Sint-Hilarius

Et cependant, il est possible que rien
ne change dans la vie que l’on voit;
mais est-ce cela seul qu’importe,
n’existons-nous vraiment que par les actes
que l’on peut prendre en main
comme les cailloux de la grand’route?

Maurice Maeterlinck

Capela de Sint-Hilarius, em Mullem

Como sempre o faz, Johan Kennivé chega por volta das 19,00 horas à minha morada em Gent. De lá seguimos para um dos restaurantes tranqüilos na estrada que leva a Mullem, distante 35 km. Durante o jantar trocamos amenidades e combinamos o esquema das gravações. Dois dias antes Johan estivera em meu recital na Rode Pomp, como de hábito, a fim de previamente formar o seu projeto mental sonorístico. Às 21,00 horas, como habitualmente, ele estaciona sua van em frente à porta principal da Capela de Sint-Hilarius, na pequena cidade de 300 habitantes no coração da Flandres.
Adentramos. As próximas três horas serão destinadas ao ajuste adequado dos vários microfones por ele instalados no período da tarde. De minha parte, fico a tocar passagens à meia força e, só quando instado a maior volume, atendo ao pedido de Johan. O piano chegou pela manhã, como sempre acontece. Um Steinway & Sons de Hamburgo, rigorosamente novo, sans reproche. Nos anos anteriores, Taki, um dos responsáveis pela afinação dos pianos do Palais des Beaux Arts de Bruxelas, sempre afinara o instrumento. Hoje, o igualmente competente Jacek foi quem o preparou. Comparo esse Steinway a uma Ferrari Fórmula 1, tão preciso ele é.
Johan Kennivé é psiquiatra e um mestre apurado no que tange às gravações. Chamo-o de Grand-Maître de Sint-Hilarius e um sorriso aquiescente de Johan revela humildemente o aceite. Inúmeros CDs gravados por ele com os mais variados conjuntos da Europa apenas revelam essa maestria transparente. Presentemente tem gravado o meu irmão João Carlos à frente de orquestras européias. Poderia afirmar que, após tantos anos, temos um entendimento absoluto, o que estimula os sentidos e a inspiração no ato de gravar. Diria mesmo que um amálgama se estabelece entre nós.
Por volta da meia-noite iniciamos as gravações. Só nós dois. Ele na van, a tudo controlar, e eu ao piano, colocado sobre a lápide de mármore de um ilustre personagem de Mullem desaparecido há centena de anos. Acima, como cenário, a imponente torre de pedra que se ergue como símbolo da devoção dos fiéis e, como acréscimo, generosamente a oferecer a inteira ressonância aos sons extraídos do instrumento. Durante três noites o ritual se repete até às cinco ou seis da manhã. Por vezes, Alfonso Medinilla, pianista e professor do Conservatório de Gent, surge pela madrugada e acompanha parte das gravações. Peter Ritzen, excelente pianista e Magnus Bardela, meu ex-aluno e de absoluta captação auditiva, já estiveram em outros anos a assistir determinadas sessões.
Durante as gravações, quando Johan percebe um certo cansaço de minha parte, chama-me até a van, onde tomo um chá ou chocolate acompanhado pelos célebres biscoitos de canela spekulos. Essa pausa reanima o intérprete, que continuará logo após as suas buscas sonoras. A essa altura da primavera, melros, rouxinóis e outros pequenos pássaros canoros entendem a alvorada que chega mais cedo e, por vezes, concorrem com o som do Steinway, o que nos faz temporariamente interromper a sessão. É preciso estar atento à curiosidade desses pássaros. Bem antes, quando a noite ainda se faz total, mas com o indisfarçável aroma primaveril a penetrar o interior da capela, são os aviões que, ao cruzarem os céus flamengos, interrompem igualmente o fluxo sonoro. Esses pormenores não interferem nos ânimos quando da retomada dos registros. Diria que são até benéficos, pois as paradas servem para a descontração. Em Mullem, tendo percorrido todas as estações ao longo dos anos, estou a me lembrar de um inverno rigoroso, quando ventos fortes varriam as planícies flamengas e a neve acumulava-se acima da média sobre os poucos túmulos que circundam Sint-Hilarius. Estava eu em plena empolgação quando Johan me chamou para ir até a van. Atendi ao seu apelo um tanto preocupado. Disse-me que os seus sensores sinalizavam que em poucos minutos teríamos uma rajada de vento de algumas dezenas de quilômetros de velocidade. Veio a rafale bem forte, que certamente interferiria, pois os vitrais da capela acusaram a chegada do vento. Ao tornar-se brisa, retornei ao piano.
Finda esta primeira sessão, estamos a retornar a Gent. São sete da manhã. Respirar os eflúvios dessa terra viva faz-me esquecer qualquer fadiga. Nessas próximas duas longas noites Johan e eu estaremos a comungar o mesmo ideal. A nossa herança musical vai sendo paciente e singelamente depositada nesses microfones mágicos, sob a aura de Sint-Hilarius.

Sint-Hilarius: the chapel in Mullem, Belgium, where during three nights I will be recording my two new CDs, in the sole company of the sound engineer Johan Kennivé.