Generosidade dos Leitores

Generoso desenho de Luca Vitali após recital privado. Fevereiro 2009. Clique para ampliar.

O que ganhamos viajando até a Lua,
se não podemos cruzar o abismo que nos separa de nós mesmos?
Essa é a mais importante de todas as viagens de descobrimento,
e sem ela todo o resto é não apenas inútil, mas desastroso.

Thomas Merton

Uma mudança de significado é necessária
para transformar este mundo política, econômica e socialmente.
Mas essa mudança deve começar no indivíduo,
esse significado deve mudar para ele…
se o significado é uma parte vital da realidade,
então, uma vez que a sociedade,
o indivíduo e as relações sejam vistos
como alguma coisa diferente,
uma mudança fundamental ocorrerá.

David Bohm

Atingimos essa cifra após dois anos e meio de posts publicados semanalmente de maneira ininterrupta, sem qualquer publicidade, sem a menor ventilação fora do próprio veículo de comunicação de que disponho. Houve aproximações para abertura a determinadas propagandas, mas preferi manter-me fiel aos propósitos eleitos, pois poderia haver cobranças ou pressões mercê de patrocínio. A independência do pensar pode levar a equívocos, mas está a traduzir a nossa pulsação sem qualquer aparelho controlador. Dependerá de quem escreve essa auto-avaliação que tantas vezes é repartida, pré-blog, com amigos que comungam ideias afins. Em textos espalhados nesse período frisei que reflexões costumam aflorar a partir de fatos os mais variados. A temática surge sem qualquer esforço devido aos impactos de toda ordem. A simples observação do cotidiano, as impressões sempre enriquecedoras das viagens, as leituras permanentes e a música, que é a própria respiração, estão a me servir, perenemente, como fontes inspiradoras.
Meu saudoso pai dizia que, sem um método preciso, dificilmente o homem atinge objetivos. Dizia mais, a complementar que disciplina, concentração, vontade e, de preferência, amor ao que se faz derrubam barreiras. Quando Magnus, meu antigo aluno e amigo sincero, sugeriu a criação do blog, relutei com certa firmeza. Entendia Magnus que temas tratados através do diálogo deveriam ser repartidos com potenciais leitores. Montou tecnicamente o blog, sem o meu aval, a dizer “ele está à sua disposição, é só começar a escrever”. Foi aos 2 de Março de 2007 que surgiu o primeiro post inserido no blog. Não houve até o presente uma semana a falhar, e o texto entra durante todas as madrugadas dos sábados. Uma amiga perguntou-me se eu não me dava férias quanto aos posts. Disse-lhe que se textos acadêmicos para o Exterior fluem periodicamente, mas sem previsão, o post para o blog e a música são respirações. Sem eles, o coração deixaria de bater. Trégua para o respirar? É curioso que, a partir do post inicial, pouco a pouco, assim como acontece com a música, o blog integrou decididamente meu batimento cardíaco. Confesso ao leitor que em geral os temas e as ideias para os textos surgem durante as corridas que realizo pelas ruas de minha cidade-bairro três vezes por semana. Diria que as passadas e a cadência respiratória avivam ideias tantas vezes retidas e conservadas numa espécie de baú mental, sendo que tantas outras nascem das leituras, do olhar o cotidiano, das viagens que permanecem.

Corrida Corpore 10km, 23/08/09, tempo 1:11:26. Foto Daniel Martins da Treinoonline. Clique para ampliar.

A depender do tema, o vernáculo pode sofrer adaptações. O cotidiano é sempre mais informal, contrapondo-se às resenhas ou aos comentários de livros, que fazem parte de meu outro cotidiano. Cada livro eleito para a leitura representa a visita a um universo desconhecido. É uma das dádivas da civilização. Tecer considerações sobre esses caminhos que os olhos percorrem e a mente absorve dá-me profundo prazer.
A leitura que fazemos do cotidiano não frequentado pela mídia não seria uma outra forma de prospecção? A escrever sobre personagens que eclodem panfletariamente nos meios de comunicação, prefiro retratar com palavras experiências sensíveis que Pedro o andarilho, Sisuphos, os moços do supermercado e da feira-livre, o velho e atencioso amolador Constantino, Carlinhos da pequena loja de produtos de limpeza, os músicos da calçada, o jornaleiro proporcionam-me a cada momento. São eles parte de meu olhar que pulsa nessa comunhão com essa gente humilde, digna, trabalhadora ou, nos tristes casos de Pedro e Sisuphos, abandonados pela sociedade. Os retratos da escrita, quando nesse segmento ignoto para a mídia, despertam a sensibilidade de Luca Vitali, artista que pratica o ato de comunhão em arte, depois do olhar o cotidiano que a maioria teima em não ver, e espontaneamente, sem eu nada dizer, ouve a leitura que gosto de fazer de determinados textos – pré-edição no blog -, capta a mensagem, traduzindo-a em poesia do traço. Flui a criação com a naturalidade dos grandes. Quando o desenho tende à “fotografia” poética, é Maria Fernanda que traduz determinado contexto com rara sensibilidade. Minha mulher Regina e Magnus permanecem ouvintes sensíveis dos textos em fase final que, a seguir, generosamente têm o crivo de Regina Pitta, revisora atenta e autora dos abstracts. O compositor Henrique Oswald já dizia que o pior revisor é o autor e complementava que se incluía entre os piores. Se de um lado há esse pré-conhecimento dos posts por alguns, como não ficar sensibilizado com leitores assíduos, alguns deles escrevendo-me semanalmente sobre temas lidos e as inserções dos conteúdos em suas vidas. A partir dessa espontânea comunicação, exemplos têm-me enriquecido e estimulado a prosseguir. De Portugal e de vários rincões de nosso país escrevem-me e as experiências trocadas são outra categoria do pulsar irmanado.
As viagens têm sido o registro de outros cotidianos, das paisagens e construções que cá não temos e do convívio humano. No fundo somos todos iguais e os sentimentos de amor, de amizade permanecem semelhantes, aqui ou alhures. A visão frente à vida pode diferenciar-nos, pois sofremos de problemas endêmicos devido ao descaso do Estado nesse nosso país eternamente deitado. Em que berço?
A aposentadoria da USP permitiu-me a liberdade da escrita informal, longe do rigorismo tantas vezes inócuo ou dos malefícios da pseudo-erudição evidentes em inúmeros textos acadêmicos (vide “Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas, 21/03/09). A crítica à universidade pública brasileira, contida nas entrelinhas de textos espalhados pelo blog, na realidade é a denúncia ao que de nocivo está a acontecer em nossa educação e nas benesses precisas a tantos projetos estranhos. Que desestimula o ensino público básico e médio e que repercute no ensino superior, não há dúvidas. O tempo evidenciará o capitis diminutio que está a ocorrer na área da educação em todos os níveis, mercê do quantitativo sem estrutura em detrimento da qualidade seletiva.
A Música tem sido tema constante. Basta uma ideia surgir, ou receber a sugestão de um leitor atencioso, para que pouco a pouco determinado assunto comece a germinar. Os e-mails recebidos vêm através do endereço contido no contact do site. Costumo respondê-los, e diálogos extremamente interessantes têm estimulado o pensar. Procuro contudo adaptar as indagações e interesses dos leitores àquilo que me é caro na Música, a sua própria essência a partir da interpretação. A busca eterna pela consideração ao estilo do compositor e todas as decorrências que dele advém.
Personalidades que me foram caras, mestres não esquecidos, amigos que passaram para a outra margem, deixando exemplos de afeto, são temas que, por vezes, abordamos contristados. Revelam que convívios permanecem e que a gratidão por tê-los conhecido deságua no mínimo em forma de tributo que jorra sincero.
A montanha. Os Himalaias que me levaram às leituras das aventuras e do pensamento místico da região. Católico, não dispenso penetrar minimamente nesse pensar puro e elevado de alguns iluminados mestres tibetanos. Há tantas concordâncias com o cristianismo. Leigo no budismo, os textos tibetanos, a revelar a inclinação do homem em direção ao aperfeiçoamento individual e dele à compaixão que pode advir, seriam uma visão bem próxima aos ensinamentos que me foram transmitidos durante a trajetória. Ajudam a melhor compreender o homem na procura da plena humanidade. Utopia, talvez, mas vale acreditar.
Dileto amigo ponderou que deveria escrever sobre o que acontece na política brasileira. Sou um a integrar muitos milhões de descontentes com o que acontece nos três poderes desse país. Contudo, há especialistas que diuturnamente proclamam a vergonhosa situação a que chegaram as classes políticas e empresariais, umbilicalmente ligadas em tantas escandalosas oportunidades, quando interesses estranhos se apresentam. Escrever sobre esses tristes episódios? Qual seria a razão, se tantos outros com autêntica competência o fazem? Portanto, não será esse pantanoso terreno aquele em que ousaria colocar opinião pessoal, um mínimo post sequer. Certo dia, conversando com respeitado cientista político, dizia-me ele que a cada artigo que fluía de sua mente a respeito da realidade político-empresarial do Brasil, e destinado a determinado veículo de comunicação, seu batimento cardíaco chegava às alturas e a sensação de fel que sentia após redigi-lo atestava o descontentamento. Não que me queira furtar, mas são tantos a denunciar, tão cristalina a verdade ! Contudo, a impunidade, mãe de tantos vícios, chaga a sol aberto nessas terras tropicais, está sempre a apontar para o desvario e o surrealismo absoluto dos quais somos observadores sem a menor possibilidade de reação, pois as máquinas dos compadrios estão instaladas. Se o fugir à verdade é soberano nessa triste realidade brasileira, com o beneplácito dos três poderes, nada a fazer, a não ser protestar, sabendo que ouvidos e olhos bem tampados – estes sim, definitivamente vendados à justiça – descartam por parte da “trindade” o encontro com a realidade gritante das ruas.
Persisto. Até quando, não sei. Os posts continuarão a fluir, livros vão sendo penetrados com prazer acentuado, o cotidiano é sempre surpreendente e a música permanece intacta. Entre suas dádivas, está a de me fazer conhecer repertórios sempre renovados, sons inefáveis, raças e regiões. A geografia e o contato humano no Exterior possibilitaram a extensão sonora, e cada centímetro percorrido e um novo encontro calam fundo em meu coração. As corridas pelas ruas e em provas que me são caras, pela proximidade com a gente saudável e feliz, têm-me, como acréscimo, melhorado o desempenho físico. E por fim, a família. Sem a compreensão dessa âncora, que atenua turbulências, não estaríamos possivelmente à deriva? Complementando meu post inicial de 2 de Março de 2007, continuemos cúmplices. A guarida do querido leitor é chama que não se apaga, e o seu contato, mesmo que distante, faz-me ainda mais refletir sobre o grande mistério, a existência.

This week the number of visitors to my blog reached 50.000. I would like to take this time for a few words of gratitude to those who, working behind the stage, help me keep the blog and also to recollect the subjects that are dearest to me: music, books, travels, family, friends, the man in the street.

Espectador Assustado

Jornal El Zonda, San Juan, 12/07/06. Clique para ampliar.

Por ejemplo en el norte, carnavalitos y bagualas se apoyan
en el suelo argilloso y el aire caliente de las provincias norteñas,
en la Región de Cuyo cambia el clima,
los frutos, la temperatura y escuchamos cuecas y valses,
que pueden decir
“ando extrañando el zonda, su viento y polvareda”
hablando de un viento que arriba a esa región con su aliento de fuego.

Susana Giraudo

Diariamente, nos intervalos de estudo, vou conversar com velhos amigos no mesmo cantinho de sempre, ou aproveito para tomar um curto. Hábitos que se enraízam. Meus companheiros tinham lido a respeito de uma espécie de ciclone ao sul do país com rajadas de até 80km por hora. Estavam a trocar ideias, pois houve destruição de casas, rede elétrica danificada e alguns feridos. Disse-lhes que não é nada agradável assistir a um espetáculo desses, pois eu mesmo presenciara na Argentina ventos de até 130km, severo na opinião de especialistas. Notei que houve certa desconfiança e prometi desde logo escrever um post a respeito do acontecido.
O fato ocorreu no inverno de 2006. Deslocara-me até San Juan, a fim de participar, juntamente com os excelentes pianistas e professores Miguel Ángel Scebba (www.miguelangelscebba.com.ar) e Dante Medina, do III Encuentro Internacional de Piano promovido pela Universidad de San Juan, que se realizou entre 10 de 15 de Julho.
Durante a master class que dei no magnífico auditório da universidade, na tarde do dia 11, por volta das cinco e meia, ouvi barulhos estranhos e breves interrupções da iluminação. Continuei, mas as portas começaram a ranger, como se pessoas quisessem entrar. No momento em que fui abrir uma delas, forte corrente de ar irrompeu, a haver de imediato corte da luz. Algo estranho acontecia. Fomos todos ao saguão e deparamo-nos com espetáculo de impressionar. Pelos vidros espessos do amplo saguão víamos galhos imensos voando, baldes, papéis, árvore a cair, uma nuvem de poeira e de terra deixando a visão do entorno totalmente prejudicada, cenário dantesco acrescido pelo ruído absoluto do El Zonda, o temível vento.
Toda a população dessa região oeste da Argentina, fronteiriça à pré-cordilheira andina, teme o El Zonda. Nasce no Oceano Pacífico e na origem está carregado de umidade. Sobe as encostas dos Andes no Chile onde, em forma de neve, despeja umidade, atingindo a essa altura temperaturas bem abaixo de zero. Ao ultrapassar a cadeia montanhosa, desce pelos vales e planícies, encontra maior ou menor frente quente e, a depender dessas intensidades, infiltra-se e ganha velocidade, aquecendo vertiginosamente a temperatura, que em pleno inverno pode passar do negativo aos 30 graus acima de zero. Uma das causas do El Zonda é a grande diferença de pressão atmosférica entre os dois lados da Cordilheira dos Andes. Geralmente tem sua maior força no fim da tarde, quando as temperaturas são mais elevadas. Segundo os meteorologistas do país vizinho, El Zonda é moderado quando sopra até 50km hora, intenso entre 50 e 100 e severo acima dessa marca.
No dia 11 já sentia um vento estranho no meio da manhã, quando fui a pé ao auditório, distante umas dez quadras do hotel, a fim de realizar a mencionada sessão de master class. O ar estava seco e a poeira, característica nessa época do ano, parecia-me intensa. As altas árvores dos parques tinham em seus topos movimentos inusitados nos galhos mais frágeis. Disseram-me, sem ênfase, que era El Zonda, que sopra todos os anos de Maio a Novembro.
À tarde, durante a master class, El Zonda já havia provocado estragos consideráveis, a causar em sua longa passagem: rompimento dos cabos de alta tensão; incêndios em várias partes de San Juan e em outras localidades, mormente Mendoza; destruição de muitos veículos atingidos pela queda de árvores ou mesmo capotados; redução da visibilidade a quase nada devido à poeira e à terra em suspensão. Colapso total. Dentro do auditório, estávamos alheios ao que se passava no exterior. Depois, ilhados no saguão da Universidade, sem luz alguma, por lá permanecemos até às 2 da manhã. Na lanchonete, à luz de velas, ficamos a dialogar, alunos e professores, sobre música, amenidades e El Zonda. Funcionários mais velhos disseram que raramente viram tão grande intensidade. Durante essa nossa conversa amistosa, soprava violentamente El Zonda pela região. Quando de lá saímos, a velocidade amainara e dirigimo-nos ao hotel. A cidade sem luz parecia ter sofrido um bombardeio, pois apresentava-se caótica. Árvores, entulho, galhos e veículos destruídos, casas destelhadas, muros caídos davam a imagem da catástrofe. Sem luz, subi com uma vela para o meu quarto. Impressionou-me o quadro à minha frente. A poeira tinha alguns milímetros, era uma secura só. A sala de banho plena dessa camada espessa. Nada a fazer, a não ser dormir e aguardar.
No dia seguinte, verifiquei que não havia iluminação. Ao descer munido da vela, um único tema no saguão do hotel e no café às escuras, o temível vento. Na saída, comprei o jornal El Zonda e constatei o resultado da catástrofe. Vento na categoria severo ao atingir de 120 a 130km por hora. O Serviço de Meteorologia da Argentina detectou velocidade de 160 nos contrafortes da Cordilheira dos Andes. Moradores acreditavam que tamanha intensidade não se registrava há décadas.

Recital de J.E.M. San Juan, Argentina, 12/07/06. Clique para ampliar.

Fui novamente a pé até ao auditório e pude observar o estado de calamidade pública, um dia após uma caminhada serena. O caos. Ao chegar, sempre sem luz, dirigi-me à sala de Miguel Ángel Scebba, que gentilmente cedeu seu espaço para que estudasse para o recital que deveria dar à noite no auditório. Durante todo o dia não tínhamos a certeza da apresentação. Ao final da tarde, com o retorno da energia elétrica, ficou definido que o recital seria dado, mercê da agenda apertada do Festival. Certamente a população estava traumatizada e os quinze corajosos ouvintes, que foram à apresentação naquele extraordinário auditório para cerca de 900 pessoas e possuidor de acústica impecável, eram na verdade os dois pianistas professores e os intérpretes inscritos para o curso. Após o recital, um jantar descontraído com todo o “público”, regado pelo generoso vinho tinto de San Juan, selava entendimentos. Nos dias posteriores, dois recitais maiúsculos foram dados por Scebba, em magnífica versão dos Quadros de uma Exposição de Moussorgsky, e por Medina, em ótimas leituras de D. Scarlatti e Mozart.

Entrevista publicada em El Zonda, San Juan, 13/07/09. Clique para ampliar.

Ter estado em San Juan, participado do Encuentro, conhecido intérpretes argentinos de raro valor e, ao mesmo tempo, ter degustado o excelente vinho da região, assim como presenciado o fenômeno mais expressivo da província, El Zonda, resultaria num avivamento da memória tão logo qualquer dos fatores acionado.
Ao regressar à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, conversei com minha talentosa ex-aluna Beatriz Alessio que posteriormente à minha orientação, estudou por quatro anos com Miguel Ángel Scebba em San Juan. Disse-me que conhecia El Zonda, mas jamais com essa intensidade, e que eu fora premiado com essa possibilidade de observação da força da natureza. Realmente, uma experiência inusitada. Pouco sabemos desses fenômenos que acontecem periodicamente no Chile e na Argentina. Impressionam.

The Zonda wind blows from the Pacific ocean, over the Andes Mountains and into the northwest of Argentina. Sometimes reaching 130 km per hour, it is feared by the population of Mendoza and San Juan, where its effects are more impressive. In July 2006 I was in San Juan for a Meeting of Pianists and had a chance to witness in loco the ruthlessness of the Zonda wind, the destruction in its wake and its impact on the community.

Amigo e Afinador

Giovanne Aronne na busca incessante do som exato. Clique para ampliar.

O amigo no templo, aquele que,
graças a Deus, eu reencontro,
é o que devolve meu olhar
com a mesma expressão,
iluminada pelo mesmo Deus,
pois desde logo a unidade se fez,
mesmo sendo ele comerciante e eu capitão,
ou ele jardineiro e eu marujo sobre o mar.
Acima de nossos pontos de vista,
eu o encontrei e sou seu amigo.

Antoine de Saint-Exupéry

O desaparecimento recente de amigos diletos faz-me tecer reflexões sobre a perda de entes importantes que apreendi a amar através de exemplos que deixavam diuturnamente. Álvaro Guimarães (vide Álvaro Guimarães (1956-2009) – In Memoriam, 04-07-09) e Giovanni Aronne permaneciam presentes em meus pensamentos, fosse a partir de menções em conversas com outros amigos ou pelo contato direto, quando sentíamos realmente prazer no convívio.
Giovanni nasceu na Itália, em Orsomarso, província de Cosenza, e desde tenra idade teve inclinação para a música. O canto foi-lhe sempre familiar, desde a participação em coral da igreja da cidade. Aportou no Brasil em 1953, a iniciar aos 16 anos vida laboriosa na Pianofatura Paulista. Giovanni, pouco a pouco, foi granjeando respeitabilidade na área da afinação e reparo de pianos, tanto nas incontáveis residências da cidade e do interior, como mestre afinador das principais salas de concerto de nossa cidade: Teatro Municipal, Sala São Luís, Fundação Oscar Americano e tantas outras. Mente privilegiada, soube incutir em seus três filhos – Marcelo, Ângela e Armando – o amor pela profissão, seguindo antiga tradição bem européia de transmissão desse ensino de pai para filhos, e que fundamenta decisivamente competências na área. Assim foi na construção das igrejas medievais, assim também o trabalho artesanal em todas as áreas prolongou-se, por vezes durante séculos. Poderia ser apenas um afinador, mas foi o mais importante da cidade e sua grande oficina de reformas de piano na zona leste, assim como as duas lojas da Vila Mariana e Higienópolis, atestam a abrangência profissional de Giovanni, que soube delegar responsabilidades aos filhos com o passar do tempo (www.aronepianos.com.br ). Amante do bel canto, apresentava-se com amigos em locais apropriados e divertia-se muito com essa atividade, tanto nas apresentações como tenor nas récitas promovidas pelo professor Domingos Viola Neto no Círculo Militar, como também nas orientadas pelo professor Dante Perini na Unione Italiana.
A morte de Giovanni Aronne no dia seis de Agosto pegou-me de surpresa. Poucos dias antes conversáramos ao telefone e o amigo já mencionava um declínio das funções coronárias, que se acentuaram a partir do começo deste ano. Mas continuava a trabalhar, cuidar de suas casas de piano e a afinar. Atencioso, tinha sempre segredos no trato dos instrumentos. Apesar de o Brasil não ter quantidade de pianos das melhores marcas do mundo em bom estado e de inexistir a assistência técnica imediata das fábricas internacionais, Giovanni, aqui nos trópicos, fazia por vezes milagres, quase sempre a acertar em seus engenhos. Uma peça da intrincada mecânica do piano enguiçada, som que estava a se deteriorar, afinações que não se mantinham em instrumentos mais antigos, pedais com problemas, cordas rompidas e lá estava Giovanni a estudar a melhor maneira de reparar o estrago do tempo, do uso ou até… dos terríveis cupins.
Conheci Giovanni nos anos 50, mas tivemos uma ligação ininterrupta a partir da década de 60. Jovem como eu, demonstrava rara aptidão para a profissão. Naqueles tempos em casa de meus pais tínhamos sete pianos, três de cauda inteira, e Giovanni já se salientava nessa disposição permanente quanto à verificação das avarias ou à afinação cuidadosa. João Carlos e eu mantínhamos com ele longas conversas, pois Giovanni durante toda a vida mostrar-se-ia um interessado contador de casos.
Foi Giovanni que anos depois, até a sua morte, cuidou dos pianos de nossa casa. Atento, poderia atrasar uma visita, mas não deixava de realizá-la. Por tradição e gosto, apreciávamos sempre durante o almoço, no intervalo das afinações, o vinho generoso – português, de nossa preferência -, pois Giovanni sabia que, quando cá vinha, a visita prolongava-se nos reparos dos instrumentos desgastados ao longo do tempo, graças à nossa prática diária durante várias horas, a resultar em constantes desajustes. Ultimamente, quando não podia vir, era um de seus filhos que realizava os consertos a contento.
Seu sogro era português, torcedor da lusa e colecionador de aves canoras. Faleceu há tempos, mas quando eu ia ao Tatuapé visitar Giovanni não faltavam boas conversas sobre pássaros, a excepcionalidade de alguns, e sobre a nossa sempre Portuguesa, nau permanentemente à deriva. Glória, a dedicada esposa de Giovanni, preparava o café e o “papo” se prolongava. Esse convívio com o sogro deu ao dileto amigo afinador o gosto pela cozinha portuguesa, que Giovanni conservaria até o final de seus dias. Almoçamos uma vezes no Restaurante Cereja, no entorno de seu bairro, onde o bacalhau é especialidade. Um requinte para o afinador e para o pianista.

Clique para ampliar.

Como gostava de cantar as belas canções italianas, gravou um CD em que despretensiosamente, mas com grande expressividade, lembra perenemente de sua Italia mia.
Granjeou amizades em todos os cantos. Cuidou dos pianos de grande parte dos músicos que operam na cidade, assim como daqueles amadores que têm o instrumento como companhia e entretenimento. Sua índole voltada à vida simples e o seu espírito empreendedor, responsável pela competente empresa que construiu, são evidências de sua permanência na memória. Giovanni não será esquecido. Nem poderia sê-lo. Figura sensível e generosa, que estará a ser lembrado em cada afinação que seus filhos continuarão a fazer. A dinastia permanece através dos belos exemplos deixados pelo profissional dedicado e amigo, para bem de nós, músicos. Grande Giovanni.

Clique nos links abaixo para ouvir Giovanni Aronne cantando duas canções italianas:
Italia Mia
Parlami d’amore

Giovanni Aronne, who passed away last August 6, was the most skilled piano tuner in São Paulo, working for the best concert halls in town. We have been close friends for more than 50 years, since the days we both were young and he was responsible for tuning the seven pianos of my father’s house. His death was a shock to me and this post is a tribute to his memory. An expert in piano care and maintenance, he had three piano repair shops that will now be handled by his two sons and daughter, to whom he handed down a legacy of professional excellence and ethical conduct.