar os tomos, que estavam a conhecer outra geração. Entretando, a coleção não resistiu à geração das netas, pois a grafia e fatos tantos que perderam a atualidade desviaram suas atenções para as tecnologias virtuais em evidência. Possivelmente as conexões cerebrais dessa novíssima geração, voltada aos contextos multidisciplinares e suas cargas em constante mutação, provoquem uma outra apreensão do mundo, de tudo o que nos cerca. Muitos dos contos “pueris” do Thesouro da Juventude, lidos hoje para os miúdos, deixam até de ser compreendidos. Todavia, os temas que ficaram congelados perante o caminhar diário da humanidade tornam-se motivo de nostálgica alegria para aqueles que conviveram com a coleção. Mencionemos dois: “ O aeroplano moderno, capaz de desenvolver uma velocidade de 300 kilômetros à hora”, ou “Podemos affirmar desde já que é impossível para um carro ordinário marchar sobre um só rail, porque as suas rodas estão collocadas d’um lado e d’outro, duas a duas ou quatro a quatro, nas duas extremidades de cada carruagem, precisando pois de dois rails para se apoiarem”. Conceituações hoje “ingênuas”, mas que ajudaram gerações a entender transições que se processariam com o desenrolar do tempo.
Conservei intacto o meu Thesouro e é sempre com carinho que observo esses velhos tomos repetidamente visitados durante minha formação. Foi em momento de descontração que consultei-o e a idéia germinou. Lombadas amareladas pelo passar das décadas, afagadas pelas mãos do adolescente que eu fui, mas que não abalaram sua estrutura, tampouco apagaram as inscrições douradas. Enciclopédia envelhecida, mas a revelar que houve carinho a protegê-la. Como a obra redigida data de meados dos anos 30, os episódios da história, comprovadamente “atuais” do período, proporcionam-me, ao revisitá-los, prazer especial. Transmitir aos meus leitores esse afeto faz-me relembrar o passado, que abriu as portas para o desvelar do grande enigma que é a existência. A depender de nossa intenções, podemos, apesar de tantas distorções, entendê-la como maravilhamento.

Dificuldades em Pensar Transições

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Mesmo na certeza
de sermos iguais
perante a morte,
não é menos certo
que não somos iguais
defronte a morte.

Joan Reventós i Carner

O pensar a morte sempre despertou as mais variadas interpretações, a depender das religiões ou até das divagações não precisamente espirituais. Temor, resignação, paciência, ansiedade, compaixão, fé, revolta, todos são valores que podem aflorar nos momentos derradeiros para quem parte e para os que ficam em torno daquele ser humano prestes ao desenlace. São absolutamente naturais quaisquer das reações, e quase todos já presenciaram entes queridos partirem para a outra margem.
A possibilidade de se pensar em outras vidas, renascimentos infindáveis ou “categorias” do post mortem é objeto de livros sagrados das mais diversas religiões ou seitas e alimenta a imaginação dos humanos. Como se preparar para a morte? O que se passaria na verdade na linha demarcatória? Mistérios que acompanham a humanidade desde os mais remotos tempos. Como viver a vida a pensar no destino final, ou transitório, segundo os budistas tibetanos?
Anteriormente já comentáramos o ótimo livro de poemas de Joan Reventós i Carner Os Anjos não Sabem Velar os Mortos (post publicado aos 06/12/08). No final de um de seus mais expressivos poemas escreve: “É a razão desde o parto./É correr pela vida,/ Carregando sempre a morte.”
Tinha conhecimento de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer de Sogyal Rinpoche (São Paulo, Talento-Palas Athena, 2008, 530 pgs.). Meu diletíssimo amigo Álvaro Guimarães, poucos meses antes de sua partida (vide Álvaro Guimarães – In Memoriam, 04/07/09) escreveu-me a dizer que recebera de uma amiga o precioso livro e que a sua leitura fazia-o melhor entender a difícil passagem que se aproximava. Adquiri a obra que se tornou não apenas meu livro de cabeceira, como motivo para troca de e-mails e telefonemas com Álvaro a respeito dessa possibilidade do vir a ser. Poucos dias após a sua morte, a dedicada esposa, Katrijn Friant, escrevia que ele passara para a outra margem. Tenho a mais absoluta convicção que a obra de Sogyal Rinpoche ajudou-o nessa complexa transição. Tendo finalizado a leitura nesses últimos dias, aspectos fulcrais que podem ajudar todo ser humano merecem ser difundidos, mais do que conteúdos doutrinários, pois sou admirador do pensamento budista-tibetano, mas leigo na matéria.
Abordar O Livro Tibetano do Viver e do Morrer pressupõe a vontade de aprofundar-se no tema, mesmo para o leitor não iniciado. Sogyal Rinpoche interpreta para os leigos o célebre Livro Tibetano dos Mortos, publicado em 1927 e acessível àqueles com conhecimento mais avançado da prática budista originária da região himalaia. Sogyal Rinpoche é mestre conceituado, discípulo que foi de dois iluminados tibetanos, Jamyang Khyentse Chökyl Lodrö (1896-1959) e Dilgo Khyentse Rinpoche (1910-1991), este último abordado em post bem anterior (Leituras sobre o Himalaia – II – Reflexão, Arte, Transcendência, Realidade, 14/12/07). Especializado na meditação budista, Sogyal Rinpoche percorre o mundo a difundir os conceitos da religião, a oferecer cursos nos quais, entre outros temas, a transição vida-morte e o preparar moribundos para a passagem são constantes. Frequenta hospitais, analisa depoimentos de especialistas e experiências daqueles prestes a morrer. A eliminação da carga carmática e a incessante procura do ser humano no desiderato de se chegar à compaixão tornam-se constantes na obra de Sogyal Rinpoche. Ensinamentos a partir da visão budista tibetana, frise-se.
Vida e morte têm outro sentido na mentalidade dos religiosos dessa região. No Tibete, como assevera o autor, as experiências pessoais de ensinamentos apreendidos da natureza essencial, original e mais profunda da mente não tendem a ser popularizados. Pressionado por alunos e amigos do Ocidente buscou difundi-los em seus cursos de maneira até certo ponto assimilável para um não iniciado. Afirma “A natureza da mente só pode ser apresentada por alguém que a tenha realizado por inteiro, e que traga consigo a bênção e a experiência da linhagem”. Diria que se trata de um longo aprendizado, difícil de ser compreendido por quem não penetre a fundo na prática e no desenvolvimento de técnica espiritual exegética. “A contemplação profunda da mensagem secreta da impermanencia – aquilo que de fato está além da impermanência e da morte – leva diretamente ao coração dos antigos e poderosos ensinamentos dos tibetanos: a introdução à essencial ‘natureza da mente’. A realização da natureza da mente, que pode ser chamada de nossa essência mais profunda, aquela que todos nós buscamos, é a chave para a compreensão da vida e da morte”, considera Sogyal Rinpoche. O autor, numa visão ampla da espiritualidade, em vários contextos referentes ao viver e ao morrer não deixa de citar preceitos do cristianismo. Se o Cristo é mencionado várias vezes, assim também São Francisco de Assis, Thomas Merton e outros mais. Poder-se-ia considerar que não há radicalismo no livro, mas um discorrer sereno das profundas convicções budistas do autor frente à complexidade vida-morte.
Toda uma tradição que remonta há milênios faz com que a vida e a morte se fundam numa só compreensão durante a permanência física na terra. Forte convicção de renascimentos infindos, de cargas cármicas a determinar essas novas vidas, a crença em uma transição denominada bardo, mas com conotações outras de grande profundidade e complexidade. Sogyal Rinpoche observa “Bardo é uma palavra tibetana que quer dizer simplesmente ‘transição’, ou um intervalo entre o encerramento de uma situação e início de outra. Bar significa ‘entre duas coisas’, e do é ‘suspenso’, ou ‘lançado’ “. Contudo, o leitor não deve se iludir, pois a compreensão do Bardo é para iniciados, devido à sua profunda abrangência. Considere-se que para o budista tibetano as cargas carmáticas, os estados de serenidade ou angústia frente ao desenlace e até a postura física nos momentos que precedem a morte têm influência na maior ou menor permanência nessa transição morte-renascimento. Em outro contexto, mas tão absolutamente próximo, os versos mencionados de Reventós i Carner estariam a indicar a essência da existência de um budista tibetano.
Ratifico minha condição de leigo nesses temas tão significativos. Entretanto, alguns aspectos fulcrais contidos em O Livro Tibetano do Viver e do Morrer estarão a servir doravante como possíveis acúmulos à minha condição de católico: a coragem de apoiar, sem restrições, aquele em condição terminal – como ocorreu nos meses que precederam a morte de Álvaro – e buscar entender naturalmente esse nosso caminho de finitude, sem ansiedade ou temor.
A experiência do autor levou-o a trazer ao Ocidente práticas tibetanas, como o simples toque de mão, um carinho para aquele que vai morrer. Usar igualmente a técnica de obter do moribundo, através de palavras de reconforto, a possibilidade da reconciliação com aqueles que ficam e que até as horas ou instantes que precedem o falecimento com ele mantinham discórdia; assim como estimulá-lo na medida do possível, a imaginar fatos, paisagens, cores ou pensamentos que transmitam a paz. Para Sogyal Rinpoche, a morte física em situação de desespero, desalento absoluto ou rancor somente propiciará bardos tormentosos. Narra experiências daqueles que morrem na solidão extrema. Recorre à compaixão como elemento essencial e mesmo que não se conheça aquele que está para partir, deve-se tentar essas práticas de alívio. Considere-se que há sempre, à maneira de um leitmotiv, a constância dos renascimentos. Muitas dessas práticas budistas tibetanas são aplicadas diferentemente no Ocidente, mas visando também minimizar os difíceis momentos que antecedem o desenlace. Contudo, entre nós, há, para aqueles que ficam, uma percepção mais dramática do vazio deixado pelo que partiu. Possivelmente, menor resignação.
Um outro tema, muito controverso, é a eutanásia. Há conceituações budistas tibetanas flexíveis quanto ao ato da eliminação. A depender dos contextos, decisões consensuais determinariam atitudes que suprimiriam sofrimentos para quem parte e para os que permanecem. O suicídio, em contrapartida, é entendido como decisão a levar o infortunado ao bardo pleno de negatividade.
O Livro Tibetano do Viver e do Morrer deve ser entendido como leitura preparatória. Budistas ou não podem retirar da competente obra de Sogyal Rinpoche ensinamentos que os ajudem a melhor aceitar a passagem inexorável. A leitura que empreendi só foi possível pela experiência trágica que dileto amigo atravessava. Contudo, ajudou-me a compreender mais satisfatoriamente a transição vida-morte.

This post is an account of my reading of “The Tibetan Book of Living and Dying”, written by the spiritual master Sogyal Rinpoche. A beautiful book, in which the Tibetan wisdom tries to teach us all – regardless of religion or nationality – how to transform suffering into peace. It is a guide for a dying person and also for the living, since death is the ultimate experience that awaits us.