Categoria Perenemente Revisitada

Wilhelm Kempff (1895-1991), ilustre pianista alemão. Clique para ampliar.

Nunca percebera semelhante ressonância ao piano.
Bach escreveu nesse segmento um cantochão para tenor,
enquanto que a melodia
apresenta-se enquadrada por alertas colcheias
tocadas pela mão esquerda
e por filigrana prateada de notas mais breves ainda,
tocadas pela mão direita.
Acreditei estar ouvindo uma trindade sonora,
um órgão do futuro.

Wilhelm Kempff
(adolescente, ao ouvir Ferrucio Busoni
interpretar transcrição ao piano.)

Quando uma obra musical sofre adaptação para outro instrumento ou conjunto deles, chama-se essa transferência de transcrição. Poder-se-ia considerar a tradução literária como equivalente à transcrição musical. A prática é bem antiga e compositores do passado dela se utilizaram para transcrever obras originalmente escritas para determinada configuração, adaptando-as a outras. A terminologia fronteiriça ainda acoberta termos como arranjo, adaptação, versão, a depender do contexto. São famosas as transcrições de J.S. Bach (1685-1750) de obras de Antonio Vivaldi (1678-1741). Jean-Philippe Rameau (1683-1764) transcreveria para cravo segmentos de sua ópera-ballet Les Indes Galantes. Tantos outros exemplos evidenciam a prática rotineira, que atravessaria os séculos. As realizadas por Franz Liszt (1811-1886) das obras originais de J.S.Bach, Paganini, Wagner, Schubert, Beethoven (Sinfonias), apresentando-as em público, ou as transcritas por muitos de seus coetâneos bem atestam a popularidade dessa categoria de linguagem musical. Bem mais tarde, Ferrucio Busoni (1866-1924) transcreveria para piano obras de Bach compostas para órgão, assim como os expressivos corais do compositor alemão. Tornar-se-ia célebre a transcrição para orquestra que Maurice Ravel (1875-1937) empreenderia da famosa criação de Moussorgsky (1839-1881) Quadros de uma Exposição, original para piano. Após a aceitação dessa versão muito divulgada, compositores, entre eles Dmitri Shostakovich (1906-1975) e Francisco Mignone (1897-1986), orquestrariam igualmente a magistral criação de Moussorgsky. Enfim, são infindáveis os exemplos que chegam até a atualidade.
A história da humanidade evidencia sempre fluxos e contrafluxos. Faz parte das aspirações do homem fazer emergir teorias e práticas de conduta, relegar para plano secundário ou mesmo tentar suprimir o que estava estabelecido imediatamente antes. Acreditam os novéis emergentes que a eliminação do passado recente propulsiona caminhos definitivos. Assim acontece em todas as áreas, sendo que nem mesmo a religião escapa e, nas inúmeras existentes, há permanentemente tendências ou seitas interpretando diferentemente textos primitivos. Num sentido mais drástico, toda a revolução tende a eliminar regime anterior. Se a transcrição teve ampla guarida no romantismo, seria contudo mal vista pelos puristas de meados do século XX, que a consideravam, inclusive, uma corruptela do original. Houve até períodos de recuo, quando compositores hesitavam mais acentuadamente em transcrever obras com as quais mantinham afinidade.
Voltando-se ao século XIX, Liszt ao realizar monumentais versões pianísticas das sinfonias de Beethoven, ou segmentos das óperas de Wagner, buscava retirar do piano todas as suas potencialidades polifônicas. Num período em que o instrumento passa a reinar, e suas possibilidades timbrísticas e ampla sonoridade já causavam impacto devido inclusive à revolução industrial, que propiciaria chapas de metal resistentes às grandes tensões das cordas, o quadro mostrar-se-ia delineado. O autor das célebres Rapsódias Húngaras como exemplo, perceberia essa transição e uniria desde logo sua extrema competência pianística a serviço da busca sonora abrangente. Piano transformado em orquestra.
O piano será doravante o instrumento ideal para a transcrição, mercê da sua evolução em curso que lhe permitia possibilidades inimagináveis antes. Os compositores do século XIX e pianistas até meados do século XX familiarizar-se-iam com as características inéditas do instrumento. Como se não bastassem os extraordinários recursos do piano, a virtuosidade como meio de sedimentar intérpretes que se consagrariam até pelos excessos de “malabarismos” pianísticos, e a aura romântica do sonho e da expressividade como veículo à emoção levariam naturalmente a maior número de transcrições. Sergei Rachmaninoff (1873-1943), compositor e notável pianista, apreciava realizar arranjos ou versões apresentados em seus concertos. O mesmo fazia o extrordinário pianista russo radicado nos Estados Unidos, Vladimir Horowitz (1903-1989), ao fulgurar em pirotécnicas transcrições de obras de Georges Bizet, J.P. Souza e, inclusive, criando versão “dificultada” dos Quadros de uma Exposição , de Moussorgsky.
Transcrições, arranjos, versões de obras, mormente de Bach, eleito naturalmente paradigma para essa categoria de linguagem musical, frequentemente povoaram o ideário de compositores e pianistas. Se o Kantor foi propagador da transcrição, seria ele também um dos mais visados em termos de versões de suas obras realizadas por tantos compositores de qualidade diversa. Houve mesmo modismo quanto a transcrever Bach para piano, uma das características românticas, a propiciar a possibilidade da eclosão da virtuosidade para alguns, ou o pleno recolhimento para outros, ou até a fusão das duas expectativas para o público. A obra vasta de qualidade para órgão, assim como para coral despertaria por parte de instrumentistas essa curiosidade na busca de adaptações pianísticas, mas geralmente no trato das mais divulgadas. A eterna necessidade de agradar ouvidos de público ávido pelo já conhecido.
Entre tantos que transcreveram obras de J.S. Bach, três mereceriam igualmente destaque: Wilhelm Kempff, Myra Hess e Alexander Siloti. Dame Myra Hess (1890-1965) foi uma das grandes pianistas do século passado. Nascida na Inglaterra, notabilizou-se sobremaneira nas interpretações de D. Scarlatti, Mozart, Beethoven, Schumann. Possivelmente a mais conhecida transcrição do célebre coral Jesus bleibet meine Freude, (Jesus Alegria dos Homens) da cantata nº 147 de J.S. Bach, tenha sido a da ilustre intérprete. Tantos outros revisitaram o coral, mas a versão da pianista traduz a síntese de procedimentos, sem qualquer ênfase a mais. O célebre pianista e professor russo Alexander Siloti (1863-1945) realizou transcrições de obras de vários autores. Aquelas dedicadas aos Prelúdios para órgão do Kantor tiveram enorme guarida nas fronteiras da metade do século XX e inúmeros intérpretes gravaram o Prelúdio para órgão em sol menor.

Clique para ampliar.

A ligação de Wilhelm Kempff (1895-1991) com J.S. Bach é atávica. Seu pai foi organista, seus familiares músicos. Cristão de fé intensa, desde miúdo Kempff conviveu com o universo bachiano em seus aspectos essenciais voltados ao culto religioso. Ainda criança, ficaria indelével o encontro mágico que teve com o grande músico do período, Ferrucio Busoni, pianista, compositor e pensador que realizaria revisões e transcrições de obras do Kantor. Do notável mestre italiano, o pequeno Wilhelm que fora com seu pai a fim de tocar e dele receber sábios conselhos, ouviria: “Você percebe, ‘nosso’ órgão (referindo-se ao piano) tem somente um teclado, mas na verdade tem muitos. Sou mesmo herético ao pretender que a maioria dos prelúdios e corais de Bach se exprimem melhor sobre nosso piano atual que sobre o órgão, bem mais possante e maciço para essas jóias musicais”. E Kempff comenta em suas memórias (Cette Note Grave – Les Années d’Apprentissage d’un Musicien, Paris, Plon,1955): “E suas mãos voavam sobre o teclado, a fazer ressoar o Prelúdio do coral ‘Regosijai-vos todos, irmãos cristãos’. Quando o mestre terminou, só consegui inclinar a cabeça, em completo silêncio”. O pai de Wilhelm, ao término da execução desse coral transcrito para o piano por Busoni, afirmaria: “Nunca ouvi Bach ao órgão como hoje ao piano. Se houvesse um dia mais homens dessa estirpe, os simples virtuosos e os autômatos do piano desapareceriam por completo”.
A tradição que levaria o excelso pianista Wilhelm Kempff a se notabilizar na interpretação de obras de J.S. Bach, Beethoven, Schubert e Liszt, fê-lo um dos sensíveis compositores a transcrever corais do Kantor. Um dos mais expressivos, Wachet auf, ruft uns die Stimme (Despertai, as Vozes Ordenam), adquire na transcrição de Kempff a aura da inefabilidade.
Felizmente, pouco a pouco pianistas voltaram a interpretar transcrições de mérito. Traduzem essas versões período fundamental da trajetória dos gêneros musicais e merecem, com toda a justiça, a revisitação. Enriquecem o repertório.

Clique nos links abaixo para ouvir as transcrições de obras de J.S. Bach, com J.E.M. ao piano. Gravações realizadas em Müllem, Bélgica.
Bach-Hess: Jesus Alegria dos Homens
Bach-Kempff: Prelúdio-Coral “Wachet auf, ruft uns die Stimme”
Bach-Siloti: Prelúdio para Órgão em Sol menor

Traditionally transcription is the musical counterpart of literary translation. It prevailed particularly during the Romantic period. Wilhelm Kempff, the renowned German pianist and composer of the XXth century, prepared a number of Bach transcriptions and wrote a captivating book on his own early years as a music student. In the book he describes how he listened in fascination to the great Italian pianist Ferruccio Busoni playing his piano transcription of a piece by J.S.Bach originally written for organ.

Turbilhão de Toda Espécie e Imaginação Sonora

O rodopiar da bailarina. Desenho de Luca Vitali. Setembro, 2009. Clique para ampliar.

O pião entrou na roda, ó pião
O pião entrou na roda, ó pião
Roda pião, bambeia pião
Roda pião, bambeia pião…

Cantiga de roda

Vento ou água, quando resultando em sugadores de formatação espiral ou circular, sejam estes os grandes tornados ou simples ventos provocando rodopios da areia, enormes formações em forma de crateras marítimas ou pequeno movimento provocado no ralo de uma pia, representam fenômenos que nos deparamos com frequência. Ao longo da história, o rodamoinho ou redemoinho tem despertado interesse e curiosidade. No mar ou em um grande rio, pode sugar embarcações com extrema facilidade. Quando na configuração de um tornado, tudo o que está pela frente é aspirado, a causar catástrofe. Documentários muito bem cuidados no Exterior mostram imagens aterradoras de ciclones, tornados e tufões, que são acompanhados por especialistas arrojados focalizando suas aproximações e a destruição após curta passagem.
Ainda miúdo, achava curioso ver a água de um imenso aquário ao ar livre em nossa casa ter seu líquido escoado em breve tempo, tão logo o ralo aberto. Formava-se uma coluna afunilada desde a superfície, e toda a água desaparecia como por encanto. Seco o aquário em cimento, tínhamos a incumbência de limpá-lo periodicamente. Num córrego que passava a uns 400 metros de nossa casa e de águas limpas – inimaginável hoje na megalópole – pegávamos pequenos guarus ou barrigudinhos. Num declive natural de vinte e tantos centímetros, mini rodamoinhos se formavam o que facilitava pegar os peixinhos nas bordas desses círculos. Iam todos para o aquário fazer companhia aos pequenos peixes dourados e aos cascudos, estes permanecendo sempre ao fundo. O córrego atravessava a Rua Amâncio de Carvalho e dirigia-se ao Ibirapuera. Gostava igualmente, ao lavar e esvaziar garrafas que serviriam para a transferência de vinhos importados em pipas de Portugal por meu pai, de realizar movimentos giratórios a fazer o líquido descer velozmente sem formar bolhas. Num outro contexto, como não recordar dos piões e dos desafios no recreio da escola, quando menino encantado com o conhecer as coisas? Enrolávamos o pião de madeira com ponta de metal em um cordão, atirávamos velozmente o objeto ao chão após puxar o grosso barbante, e aquele que conseguisse mantê-lo rodando por mais tempo era o vencedor. Longe de ser o melhor entre meus colegas, tinha lá minhas habilidades. Lembrança que não se esquece.
O tema veio-me motivado por dois fatos, um corriqueiro, outro trágico. Estava a correr quando senti uma rajada de vento que levantou a poeira de uma calçada, a formar um pequeno rodamoinho de dois ou três segundos de duração. Afloraram ideias a respeito e associei-as de imediato à música. Ao regressar à casa, sempre na cadenciada corrida, passei pelo nosso cantinho de conversas, onde meus vizinhos aposentados comentavam sobre recente tornado que sugou casas, plantações, pessoas e animais, a causar danos imensos em Guaraciaba, no Estado de Santa Catarina.
No sentido figurado, o fenômeno que provoca o rodamoinho é aplicado em muitas outras situações. A vida que é sugada pelas vicissitudes, o turbilhão da paixão, a atividade frenética. O homem tende sempre a buscar analogias na natureza. Desrespeito às leis naturais a levar a degradação do planeta tem motivado tragédias cada vez mais marcantes e, por analogia, poder-se-ia dizer que os turbilhões da existência têm por sua vez trazido dimensionamentos, levando a distúrbios psíquicos nunca vistos. Natureza e procedimento humano têm muito em comum.
Vladimir Jankélévich, ao abordar a obra de Claude Debussy em três livros maiúsculos (vide Vladimir Jankélévitch e os opostos em Harmonia no item Essays do site), pormenoriza-se no movimento giratório, espiral ou aquele que em círculos não leva a nenhum lugar. Observa: “O paradoxo do movimento imóvel não caracteriza tão somente a água que jorra e a vaga marítima, pois essa ‘coincidentia oppositorum’ é uma marca distinta da velocidade e da cinemática debussysta em geral. Mas a velocidade não é necessariamente progresso”. Referindo-se a Mouvement do primeiro caderno de Images: “qual movimento ! talvez um carrossel e um movimento in loco preferencialmente a um verdadeiro movimento”. Na sequência do pensamento, numa outra visão do giratório, comenta: “ Rondes francesas, gigas inglesas, tarantelas napolitanas: tudo o que leva à rotação e ritmo composto é objeto de sua vertigem”. Em La Boîte à Joujoux, essa obra extraordinária e quase ignota de Debussy, uma Ronde no premier tableau dá bem a noção desse movimento em constante girar.
Através da história da criação musical, verifica-se que rodamoinhos e outros movimentos que tendem a círculos ou espirais, seja a dança impulsiva ou o fenômeno natural, fascinaram os compositores. Contrariamente aos autores germânicos, ibéricos e italianos do século XVIII, que encontraram na terminologia abstrata ou formal veículo para a exteriorização da criação, os clavecinistas franceses tiveram sempre a imagem como inspiração, mesmo que aspectos formais configurassem semelhanças aos coetâneos outros europeus. Interessa ao cravista francês descrever o que vê, ouve ou sente. Se muitos foram os temas abordados por compositores como François Couperin (1668-1733), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e tantos outros, um teria tratamento bem especial, Les Tourbillons (Os Rodamoinhos). Jean-François Dandrieu (1682-1738) e Rameau escreveriam a respeito desse movimento giratório que, traduzido cravisticamente, pode levar a imaginação a entendê-lo em sua origem. Este último escreveria a Houdar de la Motte “Tourbillons de poeira agitados pelos grandes ventos”, a respeito da peça pertencente às Pièces de Clavecin, de 1724. Em forma rondeau, Les Tourbillons é extremamente diversificada em seu tratamento, onde não faltam passagens virtuosísticas. O mesmo não ocorre com a peça de Dandrieu, também na forma rondeau, caracterizando-se pela graciosidade, verve, rapidez, mas sem as inovações que o Mestre de Dijon, Rameau, apresenta.
Da puerilidade dos cravistas barrocos nessa interpretação à própria percepção de autores quanto à aceleração de intensidades relativas aos acontecimentos naturais, tudo leva a supor que o homem não prescindirá, como temática “criativa”, desse constante girar, a exemplo do que se passa no universo. O importante, à maneira do pião guardado no meu lúdico, é não perder a noção do eixo. O equilíbrio volta a ser sentido.

Clique nos links abaixo para ouvir, na interpretação de J.E.M. ao piano, as faixas:

Les Tourbillons, de J-P. Rameau

Les Tourbillons, de J-F. Dandrieu

Ronde (Boîte a Joujoux), de C. Debussy

Noticing a small whirl of dust on the ground amidst the wind during my morning jogging, my mind went wandering about twisters and typhoons, the metaphorical “windstorms” of one’s life and the fascination composers have always had for such natural phenomena, drawing inspiration for their pieces from the swirling movements of such violent columns of air.

A Negação como Defesa

A Máscara. Desenho de Luca Vitali. Setembro, 2009. Clique para ampliar.

Rien ne naît ni ne périt, mais des choses
déjà existantes se combinent, puis se séparent de nouveau.

Anaxágoras de Clazômenas (500 a.C – 428)

Rien ne se perd, rien ne se crée, tout se transforme.
Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794)

Estava a aguardar consulta e fui até a janela do consultório que dava para um estacionamento. Carros chegavam e saíam, e os funcionários colocavam os cubos numerados que fazem parte do cotidiano nesses incontáveis estabelecimentos guarda-carros da megalópole. Modelos diferentes de montadoras fixadas no país. Dei-me conta, mais pormenorizadamente, da mesmice dos veículos e pensei nas propagandas que inundam televisores, rádios, jornais e revistas, a glorificar o arrojo e originalidade das linhas de tal novo carro lançado. Contudo, para um leigo, são todos os modelos muito parecidos, diferenciando-se através dos detalhes. Se dirigentes dessas montadoras forem entrevistados, tomarão como injúria a palavra imitação, mas que ela existe é evidente, mesmo que camuflada por “inspirado em vaga ideia”. Mutatis mutandi, o mesmo ocorre com todo tipo de mercadoria à disposição do consumidor. Fabricantes recusam-se a admitir que partiram de modelos concorrentes que ditaram inovações. Estes, por sua vez, foram desenhados a partir de protótipos de toda espécie de firmas. Essas observações levaram-me a reflexões.
Já na Grécia antiga, mímese designaria imitação – imitatio, em latim -, e os filósofos gregos debruçaram-se sobre o conceito, mormente Platão e Aristóteles. No século XV, sob outra égide, o célebre Imitação de Cristo, atribuído a Tomas à Kempis (1380-1471), dava ao homem a prerrogativa de seguir os passos de Jesus na aplicação de conduta ditada pelos Evangelhos. Livro de cunho devocional, proporcionava ao fiel o modelo de virtude. Teve enorme guarida durante séculos. Santo Inácio de Loyola teria se inspirado na obra, a fim de estabelecer princípios espirituais.
O termo imitação tem sido compreendido como pejorativo. Dificilmente alguém aprecia essa palavra quando a si aplicada, mas a história tem evidenciado que os acúmulos do conhecimento se baseiam em algo já pensado. Dir-se-ia que um degrau a mais no longo caminho em direção ao desvelamento.
Se observarmos os movimentos artísticos – pintura, escultura, música, teatro, literatura – e, mais recentemente, o cinema, poderemos sentir com clareza, através dos séculos, aquisições que paulatinamente estariam a configurar novas técnicas relacionadas às artes, mas que sofreram influências do passado.
Parte-se sempre da aquisição daqueles que permaneceram pela qualidade, referências paradigmáticas, estabelecendo-se então princípios orientativos para o aprimoramento. Legião de aprendizes dirigem-se diariamente aos museus ou às escolas especializadas e retratam o que foi realizado e que perdurou, assim como modelos ao vivo. Escultura, pintura e desenho estimulam essa possibilidade do vir a ser. Busca-se, através da imitação, chegar ao conhecimento das técnicas elementares às apuradas, que servirão no futuro, se qualidade houver, à própria criatividade daquele que está, de certa forma, a imitar ou a reproduzir gestos e traços.
Na Música, o termo Imitação é utilizado quando frase anteriormente exposta é novamente apresentada, alterada ou não, em outro segmento da textura musical. Essa característica repetitiva poderá obedecer a inúmeros critérios na organização da obra. Sob outra égide, as técnicas das escolas de composição não estariam a estabecer a constante presença de alicerces seguros que demonstram origens? Para a interpretação, que maior modelo para um estudante do que ouvir os grandes mestres?
Não reconhecer que ideias foram extraídas de acertos seria falta de modéstia. Quando o ilustre compositor Francisco Mignone (1897-1986) escreveu A Parte do Anjo – Autocrítica de um Cinquentenário (São Paulo, E.S.Mangione,1947), teceria considerações sinceras e sem preconceitos a respeito do plágio. Em sendo o aproveitamento de “elementos fecundos da criação alheia”, considera que “Ninguém é inteiramente pessoal. O que devo é organizar essa faculdade de maneira a me aproveitar do alheio”. Observa: “Todos os grandes artistas de todas as artes foram enormes plagiários. O plágio só é condenável quando feito com a intenção de roubar o sucesso alheio”. Menciona poeta paulista: “Guilherme de Almeida plagiou descaradamente Pierre Loüys, mas conseguiu fazer as admiráveis Canções Gregas”. A acompanhar a História: “Foi a tempestade de Ulisses, em Homero, que deu a tempestade de Virgílio, e esta deu a tempestade de Camões. São tempestades idênticas, e no entanto… são três tempestades!” Enumera compositores que permaneceram na história como tendo recorrido às aquisições de seus ascendentes: “deixar de bobagens e de pruridos de ser original. Originalidade está na lógica da criação e si Debussy é feito de uma parte de franceses (até de Massenet!), e uma terça parte de Moussorgsky, lhe bastou botar uma terça parte de Debussy na sua criação para ser original e chefe de escola!” Explicaria essa atitude a adesão a preceitos europeus no quesito composição. Fá-lo conscientemente, mas se fosse criticado e “si os outros disserem que estou imitando, si disserem que a minha invenção melódica é banal, que estou mostrando o meu rabinho italiano em meu brilho e violência apaixonadas, mandarei todos àquela parte”. As convicções de Francisco Mignone permaneceram ao longo das décadas. Cerca de um ano antes de sua morte, ocorrida em 1986, escreveu-me carta a ratificar convicções: “Junto vai a ‘Parte do Anjo’. Você vai encontrar a minha maneira de ser como artista. Continuo e permaneço sempre o mesmo!”
O notável escritor português Miguel Torga (1907-1995) teria compreendido a proximidade entre imitação e acúmulo, a resultar no próprio estilo de um autor. Em palestra, explicaria: “Acham que é possível ser um espontâneo, saltar para dentro da arena literária e fazer uma obra assim de qualquer maneira? Quando um escritor escreve uma coisa significativa, fá-lo tendo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. Numa literatura como a portuguesa, que tem 700 anos de idade, não acham que essa herança é uma carga muito pesada? Acham que é possível escrever sem saber o que escreveram todos os antepassados da língua? Sem fazer um esforço prévio?” Em termos literários, como musicais, ter conhecimento intenso do que foi escrito ou composto, apenas dará consistência à obra. Desse entendimento poderão eventualmente advir proximidades que levem à imitação, realizada conscientemente ou não.
Mario Lavista (1943- ), notável compositor mexicano, tem precisão quanto às influências sobre sua obra. Em entrevista a mim concedida em Julho de 1989 e publicada um ano após na Revista Música da USP, observou: “Eu estou convencido de que elegemos nossos antecessores e quais são nossos avós. Eu elegi Mozart e Debussy como meus antepassados, mas essa escolha não foi sempre imutável. Há muitos anos, Webern foi meu antecessor; num futuro próximo, poderei eleger um outro”.
Influências notórias encontramos em basicamente a totalidade da criação humana. Faz parte da trajetória do homem. Desde os genes contidos no útero materno até a morte, estamos sempre a receber impactos que têm peso decisivo em nossa conduta. A imitação bem administrada e “autêntica” também integra esses acervos. Não seria a tradição dos povos Culturas sobrepostas? Religião, costume, língua não subsistem pela traditio e pela repetição? Quando os cravistas em França nos séculos XVII e XVIII e Olivier Messiaen (1908-1992) evocam o onomatopaico, não buscam, através da douta escrita musical, reproduzir o canto dos pássaros e das aves? Em La Poule (1728), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) chega a escrever na partitura as hipotéticas sílabas da galinha. Em toda a história da música há exemplos desse emprestar da natureza sons e ruídos que lhe são característicos. Cachoeiras, relâmpagos, trovões, sem contar os emitidos em batalhas, evocação de instrumentos vários, até a eclosão do romantismo, sob égide outra, a clamar o sentimento humano como expressão maior.

Jean-Philippe Rameau. La Poule (1728), primeiros compassos. Clique para ampliar.

Clique aqui para ouvir La Poule, de Jean-Philippe Rameau, com J.E.M. ao piano

Autores se inspiraram em temas consagrados como citação e tem-se uma profusão dessas menções. Possivelmente, o antológico Dies Irae tenha sido um dos mais citados na história. Mozart, Verdi, Berlioz, Liszt, Saint-Saëns, entre tantos, utilizaram-se desse tema em obras específicas. Imitação? Talvez não. Citação sim, e clima outro para estruturas reinventadas a partir desse hino medieval.
Volta-me a ideia de carros antigos fotografados. Nos primeiros registros do início do século XX, poucas marcas, mas formatos bem próximos, independentemente da soberana cor preta. Hoje, muitas marcas, uma certa tendência para o cinza e grande semelhança nas linhas. Ou seja, nada mudou quanto ao conceito. Aperfeiçoamentos de montadoras “copiados” para modelos de concorrentes. Contudo, nega-se sempre a origem a motivar o plágio, e a propaganda, como assaz acontece, ajuda a vender a “originalidade absoluta”, mesmo que seja a partir do pormenor. E todos parecem satisfeitos nessa parafernália. As diferentes emissoras de rádio insistem, cada uma à sua maneira, mas com incrível dose imitativa, que os seus comentaristas são os melhores do Brasil; antigripais de tantos fabricantes proclamam seus remédios como os únicos que liquidam a gripe. É só ler a bula e verificamos a identidade dos princípios ativos. Sob contexto próximo, igualdade absoluta nos propósitos, repetições flagrantes para o ouvinte. Anátema dos poderosos à palavra imitação, apesar de ser ela tão evidente. Aceitá-la com naturalidade seria prova de grandeza dessas empresas, impedidas de acatá-la por motivos unicamente voltados à necessidade de demonstrar primazia. Nas artes seria plausível acreditar que majoritariamente artistas e artesãos não negam ascendendências transparentes. Tornar-se-ia evidente que o curso do rio continua e que as águas que retornam às suas cabeceiras fazem parte do ciclo da natureza. Ciclo do homem, sempre a renovar a partir de ensinamentos do passado.

Watching cars going to and fro at a parking lot, I observed once more how similar to one another they all look, differing only in details. The industrial design of one is blatantly copied by another, though automakers vehemently deny it. This was the starting point of a reflection on mimesis or imitation, a word in general considered pejorative. However, history shows that in any field of knowledge – when talent exists – pre-existent models function simply as starting points for innovative ideas of one’s own making.