A Pureza de um Autor

Posso afirmar que envelhecer assim
‘combatendo o bom combate’
não é ruim…
Envelhecer com vida e garra
é para quem merece !

Norberto de Moraes Alves

Torna-se mais acentuada a diferença entre o que deve ser lido, ouvido, visto pelo cidadão no entender da mídia, em comparação ao que pensa parcela surda e operosa que produz e assimila à margem da divulgação. Quando a mídia incensa determinado autor, seja qual for o seu valor, imediatamente o cidadão que lê, ouve e assiste a teatro, filmes ou TV corre para sentir o odor do incenso, seja este especiaria ímpar, ou simples resina qualquer a queimar. Foi assim no passado e perpetua-se em ascensão geométrica no presente. Basta uma excentricidade ou inovação, duvidosa ou não, e determinado autor é eleito pelo público. Todavia, espalhados pelo planeta, escritores, poetas, pintores, escultores e compositores ainda reverenciam modelos execrados pela modernidade “criativa” ou pelos adeptos do modismo forjado.
Por serem menos conhecidos, autores “ocultos” pareceriam entender situações. Uns se conformam, outros retêm uma tristeza notória e outros mais convivem com a realidade e continuam a produzir no mais autêntico sentido vocacional. Entre tantos, há inúmeros com real valor e que pelas mais variadas razões jamais foram procurados pelos meios de comunicação. Esse fenômeno não acontece só sob a guarida do cada vez mais inclemente sol tropical. Autores que se notabilizam – tantas vezes ungidos artificialmente – aqui e alhures acham-se no direito de tudo dizer, de opinar como arautos, e infinidades de absurdos e arbitrariedades são proferidos em entrevistas, sob a égide de mitos reais ou forjados. Mais deprimente quando a “fama” veio outrora e, durante o resto da existência, o autor prossegue em obras recorrentes. Em todas as categorias da Cultura. O grande público, sem captar o engodo, tem a certeza de estar diante da “verdade”.
Em nosso país, figuras notáveis estão a produzir cultura ainda à “antiga”, mas num universo criativo sensível, distante de modismos efêmeros. O tema surgiu após novas visitas a Bragança Paulista. Tenho conhecido figuras que me sensibilizam. Durante aproximadamente duas décadas permaneci quase que isolado nos “meus” bancos da Praça José Bonifácio, ou no quarto no Grande Hotel Bragança, a fim de escrever artigos para publicações arbitradas no Exterior, ou ouvir material gravado na Bélgica que seria convertido em CDs, respectivamente. Pouco a pouco, figuras humanas extraordinárias cruzaram meu caminho e, se continuo a visitar Bragança Paulista, basicamente pelos mesmos motivos, haverá sempre o congraçamento com essa gente generosa da cidade.
Os bons amigos, Hugo e Rosana, da Hughes Mens Wear, estabelecimento junto à praça mencionada, apresentaram-me a Norberto de Moraes Alves, escritor e poeta de Bragança Paulista. Iria dar um recital na cidade, mas previamente o querido casal presenteou-me com um livro de Norberto. Sensível dedicatória do autor enriquecia a obra. Após o recital, o escritor e poeta oferece-me outros dois livros. O simples folhear, já no Hotel, causou-me interesse. Após a leitura das três obras contendo contos, poesias e crônicas, tive a sensação de leveza. Norberto é um puro e escreve amorosamente. Percebe-se que o autor tem prazer em narrar suas experiências, fértil imaginação na criação de contos diversificados em seus temas e uma veia poética sensível e inteligível.
Acompanhá-lo em três livros que se estendem pela primeira década deste século é apreender a vocação autêntica dirigida aos textos curtos, de síntese, que captam a própria essência do episódio. A condução dos contos é realizada com maestria e os personagens integram a narrativa de maneira homogênea. São participantes efetivos durante o desenrolar da trama.
As Flores da Lua (Piracicaba, Degasperi, 2001, 140 p.) tem prefácio da filósofa Marilena Chauí que, ao comentar dois contos, entre outros, escreve: “Se sorrimos, às vezes, e nos emocionamos, outras vezes, também não podemos deixar de perceber a crítica social que se desenha em filigrana em contos como ‘Bicho de pé’ – o mundo feito e desfeito num intervalo eleitoral – e ‘Momento de decisão’ – a vida destroçada por uma economia que despreza a terra e sua gente”. Acrescentaria o conto A Herança, nítida posição frente à vida e à posição social, mormente entre membros de uma mesma família.
Norberto de Moraes Alves tem o dom de fazer crítica sem perder a elegância da escrita ou o controle dos personagens. Bons e maus, justos e injustos, nesses breves contos não se degladiam ferozmente. Permanecem num antagonismo quase que discreto, exceção ao conto Fidelidade, que tem como cenário fazenda do século XIX e onde a tragédia vai impor-se de maneira absoluta, mercê de trama a envolver paixão, adultério, brancos e negros. Em outros contos, o autor, que ao ingressar no magistério público em plena Serra da Bocaina, precisamente em São José do Barreiro (Vale do Paraíba), sofreria efeitos do linguajar do povo simples existente nessa extensa região, entrega aos personagens essa fala do caipira e do caboclo. Demonstra virtuosidade nessa configuração que perpassa alguns contos. Em outros, como Capaiz !!!, Um fato insólito e O Cordeiro de Deus, Norberto de Moraes Alves trata de maneira hilariante as narrativas, e um humor incisivo seduz o leitor. Há por vezes, na condução dos contos presentes nesse livro e em Sopro de Ternura, certa proximidade com os Contos da Montanha, do extraordinário escritor português Miguel Torga. Se em Torga as descrições que envolvem humor ou tragédia estariam a revelar densidade na escrita – peculiaridade do autor – e estilo a proporcionar ao leitor a sua detectação, em Norberto Moraes Alves uma descontração, um quase divertir-se ao escrever, percorre os textos. Mas é a presença, nesses breves escritos de ambos, do homem da pequena aldeia ou do campo em seus afetos e idiossincrasias que merece ser apreendida.

Em Quintal dos Sonhos (Bragança Paulista, Barletta, 2007, 112 p.), o poeta cria imagens líricas plenas de singeleza. Tocam fundo. Distante de qualquer tendência modernista, Norberto prefere falar direto à sensibilidade de cada leitor. Poemas expressivos, diáfanos, diria até puros na plena acepção da palavra, revelam o que o autor é na realidade. Se em Insegurança versos captam esse estado:

“Quando quero falar de amor
e não encontro a palavra exata,
navego em pensamentos
qual indecisa fragata,
enfrentando o mar revolto
a ponto de naufragar” ;

se em Pesadelo:

“A dor se fez sofrimento
sem tempo de despertar” ;

ao versar Sobre a Inspiração, a luminosidade se dá:

“Inspiração
é qual arpejo,
de melodia
que atravessa
as nuvens
de um sonho.
São acordes
de um lamento
de saudade
e de desejos.
Entregue-se,
navegue por ela
mesmo que
por um só
momento…”

Ao escrever Sopro de Ternura (Bragança Paulista, ABR, 2009, 126 p.), Norberto retorna aos poemas e contos, a criar novas imagens e personagens. Os belos versos de A Rosa e a Eternidade são exemplos:

“A rosa não se perpetua
pela forma, pela cor
ou pela nobreza da flor
da qual é revestida,
mas pela pétala
que flutua,
deixando que o aroma,
aos poucos, no tempo se dilua
e busque no infinito
a semente…
de todo o sempre.”

Humor e tragédia se intercalam no segmento destinado aos contos, e Le Due Sorelli e O Anjo de Asa Quebrada são exemplos, respectivamente. Algumas breves crônicas, geralmente a homenagear entes queridos que partiram para a outra margem, encerram o livro.
Norberto de Moraes Alves é esse puro que encontra na pena o exteriorizar sentimentos que as novas gerações estão sendo induzidas a sufocar. Sua escrita fica como um farol que, ao ser visto, proporciona ainda salvaguardas para a existência.

On one of my visits to the city of Bragança Paulista I had the privilege of knowing the writer Norberto de Moraes Alves, who lives in the city and offered me three of his books. In this post I give an account of my reading, completely captivated by the lyricism of his poems and the simple elegance, conciseness and imagination of his short stories.