Academia de Amadores de Música
Lisboa propicia infinitas leituras. Tantos são os direcionamentos histórico-culturais que é difícil entendê-la em sua abrangência. São necessárias muitas vidas. Certeza uma só: a cidade é fascinante.
Ao longo de quase meio século apresentei-me em muitos locais de concertos de Lisboa: Teatro São Luís, Biblioteca Nacional, Grêmio Literário, Instituto Gregoriano de Lisboa, Conservatório Nacional, Institut Franco-Portugais, Auditório B da Fundação Gulbenkian e Academia de Amadores de Música. Em alguns, repetidas vezes. Contudo, por motivos rigorosamente pessoais, tenho um carinho especial pela Academia.
Foi aos 14 de Julho de 1959 que, a convite do grande compositor Lopes-Graça, dei meu primeiro recital em Lisboa. Experiência inesquecível. Lopes-Graça ofereceu-me, inclusive, dois de seus manuscritos autógrafos, Em Alcobaça dançando um velho fandango e Dança Antiga, que apresentei no recital. Esse acontecimento, acalentado ao longo da trajetória, fez com que compreendesse a sala da Academia como um recinto quase sagrado. Visitava o compositor quando de minhas viagens e ele, sempre atencioso, oferecia-me fotocópias de suas obras. Os encontros davam-se na Academia. A aura que emana de suas paredes tem indelével presença de Lopes-Graça ainda hoje, quando são outras as propostas, outras as gerações. Há, contudo, imbuído em alguns professores que lá estão, o culto ao grande mestre.
A entrada da Academia é estreita e, durante o dia, o espaço que leva às escadas é preenchido por livros de um alfarrabista. Há sempre obras que interessam ao intérprete. À noite, tudo desaparece atrás de portas ou de proteções compactas e a área fica livre. Penso nessas escadas de madeira desgastadas pelo tempo que levam ao segundo andar, onde a Academia se situa, e que sentiram os passos de tantas gerações, como aquelas do tempo de Lopes-Graça. Ficaram fixados através da captação atenta do grande poeta José Gomes Ferreira, que teve tantos poemas musicados pelo compositor (Música – Minha Antiga Companheira desde os Ouvidos da Infância. Lisboa, Campo das Letras, 2003 ). Em parte considerável dos textos recolhidos por Raúl Hestnes Ferreira e Romeu Pinto da Silva, o poeta, que estudara piano e composição, menciona a Academia e o auditório, onde as obras de Lopes-Graça eram apresentadas e discutidas, por vezes acaloradamente.
Na Academia apresentei, ao longo dos anos, várias primeiras audições, entre as quais Adamastor o Gigante das Tempestades, obra de Francisco Mignone dedicada a Portugal, e o magnífico Estudo nº 5 Die Reihe Courante, de Jorge Peixinho, com a presença do saudoso compositor e amigo.
O presente recital apenas ratificou minha ligação amorosa com a Academia. Recebi, ao final, duas obras a respeito da criação de Lopes-Graça: de Alexandre Branco Weffort, A Canção Popular Portuguesa em Fernando Lopes-Graça (Lisboa, 2006), fundamental para o aprofundamento nesse segmento importante da opera omnia do compositor; de José Maria Pedrosa Cardoso, O Requiem e a Profissão de Fé de Lopes Graça, preciso estudo sobre o Requiem para as Vítimas do Fascismo em Portugal. Ambas valiosas contribuições para o desvelamento das composições do grande mestre de Tomar. Em www.musica.gulbenkian.pt, o leitor poderá consultar o Dossier Lopes-Graça. Textos focalizam a obra e a vida do compositor. Para o Dossier escrevi Piano sem Fronteiras. Para o selo Portugaler gravei o CD Viagens na Minha Terra, apenas com obras do insigne mestre.
Desço as escadas envelhecidas da Academia. Sinto uma alegria interior. Voltaremos a nos encontrar um dia. Tenho certeza.
Lisbon and the Academia de Amadores de Música:
Though I have been to Lisbon countless times, it is impossible to say I know it, such is the multiplicity of aspects of this unique city. My Portugal debut was in Lisbon, back in 1959, at the Academia de Amadores de Música, invited by the great Portuguese composer Lopes-Graça. Since then I have played many times in Lisbon, in many different concert halls, but it is with the Academia that I have the closest ties of affection. It is not only the place of my first public appearance in Portugal. It is also the place where Lopes-Graça himself presented me with autograph manuscripts or copies of his works and where, throughout the years, I premiered pieces by contemporary composers, such as Francisco Mignone and Jorge Peixinho. I have just played at the Academia once more. At the end of the recital, as I walked down its worn-out stairs, I was overcome by emotion. I will be back again. I know it for sure.
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