A Permanência Através de Horizontes Desbravados

Felicja Blumental e J.E.M. 1955. Foto José da Silva Martins. Clique para ampliar.

E mar vai em vôo aberto
já pássaro aventureiro
para as descobertas.

Maria Isabel Oswald Monteiro

Os intérpretes que perduraram através dos tempos têm características bem próximas quanto à freqüência repertorial. Compositores foram privilegiados, a partir de tendências de cada instrumentista. Afinidades, escolas onde estudaram, países de origem, aspectos sociais e culturais, raça, todos são fatores que tendem a determinar orientações que se consolidam através da carreira do intérprete.
Se considerarmos o século XX, talvez o grande século do piano, verificaremos que a grande maioria dos pianistas que permaneceram na história interpretaram basicamente o chamado grande repertório tradicional. Agentes ou empresários, público, comparações influenciaram essa constância. Exceções existiram, a tornar mais significativa a continuidade post mortem de pianistas que entenderam que caminhos outros estavam a apontar horizontes absolutamente inéditos. A divulgação intensa dessa categoria de pianista poderia ocorrer, valorizando sensivelmente aqueles poucos que persistiram pelas sendas do repertório qualitativo esquecido e que hoje são lembrados através da competência exercida e da necessidade de se conhecer a produção extraordinária do passado, que ficara submersa por propósitos tantas vezes estranhos.
Em posts anteriores focalizei dois pianistas exemplares que primaram pela ação repertorial inusitada, apesar de terem perpassado parte considerável do repertório tradicional (vide Marcelle Meyer – A Redescoberta Merecida, 06/03/07 e Jean Doyen – A Interpretação Inefável, 31/08/07). A curiosidade, nos casos citados, fruto de ação voluntária, sem a mínima interferência de agentes voltados ao lucro, resultou, após o desaparecimento dos ilustres intérpretes, no redescobrimento, que hoje nos espanta, de acervo valiosíssimo da criação para piano. Revelou-nos ainda a inteligência desses instrumentistas na escolha seletiva, pois nesse repertório pouco freqüentado há muita obra sem interesse.
O centenário de nascimento de Felicja Blumental, nascida em Varsóvia aos 28 de Dezembro, deve ser comemorado. Trata-se de uma das grandes damas do piano do século XX. Estudou no Conservatório da cidade com professores importantes como Zhigniev Drzewiecki, Karol Szymanowski e Josef Turczynski. A adversidade oriunda da 2ª Grande Guerra acabou trazendo-a ao Brasil, onde permaneceu alguns anos. Tornou-se cidadã brasileira, realizou extensas tournées pela América Latina, regressando posteriormente à Europa, a continuar sua esplêndida carreira. Faleceu no dia 28 de Dezembro de 1991 em Tel Aviv. No ano de 1999, seu nome seria definitivamente incorporado ao Festival de Música de Tel Aviv, promovido pelo Museu de Arte da cidade israelense.
Felicja Blumental é uma dessas intérpretes maiúsculas, que soube entender todos os períodos. Se foi pianista a apresentar largamente o repertório tradicional, entendeu outra mais a sua missão e redescobriu autores, estimulou compositores no sentido de criarem obras para que apresentasse em público, privou da amizade de músicos e pintores ilustres, o que revela a essência de sua rica personalidade cultural. Suas gravações dos Cinco Concertos para piano e orquestra de Beethoven e das Mazurkas de Chopin atestariam sua competência. Gravou sessenta concertos para piano e orquestra, sendo que seus registros fonográficos daqueles compostos por Czerny, Field, Ries, Paisiello, Stamitz, Hummel e Hekel Tavares testemunham a freqüência ao repertório inusitado. Villa-Lobos dedicou-lhe seu 5º Concerto para piano e orquestra, Krzysztof Pendereki a Partita para cravo e orquestra, Witold Lutoslawski orquestraria suas Variações sobre um tema de Paganini para a pianista, que as apresentou em primeira audição. Destaquem-se igualmente as interpretações de obras para piano solo de autores pouco visitados: Clementi, Kuhlau, Viotti, Hoffmeister, Rimsky Korsakof (Quintetos com piano) e tantos outros.
Nos anos 50, a ilustre pianista freqüentou várias vezes a casa de meus pais. Sempre acompanhada de seu marido, Markus Mizne, Felicja Blumental encantava-nos, após o jantar, com a apresentação de algumas peças de seu repertório. Fascinava-me o seu tocar elegante, jamais buscando efeitos virtuosísticos vazios. João Carlos e eu tocávamos obras que estávamos a estudar e, após, Blumental tecia comentários de rara competência. Bem mais tarde, entendi sua mensagem de 1º de Agosto de 1954 em português fluente, deixada naquilo que denominávamos “livro de ouro”, depositário de outros depoimentos mais de notáveis artistas e que me foram tão encorajantes ao longo da trajetória. Meu irmão e eu conservamos os nossos livros. Escrevia ela nas minhas páginas que “ o exibicionismo aniquila a Arte verdadeira”. A sua execução buscava a beleza do som: “Beleza não se aprende, pode-se aperfeiçoá-la”, mais uma das frases de seu escrito. Outras mais, relativas à interpretação do jovem que eu era, preconizavam conceitos que me acompanham até hoje. Quando de meu recital aos 10 de Dezembro de 1954 no Teatro Colombo em São Paulo, lá estava a insigne artista a contemplar o estreante com um desenho realizado durante o evento. Guardo-o com o carinho devido. Meses antes retratara João Carlos quando de sua primeira apresentação no mesmo local. Mais honrado fiquei ao receber Felicja Blumental Portraits, editado pelo The Felicja Blumental International Music Festival at the Tel Aviv Museum of Art em Maio de 1999, com retratos da pianista realizados por artistas como Tsugouharu Foujita, Juan Pons, Kees Van Dongen, Erwin Dom Osem, Rémusat, Mané-Katz, Michonze, entre outros. Por sua vez, traçou ela em desenhos firmes Arthur Rubinstein, J. Heifetz, Oskar Kokoschka, Picasso, Chagall, Pendereki e outros ilustres amigos. Essa faceta de Felicja evidencia a imensa generosidade da artista.

Felicja Blumental, desenho de J.E.M. com esferográfica vermelha.10/12/54. Clique para ampliar.

Certa noite em que veio com Markus Mizne jantar em casa de meus pais, ofereceu-me um LP gravado em Londres para o selo Decca, quando pela primeira vez ouvi obras de Carlos Seixas, o notável compositor barroco conimbricense. Dela receberia igualmente as partituras dos cravistas portugueses. Sua interpretação absoluta ao piano impressionaria o redescobridor de Carlos Seixas e um dos maiores defensores do cravo, Macarius Santiago Kastner, que escreveria em 1953: “Fiquei encantado ao encontrar em Felicja Blumental a maravilhosa intérprete dos Cravistas Portugueses, que executa essa música com a real compreensão de estilo, com a alma e grande entendimento do som e da proporção”. É surpreendente que o notável Kastner se tenha submetido ao fascínio da interpretação ao piano de um repertório ainda reivindicado na época calorosamente pelos adeptos do cravo. Tão forte foi o impacto que aquele LP me causou que em 2003 gravaria na Bélgica, igualmente ao piano, dois CDs inteiramente dedicados às sonatas de Seixas. À Felicja Blumental prestei publicamente minha homenagem de gratidão quando de meu recital na Biblioteca Joanina em Coimbra, nas comemorações do tri-centenário de nascimento de Seixas em Junho de 2004.

Soirée Musical em São Paulo, 1954. Em pé, da esq. p/ dir.: Magda Tagliaferro, Madalena Lébeis e Felicja Blumental. Foto de meu pai José da Silva Martins. Clique para ampliar.

Louve-se a atitude da Concerto – Guia Mensal de Música Erudita – ao oferecer aos seus assinantes o CD Música Portuguesa com execuções de Felicja Blumental, integrando a série Música de Concerto de Clássicos (www.concerto.com.br). A organização dispões de outros CDs da intérprete. Destaque-se igualmente o empenho de sua filha, a cantora Annette Celine, radicada na Inglaterra, que tem feito revelar aos ouvintes as inexcedíveis interpretações da mãe ilustre (www.branarecords.com).

CD Música Portuguesa, pianista Felicja Blumental. Kees Van Dongen, óleo. Clique para ampliar.

Felicja Blumental continuará a ser lembrada e a servir de exemplo, a demonstrar que através da inteligência e da fina sensibilidade pode o intérprete conhecer caminhos novos, descortinar horizontes insondáveis antes, assim como, na busca do inusitado, tornar-se realmente o artista a desempenhar a missão integral.
Meus agradecimentos à Annette Celine, por ter generosamente autorizado a inserção neste post de faixa do mencionado CD Música Portuguesa, contendo a bela interpretação de Felicja Blumental da Sonata em fá menor de Carlos Seixas.

Clique para ouvir Felicja Blumental ao piano, tocando Carlos Seixas: Sonata em fá menor.
Faixa extraída do CD “Felicja Blumental – Música Portuguesa”, Clássicos Editorial MC009, lançado pela Revista Concerto.

This year we celebrate the birth centennial of Felicja Blumental (1908-1991), one of the most accomplished pianists of the 20th century. Born on 28 December in Warsaw, Poland, she left Europe shortly before the outbreak of World War II to escape the growing anti-semitism and settled in Brazil for some years, becoming a Brazilian citizen. In the early 1950s she returned to Europe, where she continued her brilliant career. I was fortunate to know Felicja personally. In the 1950s she was a frequent guest at my father’s home in São Paulo. My brother João Carlos and I, teenagers at the time, listened in silent awe to her elegant and restrained performances and she was generous to listen to the two piano students, leaving her comments in the visitors’ book (our so called “golden book”). I still keep it with her wise and encouraging words written in fluent Portuguese. What fascinates me more with Felicja Blumental is her ability to choose from various musical periods. While she was greatly admired for her interpretation of the conventional repertoire, she also recorded many seldom played concertos and solo piano pieces of a remarkable diversity of composers, contemporary works – many written specially for her – of notable 20th century musicians, Spanish and Portuguese Baroque composers. A true pathfinder, surveilling and fostering the piano literature from the past and the present. On one occasion in my father’s house she offered me a LP she had recorded in London with sonatas by the Portuguese Baroque composer Carlos Seixas on the piano. It was the first time I heard them. So strong was the impression of her performance on me that in 2003 I would record in Belgium two CDs with Seixas’ Sonatas, also on the piano. Her lifelong commitment to music, intellectual depth and extensive body of works remain an inspiration to many classical music performers around the world, myself included. My thanks to the singer Annettte Celine for the permission to include in this post Carlos Seixas’s Sonata in fa minor played by her mother, Felicja Blumental.