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Barba ensaboada,
meio rapada.
Adágio açoriano – S. Miguel
Um de meus primeiros posts para o blog abordou o livro Postais Paulistas, de Frederico Branco (vide Frederico Branco – A Revisitação das Imagens Perdidas, 09/03/07). Em uma das crônicas, Muito além do Vesúvio, o autor descreve velha barbearia que costumava frequentar. Não esquece nenhum pormenor e, bem mais tarde, ao referir-se a uma mais moderna, observa com certa nostalgia que “não se fazem mais barbeiros nem salões como os de antigamente. Nem clientes, como verifiquei há dias”. A descrição que Frederico Branco faz é exata se comparada àquela que mensalmente frequentava minha mente na infância. Tratava-se de uma garagem adaptada com azulejos brancos, situada bem próximo de nossa casa na Avenida Rodrigues Alves, na Vila Mariana, onde vivemos até o final da juventude.
A profissão de barbeiro é muito antiga e foi-se transformando com o passar do tempo. Teve requintes no século XVIII em França. O ofício popularizou-se com o passar das décadas, a fazer parte do cotidiano. Curiosamente, no interior do Brasil, aquele que fazia o corte de cabelos e barba exercia, quando necessário, a função de “dentista”. Um boticão ajustado a um dente que estava a provocar dor, e a extração se dava. Quando de minhas incursões em busca da imaginária paulista nos anos 70-80, na região que se estende de Santa Isabel a Nazaré Paulista, no Estado de São Paulo, encontrei em um chiqueiro uma estranha cadeira completamente partida. Como andava sempre de botas naquelas ocasiões, adentrei o velho galpão, chafurdando naquela massa mole e informe, e retirei todas as partes dessa cadeira. Observei que havia resquícios de palhinha da India. A anciã, que habitava a casa simples coberta por sapé e bem próxima ao chiqueiro, disse-me que seu pai e seu avô haviam sido barbeiros e extraíam dentes. Quis saber mais e a idosa contou-me que, antes da extração, jovens ou velhos tomavam uma caneca de pinga e que, ainda menina, era a encarregada, quando ouvia o seu nome, de levar a aguardente já preparada para ser engolida de um só trago. Disse-me ainda que o pai de uma de suas comadres, que morava a tantas léguas de sua casa, desempenhara igualmente a profissão de barbeiro. Naquele mesmo dia encontrei, pois, duas cadeiras, sendo que a última estava inteira, sem palhinha, mas com uma tábua qualquer pregada, a fim de que se pudesse sentar. Serviu contudo como modelo para as restaurações que foram realizadas em São Paulo por um excelente especialista que conheci nos anos 70, Luca Miranda. Verificamos tratar-se de cadeiras de barbeiro da segunda metade do século XIX. Elegantes e funcionais, possuem um encosto regulável para a cabeça, o que proporcionava maior conforto para o freguês.
Todavia, foi no século XX que entre nós surgiram essas pequenas barbearias que cuidavam rotineiramente do corte de cabelos e do cuidado com a barba. Barbeiros tinham rara habilidade, nesse último caso, no manuseio da afiadíssima navalha, que ao menor descuido causava estragos, só não maiores graças ao álcool Zulu sempre à mão do profissional. Imperava a cadeira Ferrante, alta, confeccionada em ferro fundido e com a marca em letras grandes no repouso para os pés, também em ferro. Presentemente elas têm design bem diferente. Até hoje lembro-me do instrumental do barbeiro de minha infância, um descendente de imigrantes portugueses. Na minha memória ficaram tesouras comuns ou de desfiar da famosa marca Solingen; pentes de osso; bombinha a servir como vaporizador humidificante; pequena máquina manual que chegava a arranhar o pescoço e que servia para cortar com precisão pêlos os mais recalcitrantes; loção Sandar com perfume bem popular que, quando sobre a mesinha do profissional, tinha três camadas coloridas e que, antes de ser utilizada, era agitada pelo barbeiro, ficava turva e servia para o cidadão aplicar vigorosa massagem capilar; e finalmente, o talco. O corte para o miúdo, adolescente e jovem daqueles tempos era bem comum, sem nenhum sentido de esmero maior. Importava ao barbeiro desbastar o que crescera rapidamente em um mês e receber o que lhe era devido. Quando aguardávamos atendimento, revistas bem velhas serviam para fazer passar o tempo e um jornal esportivo estava à disposição. A conversa tinha como temas política e futebol, e já àquela altura a corrupção grassava. O aparelho de rádio permanecia ligado, ou dando notícias ou a tocar música popular brasileira do período.
Pertencente à classe dedicada ao trabalho que pode variar na intensidade, mercê da frequência dos clientes, geralmente o barbeiro é muito bem informado. Ouve, bem mais do que lê, e dificilmente não está atualizado quanto ao cotidiano, graças à diversidade cultural dos fregueses. Esse barbeiro de antigamente é cada vez mais raro e subsiste nos bairros, na periferia e nas cidades do interior. Profissional geralmente bem estimado pelos frequentadores. Infelizmente, o termo barbeiro, com a chegada das casas especializadas que atendem homens e mulheres, passou a ser quase que pejorativo. Atualmente nas grandes cidades, os barbeiros preferem ser denominados hairdressers ou hairstylists, e os estabelecimentos aos quais pertencem têm fachadas atraentes. Redes existem em que é notória a presença desses especialistas, não apenas mais jovens, mas também uniformizados. Como ainda pertenço às tradições, frequento os mesmos barbeiros e tanto Samuel como Gil conservam o estilo à antiga no corte e no trato. Isso me reconforta quando vou à poda dos cabelos, que teimosamente ainda cismam em crescer. Lembro-me que durante a quimioterapia, quando quase tudo veio abaixo, Samuel podava uns poucos fios desorganizados e insistia em receber apenas metade do preço tabelado.
O tema veio a propósito de uma conversa com meu amigo e vizinho Uyara. Disse-me que encontrara os instrumentos que seu pai utilizou durante décadas, pois barbeiro em São Sebastião do Paraíso (MG). Daí a estendermos recordações foi fácil. Frisou que seu Gusmão lhe dizia que o melhor couro para afiar navalhas era o de Anta, pois a lâmina deslizava com maciez. Meu saudoso pai também desempenhara a função de barbeiro durante a mocidade na cidade de Braga, em Portugal. Um de seus fregueses, Lourenço dos Santos, que mantinha uma casa comercial importante – Casa das Novidades -, convidou-o a vir morar e trabalhar em seu estabelecimento, o que ocorreu entre 1918-28, quando nosso progenitor veio tentar a vida no Brasil, amando Portugal, mas sem jamais retornar ao torrão natal. No entanto, durante toda a existência manteria correspondência com Lourenço e descendentes, a demonstrar gratidão eterna.
Em texto bem anterior já mencionara minhas incursões no corte de cabelos, difícil tarefa para um leigo (vide La Querye – Férias Inesquecíveis, 09/02/08). Naqueles sempre lembrados 1960-61, quando das férias no departamento de Allier, na França, “exerci” a função de barbeiro à antiga, e miúdos filhos de meus amigos submeteram-se ao coiffeur improvisado. Se pratiquei calamidade em um dos cortes, a provocar um caminho de rato que consegui nos dias subsequentes, a duras penas, tornar menos evidente, safei-me razoavelmente nesse mister que era praticado ao ar livre. A foto, não publicada no post La Querye, foi encontrada recentemente dentro de um livro que estava a consultar. De jaleco típico, estou cuidando de um dos cortes. DNA? Só bem mais tarde soube dos predicados profissionais de meu pai, como barbeiro que foi durante alguns anos da sua mocidade.
Se incontáveis profissões podem jamais cruzar a vida dos cidadãos, a de barbeiro é uma das que o homem não pode prescindir, mesmo quando a devastação capilar se apresenta evidente. Subsistirá, e é motivo a mais, simples e tranquilo, para uma boa conversa descompromissada e periódica. Após a poda, a visualização através do espelho será a prova de que o barbeiro, geralmente mantido na fidelidade durante anos, trabalhou bem e merece o nosso agradecimento.
On Barbering and Barbers:
The starting point of this post was a chat with a friend, who mentioned his father had been a barber. It made me think about the ancient profession of barbering, the barbershops of my youth – walk-in salons with their arsenal of razors, scissors, brush, bone combs, after-shave lotions, antique barber chairs – and the high-end salons of today, with their teams of usually young uniformed professionals trying to accommodate tradition with modern practices, as fashion and trends evolve.
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