A Magia de Sint-Hilarius
C’est donc ici que se trouve mon sanctuaire enchanteur
Paul Brunton
Terceiro dia de gravações. Findamos os registros fonográficos. Ao encerrarmos, às 3,30 da plena madrugada, surge Tim Herman, excelente fotógrafo e cineasta, a propor a filmagem, na íntegra, das Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau. Uma hora de preparação para o ajuste das várias câmaras e da iluminação e interpreto essa obra magistral sem interrupção. Creio que a energia veio da mística de Sint-Hilarius.
São seis horas da manhã. Pássaros sobrevoam, com seus cantos diferenciados, a capela de Mullem, a buscarem, a seguir, seus espaços na planície. Enquanto Johan Kennivé e Tim recolhem toda a aparelhagem, sento-me em uma cadeira distante da cena, a contemplar o interior da capela onde anualmente experimento momentos únicos e inefáveis. O ano de preparação, que se soma a tantos outros, torna-me cúmplice dessa capela. Milenar, teve toda a edificação erigida em nome da fé e da vontade do homem. Quantos foram os trabalhadores que ajudaram na construção? Fico sem resposta.
A parte central de Sint-Hilarius – onde se ergue a torre – e as laterais da capela são em pedra. Maiores ou menores, todas irregulares, mas que, na junção, formam uma simetria-assimétrica que emociona o intérprete, ainda mais sabendo que elas estão lá há mil anos, longe da multidão de olhares que se dirigem aos monumentos difundidos. Em sua austera simplicidade, a pedra reunida de Mullem é um apelo à esperança do não contágio. Em Citadelle, Saint-Exupéry diz que a razão da existência da pedra é sua união com outras pedras. “O que é a pedra sem o Templo?”, pergunta. Escreve ainda que a pedra não serve a si mesma nem às outras, mas que apenas o impulso que as leva à reunião torna-as dignas do culto. Agrupadas, elas espiritualizam o homem através de outros congraçamentos.
Fico a pensar nessa comunhão. Durante mil anos elas contemplaram a vida e a morte. Sinto-me um privilegiado. Estar repartindo os sons que busco desde sempre com as pedras místicas, que juntas formam a capela de Sint-Hilarius, é um bálsamo. Não por acaso, ao tocar, meus olhos dirigem-se a esse interior mágico.
São sete horas. Johan e Tim me chamam. As reflexões continuam. Olho uma vez mais o exterior da capela e partimos. Bem intimamente já sabemos, ela com a sua sabedoria milenar e eu, um simples intérprete, que teremos um encontro no próximo ano. Se Sint-Hilarius ouviu durante séculos o canto e as preces dos fiéis, hoje amorosamente proporciona suas ressonâncias a outros sons.
A planície flamenga está única nessa manhã. Mais nos aproximamos de Gent, mais as imagens e a mística de Sint-Hilarius ficam arquivadas no meu de profundis. Tudo é uma grande dádiva.
The magic of Saint Hilarius: the medieval church in Mullem, Belgium, where for three nights I have recorded Johann Kuhnau’s Biblical Sonatas, feeling the mystic communion between the sounds of the piano and their reverberation in the millenary stone walls of the chapel.
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