Navegando Posts publicados em maio, 2007

Biblioteca Joanina - Século XVIII: Jóia do estilo Joanino

A Lusa Atenas

A Universidade portuguesa foi criada por D. Diniz em 1290 e, após circular entre Lisboa e Coimbra, instala-se definitivamente nesta cidade em 1537. Não por acaso. Os romanos edificaram o pretorium nessa região; durante a ocupação árabe houve a decisão da construção de Alcáçova, cuja planificação geométrica assemelha-se à presente configuração do Páteo da Universidade.
A tradição da Universidade de Coimbra é um dos orgulhos do conimbricense. No Paço das Escolas, conhecido igualmente por Páteo da Universidade, encontram-se a Biblioteca Joanina, a Capela de São Miguel, a Torre, a Via Latina, a Porta Férrea e o antigo Colégio de São Pedro, todos em perfeita harmonia arquitetônica. A Biblioteca Joanina, dos tempos de D. João V, é um dos monumentos universais do século XVIII e, em suas três salas amplas em cores tênues e diferenciadas, todo o esplendor do período pode ser observado. Abriga coleções preciosíssimas.
Saindo-se da Universidade, Coimbra expõe alguns dos monumentos importantes da cultura portuguesa: a Sé Velha, a Igreja e o Mosteiro de Santa Cruz, a Sé Nova, o Arco de Almedina e tantos outros. Destaque às estreitas ruas medievais, que descem das colinas e se contorcem na Baixa . Conferindo um toque amoroso a todo o contexto, o Mondego, esse belo rio que, com os seus contornos, é amplamente visto do alto da cidade.
Pela quarta vez visito Coimbra. Em 2004, comemorava-se o tricentenário do ilustre compositor coimbrão Carlos Seixas (1704-1742) e apresentei, durante o Colóquio Carlos Seixas, um recital de piano inteiramente dedicado ao grande músico na Biblioteca Joanina. Nesses outros três anos, alternei as apresentações entre a famosa Biblioteca e o Teatro Acadêmico de Gil Vicente, pertencente à Universidade, onde se realizam séries importantes, a estimular a atividade artística da cidade.
Em um dos recitais na Biblioteca Joanina, à noite, ao apresentar as duas Légendes de Franz Liszt, no momento em que interpretava São Francisco de Assis falando aos pássaros, num dos segmentos plenos de trinados a lembrarem os gorjeios dos passarinhos, um rouxinol próximo ao teto da Biblioteca começou a cantar em alto som, provocando surpresa tanto para o público como para o intérprete. Disseram-me que jamais tal fato ocorrera. Magia da Joanina.
O recital presente, na moderna sala do Teatro Acadêmico Gil Vicente, com os comentários e o data-show feitos pelo competente Professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso, deu-se durante a semana de Maio, quando os estudantes festejam a Queima das Fitas, a comemorar a proximidade do final do ano letivo. Durante uma semana, vestidos com suas capas pretas, bebem a fartar-se cerveja e vinho, o que resulta em muitas ambulâncias circulando entre os locais festivos e os postos de atendimento. É uma tradição.
Sob outro contexto, Coimbra está inteiramente ligada à história do conhecimento no Brasil. Quantas não foram as gerações de brasileiros que estudaram em Coimbra desde o nosso início? Parte de nossa fundamentação jurídica hoje existente deve-se à sabedoria dos mestres conimbricenses. Igualmente em outras áreas humanísticas, assim como na medicina. O que se torna evidente é o respeito que as novas gerações acadêmicas têm em Coimbra pelos professores que, durante décadas, semearam e semeiam entre os estudantes o caminho do conhecimento. E isso é acúmulo. É dessa somatória que surgirão novas doutrinas, embasadas na tradição, e o conhecimento apenas tomará um dimensionamento maior. Coimbra é realmente única.

Paris: Foto Albert Monier - Postal da pianista Maria-Therèze Fourneau a J.E.M. (1967)

O regresso a Paris traz-me sempre nostalgia e uma inicial surda alegria. Conheço-a desde 1958 e tantas etapas importantes de minha vida tiveram a cidade como epicentro. Estudos pianísticos e meus aprofundamentos em autores como Jean-Philippe Rameau e Claude Debussy foram os motivos fulcrais para os deslocamentos. Em outros textos futuros penso alongar-me sobre esses compartimentos relativos aos objetos de estudo.
Pairando acima de todas as situações, permanecem inalteráveis determinadas amizades, que me acompanham desde o início. Amizades quase cinqüentenárias, absolutamente enraizadas. Aprendi a conhecer Paris através dos olhares de amigos que me ensinaram o descortino. Hoje, ao regressar, muito mais do que apreciar o belo dessa cidade única, busco encontrar os olhares que me ensinaram a olhar. Neles eu reencontro a fidelidade e o afeto sincero que, tal como o bom vinho, amadureceram bem. Esses olhares indicaram-me categorias históricas da literatura francesa. Foi através deles que descobri Ingmar Bergman, Buñuel e a Nouvelle Vague. Com os amigos freqüentava igualmente quase todas as exposições de destaque e a discussão sobre tendências era inevitável. Em pequenos grupos, íamos também a bons concertos, à escuta de toda uma geração de intérpretes pertencente à Idade de Ouro. Ouvir e aprender.
Alguns já se foram. Contudo, reencontrar os velhos amigos é sempre uma felicidade. O recital agendado será motivo a mais para o congraçamento. Músicos, ou voltados a outras áreas do pensar, essas amizades profundas apenas dimensionam o estreitamento das distâncias, que na realidade desaparecem por completo após o reencontro e a simples troca inalterada de olhares.

A Magia de Sint-Hilarius

Capela de Sint-Hilarius - século XI

C’est donc ici que se trouve mon sanctuaire enchanteur
Paul Brunton

Terceiro dia de gravações. Findamos os registros fonográficos. Ao encerrarmos, às 3,30 da plena madrugada, surge Tim Herman, excelente fotógrafo e cineasta, a propor a filmagem, na íntegra, das Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau. Uma hora de preparação para o ajuste das várias câmaras e da iluminação e interpreto essa obra magistral sem interrupção. Creio que a energia veio da mística de Sint-Hilarius.
São seis horas da manhã. Pássaros sobrevoam, com seus cantos diferenciados, a capela de Mullem, a buscarem, a seguir, seus espaços na planície. Enquanto Johan Kennivé e Tim recolhem toda a aparelhagem, sento-me em uma cadeira distante da cena, a contemplar o interior da capela onde anualmente experimento momentos únicos e inefáveis. O ano de preparação, que se soma a tantos outros, torna-me cúmplice dessa capela. Milenar, teve toda a edificação erigida em nome da fé e da vontade do homem. Quantos foram os trabalhadores que ajudaram na construção? Fico sem resposta.


Capela de Sint-Hilarius - século XI

A parte central de Sint-Hilarius – onde se ergue a torre – e as laterais da capela são em pedra. Maiores ou menores, todas irregulares, mas que, na junção, formam uma simetria-assimétrica que emociona o intérprete, ainda mais sabendo que elas estão lá há mil anos, longe da multidão de olhares que se dirigem aos monumentos difundidos. Em sua austera simplicidade, a pedra reunida de Mullem é um apelo à esperança do não contágio. Em Citadelle, Saint-Exupéry diz que a razão da existência da pedra é sua união com outras pedras. “O que é a pedra sem o Templo?”, pergunta. Escreve ainda que a pedra não serve a si mesma nem às outras, mas que apenas o impulso que as leva à reunião torna-as dignas do culto. Agrupadas, elas espiritualizam o homem através de outros congraçamentos.
Fico a pensar nessa comunhão. Durante mil anos elas contemplaram a vida e a morte. Sinto-me um privilegiado. Estar repartindo os sons que busco desde sempre com as pedras místicas, que juntas formam a capela de Sint-Hilarius, é um bálsamo. Não por acaso, ao tocar, meus olhos dirigem-se a esse interior mágico.
São sete horas. Johan e Tim me chamam. As reflexões continuam. Olho uma vez mais o exterior da capela e partimos. Bem intimamente já sabemos, ela com a sua sabedoria milenar e eu, um simples intérprete, que teremos um encontro no próximo ano. Se Sint-Hilarius ouviu durante séculos o canto e as preces dos fiéis, hoje amorosamente proporciona suas ressonâncias a outros sons.
A planície flamenga está única nessa manhã. Mais nos aproximamos de Gent, mais as imagens e a mística de Sint-Hilarius ficam arquivadas no meu de profundis. Tudo é uma grande dádiva.

The magic of Saint Hilarius: the medieval church in Mullem, Belgium, where for three nights I have recorded Johann Kuhnau’s Biblical Sonatas, feeling the mystic communion between the sounds of the piano and their reverberation in the millenary stone walls of the chapel.