Navegando Posts publicados em maio, 2007

Bracara Augusta, a Terra Paterna

Gravura da Igreja de Sta. Cruz, em Braga

Aos 11 de Junho de 1898, nascia em Braga José da Silva Martins, meu pai. Viajou para o Brasil em 1928 e nunca mais voltou à terra, vindo a falecer em 2000, aos 102 anos. Naturalizou-se brasileiro, mas incutiu em minha mãe e em meus três irmãos o amor a Portugal e, em particular, a Braga. Não fazia distinção entre os dois países, tão intrinsicamente ligados.
Estive várias vezes na cidade, mas o presente recital foi o primeiro. Deu-se no Conservatório Calouste Gulbenkian. Após comentar as obras que seriam apresentadas, dediquei o recital à memória de meu pai. Negar que estava emocionado, impossível seria.
Em fins de Maio tarda a anoitecer na Europa. Tendo ensaiado no belo auditório dessa imensa Instituição de Ensino, fui à janela da sala contígua e ouvi um melro a cantar, melodia bem diferente daquela dos melros de Mullem, na Bélgica. Encimando um beiral, seu canto era uma despedida da tarde chuvosa. Olivier Messiaen já dizia que os pássaros acumulam os cantos através dos anos. Fascinam aqueles que lhes dão ouvidos. Lembrei-me do pai. Desde a infância, minha mãe, meus irmãos e amigos costumávamos ouvi-lo declamar poemas luso-brasileiros. Em sua longa existência soube recitar, de memória, cerca de 350 poesias. Um dos prediletos era o belo, longo e trágico poema de Guerra Junqueiro, O Melro:

O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.

Lembrei-me com afeto dos versos que fazem parte de meus acúmulos. O canto do pássaro e as reminiscências, à la manière de Marcel Proust, estimularam-me para a performance. Entrei no palco pleno de uma nostálgica alegria. Busquei o melhor de mim, pois algo místico estava a acontecer. De onde estiver, meu pai captou a mensagem.

Academia de Amadores de Música

Lisboa - postal de Júlia D'Almendra a J.E.M. - 1983

Lisboa propicia infinitas leituras. Tantos são os direcionamentos histórico-culturais que é difícil entendê-la em sua abrangência. São necessárias muitas vidas. Certeza uma só: a cidade é fascinante.
Ao longo de quase meio século apresentei-me em muitos locais de concertos de Lisboa: Teatro São Luís, Biblioteca Nacional, Grêmio Literário, Instituto Gregoriano de Lisboa, Conservatório Nacional, Institut Franco-Portugais, Auditório B da Fundação Gulbenkian e Academia de Amadores de Música. Em alguns, repetidas vezes. Contudo, por motivos rigorosamente pessoais, tenho um carinho especial pela Academia.

Fachada da Academia de Amadores de Música, Lisboa

Foi aos 14 de Julho de 1959 que, a convite do grande compositor Lopes-Graça, dei meu primeiro recital em Lisboa. Experiência inesquecível. Lopes-Graça ofereceu-me, inclusive, dois de seus manuscritos autógrafos, Em Alcobaça dançando um velho fandango e Dança Antiga, que apresentei no recital. Esse acontecimento, acalentado ao longo da trajetória, fez com que compreendesse a sala da Academia como um recinto quase sagrado. Visitava o compositor quando de minhas viagens e ele, sempre atencioso, oferecia-me fotocópias de suas obras. Os encontros davam-se na Academia. A aura que emana de suas paredes tem indelével presença de Lopes-Graça ainda hoje, quando são outras as propostas, outras as gerações. Há, contudo, imbuído em alguns professores que lá estão, o culto ao grande mestre.
A entrada da Academia é estreita e, durante o dia, o espaço que leva às escadas é preenchido por livros de um alfarrabista. Há sempre obras que interessam ao intérprete. À noite, tudo desaparece atrás de portas ou de proteções compactas e a área fica livre. Penso nessas escadas de madeira desgastadas pelo tempo que levam ao segundo andar, onde a Academia se situa, e que sentiram os passos de tantas gerações, como aquelas do tempo de Lopes-Graça. Ficaram fixados através da captação atenta do grande poeta José Gomes Ferreira, que teve tantos poemas musicados pelo compositor (Música – Minha Antiga Companheira desde os Ouvidos da Infância. Lisboa, Campo das Letras, 2003 ). Em parte considerável dos textos recolhidos por Raúl Hestnes Ferreira e Romeu Pinto da Silva, o poeta, que estudara piano e composição, menciona a Academia e o auditório, onde as obras de Lopes-Graça eram apresentadas e discutidas, por vezes acaloradamente.
Na Academia apresentei, ao longo dos anos, várias primeiras audições, entre as quais Adamastor o Gigante das Tempestades, obra de Francisco Mignone dedicada a Portugal, e o magnífico Estudo nº 5 Die Reihe Courante, de Jorge Peixinho, com a presença do saudoso compositor e amigo.
O presente recital apenas ratificou minha ligação amorosa com a Academia. Recebi, ao final, duas obras a respeito da criação de Lopes-Graça: de Alexandre Branco Weffort, A Canção Popular Portuguesa em Fernando Lopes-Graça (Lisboa, 2006), fundamental para o aprofundamento nesse segmento importante da opera omnia do compositor; de José Maria Pedrosa Cardoso, O Requiem e a Profissão de Fé de Lopes Graça, preciso estudo sobre o Requiem para as Vítimas do Fascismo em Portugal. Ambas valiosas contribuições para o desvelamento das composições do grande mestre de Tomar. Em www.musica.gulbenkian.pt, o leitor poderá consultar o Dossier Lopes-Graça. Textos focalizam a obra e a vida do compositor. Para o Dossier escrevi Piano sem Fronteiras. Para o selo Portugaler gravei o CD Viagens na Minha Terra, apenas com obras do insigne mestre.
Desço as escadas envelhecidas da Academia. Sinto uma alegria interior. Voltaremos a nos encontrar um dia. Tenho certeza.

Lisbon and the Academia de Amadores de Música:
Though I have been to Lisbon countless times, it is impossible to say I know it, such is the multiplicity of aspects of this unique city. My Portugal debut was in Lisbon, back in 1959, at the Academia de Amadores de Música, invited by the great Portuguese composer Lopes-Graça. Since then I have played many times in Lisbon, in many different concert halls, but it is with the Academia that I have the closest ties of affection. It is not only the place of my first public appearance in Portugal. It is also the place where Lopes-Graça himself presented me with autograph manuscripts or copies of his works and where, throughout the years, I premiered pieces by contemporary composers, such as Francisco Mignone and Jorge Peixinho. I have just played at the Academia once more. At the end of the recital, as I walked down its worn-out stairs, I was overcome by emotion. I will be back again. I know it for sure.

Cidade Plena de Mistérios

…a cidade de Évora hipnotiza ainda hoje de forma intensa todos e cada um, graças à existência duma velada força magnética, espiritual, praticamente indecifrável.
Joaquim Palminha Silva

Cromeleque dos Almendres, VI milênio a.C. - Foto J.E.M

Essa antiga cidade, por vezes milenar, tem origens singulares. Uns poucos quilômetros a distanciam do Cromeleque dos Almendres, monumento megalítico formado por menires e que deve datar do VI milênio a.C. O vasto descortino que se tem do Cromeleque possibilita, de certo ângulo, que sejam vislumbradas as cercanias da cidade. O porquê da colocação estratégica de dezenas de menires continua um mistério, como em Stonehenge, na Inglaterra. Determinadas coordenadas a fixarem o deslocamento da luz solar, outro mistério, comum às duas formações. Aliás, no Alentejo são inúmeros os menires, sendo o Cromeleque dos Almendres o mais importante.

Templo Romano de Évora, ou de Diana (Século III de nossa era) - Foto: J.E.M.

Os Romanos estiveram em Évora e edificaram, no século III, o Templo Romano de Évora, mais conhecido como Templo de Diana, apesar de não se saber ao certo a que divindade foi dedicado. Hoje em ruínas, tem suas colunas preservadas, a manter uma imponência ímpar.
O centro histórico de Évora é rodeado por altas muralhas, herança da Idade Média, quando protegiam cidades de ataques inimigos.
Évora abriga algumas das mais belas igrejas de Portugal, muitas outrora conventos. Ermidas também existem, a destacar esse outro contexto relevante da cidade. De uma primeira Sé do século XII nada restou. A Sé Catedral posterior foi sagrada em 1308 pelo bispo D. Fernando Martins. Intervenções foram feitas ao longo do tempo, propiciando à magnífica Catedral eborense o conceito merecido de ser um dos belos monumentos portugueses. Mencionemos algumas das igrejas, muitas delas do século XVI, que apresentam diferentes feituras quanto à construção: Carmo, Espírito Santo, Graças, Lóios, Mercês, S. Jesus da Pobreza, Salvador, S. Tiago, Santa Clara, Santo Antão, São Francisco e sua visitada Capela dos Ossos. São algumas entre tantas, autêntica enciclopédia histórico-religiosa.
O recital deu-se no Convento dos Remédios, erigido no século XVI. Hoje a Igreja, desativada para o culto religioso, está a servir como local de extraordinário cenário para concertos corais e camerísticos, assim como para recitais. As apresentações, organizadas pelo Eborae Musica, estabelecem esse convívio do Templo com os sons. A igreja tem uma nave de quatro trames. Nesse corpo, retábulos em madeira dourada protegem uma bela imaginária. A magnífica talha do altar-mor, a abrigar Nossa Senhora dos Remédios e um crucifixo expressivo, oferece o ambiente perfeito. Captada pelo intérprete, parte da aura emanada do local torna-se fonte maior de inspiração. Como resistir a essa magia? Integrando-se a ela, na busca possível das mais apuradas sonoridades, pois o Convento dos Remédios tem uma acústica invejável.
De regresso a Lisboa, observamos ainda o Centro Histórico, suas Igrejas. Ao deixar a proteção das muralhas, percorremos a cidade que foi construída extramuros e chegamos à planura alentejana. Sobreiros, azinheiras, chaparros, oliveiras espalham-se pelas terras onde, rasteiras, flores em amarelo ou lilás transformam todo o cenário em poesia. Évora é uma cidade singular. Magia, misticismo, mistérios…