Navegando Posts publicados em agosto, 2007

A Interpretação Inefável

Jean Doyen

Aujourd’hui je n’ai pas su résister à l’appel
de ces visions que je voyais flotter, à mi-profondeur,
dans la transparence de ma pensée.

Marcel Proust

The reward of a thing well done is to have done it.
Ralph Waldo Emerson

Muitos dos mais importantes pianistas do século XX foram franceses e tiveram a formação no país de origem, pois a França se notabilizou igualmente pela quantidade expressiva de grandes professores, a maior parte, diga-se, pianistas relevantes. Se considerarmos que há lacunas quando se faz uma listagem, nomear alguns desses intérpretes excepcionais, já desaparecidos, é a evidência da tradição enraizada desde o século XIX. Marguerite Long (1874-1966), Blanche Selva (1884-1942), Alfred Cortot, nascido na Suíça, mas considerado francês (1877-1962), Yves Nat (1890-1956), Marcelle Meyer (1897-1958) (vide post Marcelle Meyer), Yvonne Lefébure (1898-1986), Robert Casadesus (1899-1972), Jacques Février (1900-1979), Vlado Perlemuter, naturalizado francês (1904-2002), Jeanne-Marie Darré (1905-1999), Jean Doyen (1907-1982) (vide www.musimem.com, seção “Biographies”), Lelia Gousseau (1909-1997), Monique Hass (1909-1987), Monique de la Bruchollerie (1915-1972), Ginette Doyen (1921-2002), Samson François (1924-1970) e tantos outros testemunharam, ao longo de trajetórias substantivas, a qualidade da interpretação pianística em França.
Neste ano comemora-se o centenário de Jean Doyen. Já aos nove anos de idade entra para o Conservatório de Paris, onde, entre seus principais professores, teve a orientação pianística dos lendários Louis Diémer e Marguerite Long. Em 1922, recebe o primeiro prêmio dessa Instituição de Ensino, iniciando carreira como pianista três anos após. Tendo realizado paralelamente cursos de composição, recebeu em 1937 o prêmio Gabriel Fauré. Ao suceder Marguerite Long como professor de piano no Conservatório de Paris, permanece no Estabelecimento de 1941 a 1977.
Possivelmente Jean Doyen tenha sido um dos pianistas de maior repertório no século XX. Vladimir Horowitz tinha admiração pelo intérprete. Apresentou integrais dos principais compositores sacralizados e também redescobriu e apresentou em première: Variações sobre um tema de Don Juan, de Chopin, Fantaisie sur un vieil air de ronde française, de Vincent d’Indy, Trois Dances, de Samazeuilh, e muitas outras obras. A atividade pedagógica intensa levou-o a orientar legião de pianistas, entre os quais Marie Thérèze Fourneau, Philippe Entremont, Claude Kahn, Artur Moreira Lima. Como professor, sempre respeitou a personalidade de seus discípulos e seu gosto pessoal – não imposto – era, contudo, apreendido naturalmente por seus alunos. Só não fazia concessões quanto ao rigor estilístico das obras em estudo. Sob outra égide, a índole não voltada aos holofotes tenha, possivelmente, distanciado-o da mídia voraz. Apesar da freqüência das apresentações, sobretudo na França, não houve por parte do pianista a atração pela chamada grande carreira internacional. Porém, suas gravações atestam inalienável qualidade interpretativa, onde profundo refinamento e absoluta compreensão estilística dão, aos registros que ficaram, plena noção das características essenciais de sua execução. Clareza, uso econômico de pedalização, sentido natural da agógica (flexibilização nos andamentos) na excelência de seu emprego tornaram ímpares as suas fixações sonoras. Intérprete da tríade essencial da música francesa do período, representada por Gabriel Fauré, Claude Debussy e Maurice Ravel, sua gravação da integral para piano de Fauré (Erato-Le Piano Français) reflete o que se poderia entender como uma leitura absoluta, verdadeiro modelo para os pósteros. Nenhum exagero. A virtuosidade, quando presente, apresenta-se como um meio apenas, e os tempi por Doyen eleitos estariam sempre a traduzir a inefabilidade do conteúdo faureano. Se a sua interpretação revela um estilo definido, poder-se-ia acrescentar que não há desvio arbitrário a agradar parcela do público, mas que conduziria à possível distorção.
Em meados de 1959, eu estudava sob a orientação de Marguerite Long e Jacques Février. Solicitei à extraordinária professora a mudança do “professor assistente” e a mestra indicou-me Jean Doyen. Poderia assegurar ter tido a maior empatia com o grande pianista e professor. Foram três anos em que não houve o mínimo desentendimento. As aulas eram dadas em sua residência e sempre em uma sala com dois pianos, pois o mestre exemplificava todas as suas intenções executando de maneira absoluta qualquer passagem, fosse ela a mais complexa. A cada semana recebia aula de Marguerite Long ou de Jean Doyen, alternadamente. Uma obra de grande fôlego tinha de ser preparada e memorizada quinzenalmente. Esse tour de force obrigava-me, por vezes, a 10 horas de estudos diariamente. Sem jamais ultrapassar os limites do bom entendimento, o professor explicava com nitidez todos os aspectos estruturais da obra e, sob o prisma da praticidade, tinha sempre o dedilhado adequado para as passagens mais complexas. Se pedia ao mestre interpretar a obra que o jovem aluno de então estava a estudar, com prazer a obra fluía de seus dedos, e sempre de cor. Recordo-me de duas perguntas a ele feitas e das respostas sem qualquer empáfia. A uma primeira, relacionada ao número de concertos para piano e orquestra que apresentara, respondeu-me que foram cerca de 60. A uma segunda, sobre sua prodigiosa memória, disse-me que por várias vezes aprendera, durante viagem de trem, determinada peça desconhecida para ele até então, a fim de tocá-la de cor em um recital já programado, ou seja, sua experiência se daria durante a apresentação. Os extraordinário Walter Gieseking e Claudio Arrau, basicamente coetâneos, tiveram igualmente esse dom raro. Estou a me lembrar de que um dia levei a Jean Doyen a Tocata, de Camargo Guarnieri, pois teria de dar um recital de música brasileira. Antes que eu a executasse, pediu a partitura, leu-a em pé em poucos segundos, sentou-se ao piano e a interpretou impecavelmente no andamento proposto pelo compositor, obedecendo a todos os sinais da dinâmica, da articulação e da agógica. Atônito, eu apenas virava as páginas. Ao finalizar, sorriu e disse com a maior naturalidade: “C’est amusant. Assez difficile. Un beau morceau”.
Nesse período, com ele estudou o colega e amigo Moreira Lima, que o admirava igualmente. Lembrávamos constantemente de uma frase do mestre, quando este sentia um toque mais superficial: “Enfoncez vos doigts”. Como explicava Jean Doyen, o som tem que ter vida, mesmo nas passagens em baixíssimas intensidades.
Ficaria sempre a imagem do grande músico. A ele devo imenso tributo, graças à competente didática pianística e ao estímulo. Seria possível entendê-lo na abrangência, através da relação que Jean Doyen mantinha com a vida, onde os espaços estavam solidamente estruturados: do pianista, do professor, da família constituída de mulher e filha, todos em plena harmonia. Amálgama completo. Geneviève (1944-2004) seguiria os passos de seu pai, ao tornar-se pianista e, sobretudo, professora.
Em Tempo de Concerto da USP-FM, 97.3, (www.radio.usp.br), no programa Idéia, Criação e Interpretação, estarei a apresentar a integral para piano solo de Gabriel Fauré, assim como a Ballade para piano e orquestra interpretadas por Jean Doyen. A programação se estenderá de Setembro até as duas primeiras semanas de Outubro, sempre às terças-feiras às 22 horas. Futuramente, apresentaremos obras para piano solo e os Concertos para piano e orquestra de Maurice Ravel, as Variações Sinfônicas de Cesar Franck e as Valsas de Chopin, em versões inefáveis de Jean Doyen.

In 2007 we celebrate the birth centennial of Jean Doyen (1907-1982), who ranks amongst the greatest keyboard virtuosi of the XXth century in France. He taught at the Paris Conservatoire and also gave private piano lessons, forming a multitude of pianists, myself included. With a prodigious memory, he had an extensive repertoire, encompassing sacralized composers and contemporary ones as well. His recordings testify to the excellence of his performance: clear, elegant playing, subtle use of pedals, sense of agogics and a style of his own, with no need of over-playing that, though well received by the audience, may lead to distortions. Unpretentious, accessible, not a bit showy, Jean Doyen has not received from the media the recognition that a performer with his accomplishments would deserve. An outstanding pianist, teacher and man, I consider his recordings as jewels that all music-lovers should know.

Literatura sobre Arte Sacra no Brasil

É um inútil desperdício de tempo
celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar
as obras que deixaram.

Monteiro Lobato

Paulistinhas, terracota - séc. XIX -  foto: J.E.M.

Alguns estudiosos debruçaram-se, no século XX, sobre a temática da Arte Sacra Brasileira. Por analogia, poderíamos avocar a frase de Miguel Torga, que afirmou que um escritor, aos escrever algo significativo, fá-lo tendo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. Com Eduardo Etzel ocorreria o mesmo. Estudou em profundidade a bibliografia pertinente à Arte Sacra no Brasil. Quatro aspectos fundamentais, contudo, diferenciam-no de ilustres ascendentes: ter sido cirurgião torácico e psicanalista, apreender a temática através da pesquisa de campo, preferenciar basicamente a Arte Sacra Popular, persistir no aprofundamento durante cerca de trinta anos. A medicina ofertou-lhe o amplo conhecimento anatômico e a psicanálise, os meandros que levam ao inconsciente; a pesquisa de campo aguçou, mercê do embasamento anterior, o sentido da análise do objeto de estudo, ampliando o leque das hipóteses e das certezas; a área pesquisada fê-lo captar as manifestações da Arte Sacra de tendência não erudita; a persistência dimensionou a qualidade da pesquisa. Estes atributos atestariam o patamar ímpar em que sua obra sobre a Arte Sacra Brasileira posiciona-se.
A longa trajetória inicia-se a partir de Imagens Religiosas de São Paulo. Apreciação Histórica (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1971, 302 págs), levantamento de parcela considerável da Arte Sacra Popular do Vale do Paraíba. Nesse percorrer extensa região, Etzel colhe material, seleciona-o, compara-o e estabelece hipóteses que as evidências transformariam em verdades com o decorrer do tempo. Há mapeamento de toda a região. Notável a perspectiva que imprime às paulistinhas – pequenas esculturas feitas em barro cozido sobre base oca, para não racharem devido à temperatura alta, e modeladas a partir de fôrmas – a procurar nessas peças anônimas traços que porventura identificassem o autor. Em muitas delas, marcas inalienáveis, seja na pintura, nos pormenores ou, raramente, na data fixada em baixo-relevo no interior da peanha vazada, levariam à revelação do santeiro, embora sem nome. Impressiona-se com outras diminutas esculturas da imaginária, realizadas em nó de pinho pelos escravos e seus descendentes. O livro, antecâmara de estudos futuros a respeito de santeiros populares, já apresenta algumas poucas imagens de alguns autores identificados. Outras peças religiosas, como oratórios e crucifixos, enriquecem a obra.

Esculturas em Nó de Pinho - 3cm a 15cm, séc. XIX - foto: J.E.M.

Quando escreve a seguir O Barroco no Brasil. Psicologia e Remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1974, 312 págs.), seria possível entender que a característica não erudita da arte sacra do Vale do Paraíba tenha influenciado Etzel na busca do Barroco brasileiro menos ventilado. Dirige-se a regiões onde essa manifestação estilística sofreu menos os eflúvios da riqueza proporcionada pelo ouro e pela cana-de-açúcar. Pesquisando em pequenas localidades das áreas visitadas, depara-se muitas vezes com soluções autógenas de artistas e artesãos que, sem o aprofundamento exegético “erudito”, criaram soluções ímpares para imagens religiosas. Apesar do curto período aurífero em Goiás, como exemplo, as manifestações do barroco, palavra sempre em pauta na pena do autor, tiveram características sui generis como contributo à Arte Sacra no Brasil. Barroco pobre e despojado, mas original em suas soluções. Tardiamente, Goiás encontra um artista de grande mérito: José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874). As várias fases por que passou São Paulo são abordadas, assim como os Estados do Sul. Por todos os lugares, Etzel realizou pesquisa documental aprofundada antes de formular hipóteses.

Nossa Senhora com Menino - terracota. Dito Pituba, séc. XIX. Foto: J.E.M.

Em Arte Sacra Popular Brasileira. Conceito-Exemplo-Evolução (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1975, 174 pgs.), Eduardo Etzel focaliza com precisão um tema determinado. Após considerações relativas ao título, à inter-relação cidade campo e à função do santeiro junto à comunidade, dedica-se a um em especial, Benedito Amaro de Oliveira, o Dito Pituba (1848-1923) de Santa Isabel, cidade a poucos quilômetros de São Paulo. Investiga a criação, os porquês de uma produção imensa e a genialidade de Pituba surge por inteiro. Soube empregar os mais variados materiais para a elaboração de imagens, crucifixos e oratórios: madeira, argila que servirá à terracota, couro, arame, tampinha de garrafa, caixas de vinho, de óleo ou de bacalhau importados. Também encontrou outras soluções rigorosamente inéditas, como a utilização de pregos para a fixação da peanha à imagem. Etzel aprofunda o estudo e compartimenta as fases da produção do santeiro conforme a feitura, analisando os porquês.

Oratório e Imagens, Dito Pituba, séc. XIX - foto: J.E.M.

Ao escrever J.B.C. Um Singular Artista Sacro Popular – A Obra Transcende o Homem (São Paulo, CESP, 1978, 63 págs. mais anexo iconográfico), Etzel presta homenagem a José Benedito da Cruz (1877-1934), pedreiro, marceneiro e pintor nascido em Paraibuna, e que trabalhou na região de Mogi das Cruzes reformando ou pintando capelas e fazendo imagens. Notável o detalhamento do estudioso quanto à igreja matriz de Taiaçupeba (Capela do Ribeirão). J.B.C., que deixava nas obras sua assinatura, ou iniciais, pintou 10 capelas, confeccionou retábulos e viveu dessa atividade de santeiro popular. Etzel capta seus traços, encanta-se com a puerilidade de suas pinturas e de sua imaginária e novamente formula hipóteses para a criação de obra tão singular.
Imagem Sacra Brasileira (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1979, 157 pgs.) é bem definido pelo autor, no prefácio, como um guia para que o amador possa apreciar o que existe exposto em museus e coleções, e para auxiliá-lo, se porventura pretender adquirir uma peça, desviando-o das fraudes que grassavam e que, infelizmente, continuam a existir. Distingue a imagem erudita da popular, examina sucintamente esculturas sacras com pleno domínio e nesse “resumo” percebe-se que “o” livro sobre a Arte Sacra estava a ser preparado. E este surgiria um lustro após.
A publicação de Arte Sacra – Berço da Arte Brasileira (São Paulo, Melhoramentos, 1984, 256 págs.) merece, entre a opera omnia do autor voltada à temática, posição absolutamente ímpar. Corolário de todo o caminhar. Etzel defende, sempre a apresentar provas, a Arte Sacra como origem primeira de nossa arte, mercê da chegada dos padres, no século XVI, às terras brasileiras, a difundirem o culto católico: “ o resultado dessa ação missionária, cuja arma principal foram os templos com a melhor riqueza artística possível nas circunstâncias locais, tornou-se a Arte Sacra o berço, o começo e a raiz única da arte brasileira…” A posição firme do autor estende-se pelos sete capítulos, a abranger grande área do território brasileiro. Busca, nos inventários dos séculos XVII e XVIII, provas para suas teorias. Como exemplo, no capítulo destinado às missões jesuíticas no sul do país, após pouco encontrar em Sete Povos das Missões, com os templos e a imaginária destruídos depois da Guerra Guaranítica, vai ao Paraguai, onde traços marcantes ainda existem nas missões locais. Pertinentemente ilustrado, o livro é extraordinário por seu todo. À resenha que escrevi, publicada no “Cultura” de “O Estado de São Paulo” (nº 215, ano IV, 22/7/84, pág. 10), Eduardo Etzel, aos 78 anos, escreve-me carta de Minas Novas (28/7/84), onde estava a fim de estudar mais profundamente Anjos e Divinos na Arte Sacra do Brasil: “Palavra que até chorei… Sempre tive a impressão de ser marginalizado pela nossa ‘inteligentzia’ que não me levava a sério. Você botou os pontos nos ii e registrou o fato. Sem modéstia acho que foi justo e preencheu uma expectativa que para mim era necessária.”
Poder-se-ia afirmar que, nos três derradeiros livros sobre Arte Sacra Brasileira, Etzel penetra profundamente temáticas enraizadas em nossa cultura: Nossa Senhora do Ó. História-Iconografia-Características Brasileiras (São Paulo, Bovespa, 1985, 79 págs.), Anjos Barrocos no Brasil – Angelologia (São Paulo, Kosmos, 1995, 92 págs.) e Divino – Simbolismo no Folclore e na Arte Popular (São Paulo, Kosmos, 1995, 180 págs.). No primeiro, como afirma, estuda “a fascinante iconografia de Nossa Senhora da Expectação, também chamada do Ó, a Virgem Mãe às vésperas do nascimento de Jesus Cristo”; no segundo, aprofunda-se na simbologia dos anjos na Arte Sacra Brasileira, investigando a curiosa dualidade relativa à feitura erudito-popular, assim como a presença do masculino e do feminino dessa manifestação em nossa imaginária; no Divino, documenta largamente, através da História, o culto permanente à terceira pessoa da Santíssima Trindade. Foi um prazer ter sido convidado por Eduardo Etzel para escrever o Prefácio, finalizando-o: “ Desconhecer a contribuição de Eduardo Etzel, única no desvelamento dos segredos que cercam a criação sacro-popular brasileira, é negar o conjunto monolítico mais expressivo e enriquecedor de nossa literatura específica. A partir dele, as trevas que envolviam a criação sacro-popular estão a se dissipar. E sempre há a esperança….”

Eduardo Etzel: an account of my friendship with Eduardo Etzel, thoracic surgeon, psychiatrist and humanist, who introduced me to the universe of the Brazilian religious art. A summary of each of the books he wrote on this subject.

A Valorização do Humanismo

Estuda o teu trabalho e realiza-o,
trabalhando como um Hércules.

Thomas Carlyle

Eduardo Etzel

Eduardo Etzel (1906-2003) foi um homem extraordinário, figura das mais marcantes que conheci. Médico por formação, tornou-se um dos pioneiros da cirurgia de pulmão no Brasil. Em um período em que a tuberculose grassava impune, desenvolveu técnica reverenciada por seus coetâneos. Um de seus discípulos, o célebre Dr. Eurípedes Zerbini, que realizou o primeiro transplante de coração no Brasil, considerava-o seu primeiro mestre na arte cirúrgica. Operava em São Paulo e também, nos finais de semana, no Sanatório Vicentina Aranha em São José dos Campos, assistindo as comunidades mais carentes. O arguto senso anatômico, unido à vocação de observador e pesquisador, teriam desenvolvido em Eduardo Etzel a admiração pela arte sacra popular, pois estava clinicando na região do Vale do Paraíba, riquíssima nessa manifestação. Com o advento dos antibióticos e dos quimioterápicos e conseqüente queda vertical da importância da cirurgia da tuberculose, formou-se psicanalista ortodoxo e durante décadas desenvolveu essa atividade. Paralelamente ao trabalho como psicanalista, dedicou-se também às pesquisas de campo relacionadas à Arte Sacra Popular. O quadro mostrar-se-ia perfeito. O médico a entender a anatomia do corpo humano, o psicanalista a penetrar o de profundis dos pacientes. Esta somatória prepararia Eduardo Etzel para outro ato inédito, ou seja, o de ser também pioneiro no desvelamento, através da pesquisa de campo, da Arte Sacra Popular do Brasil, coletando rico material e escrevendo livros antológicos sobre a especialidade. Parte de seu acervo está hoje depositada no Museu de Arte Sacra de São Paulo e no Museu de Antropologia de Jacareí, no Vale do Paraíba.
Conheci-o de maneira inusitada. Meu sobrinho, Roberto Vidal da Silva Martins, e eu freqüentávamos periodicamente o mercado da “Breganha”, como é chamada a feira de Taubaté aos domingos. Certa vez, deparei-me com pequenas imagens de barro cozido bem antigas, uma datada de 1836, e o fato intrigou-me. Tendo encontrado num alfarrabista Imagens Religiosas de São Paulo ( São Paulo, Melhoramentos Edusp, 1971), fiquei encantado com a precisão, o rico material iconográfico e o conhecimento profundo do autor, Eduardo Etzel, sobre a matéria. As peças que vira assemelhavam-se a algumas existentes no livro. Após a leitura, procurei na lista telefônica o número do autor e liguei, apresentando-me como um admirador. Soube que assistira a um meu recital. Convidou-me para jantar em sua casa no dia seguinte com minha mulher e uma profunda amizade entre dois casais nasceria desse encontro. Vendo meu interesse, disse-me que passaria ao já “discípulo” conhecimentos adquiridos. Isto em 1975.

Nossa Senhora da Expectação ou do Ó - Terracota - Dito Pituba, séc XIX

Durante dez anos, percorri aos sábados, juntamente com meu saudoso amigo Carlindo Pavan, a região de Santa Isabel, Parateí, Igaratá, Nazaré Paulista e Itaquaquecetuba, subindo morros, penetrando em pequenas matas, descampados e riachos, a usar botas devido às serpentes que por vezes encontrávamos, na pesquisa prioritária dos traços que o extraordinário santeiro popular Benedito Amaro de Oliveira, o Dito Pituba (1848-1923), deixara na região. Isto só foi possível graças às indicações precisas a mim transmitidas por Eduardo Etzel que, aos 70 anos, já não sentia o mesmo vigor para continuar com essas marchas que se estendiam das 8 da manhã ao anoitecer. Etzel acreditou sempre que apenas o entendimento a partir da pesquisa de campo possibilita ao que a ela se dedica visão mais abrangente do objeto estudado, pois a área pesquisada está impregnada do ambiente que levou ao ato criativo e da vivência do devoto, destinatário da imaginária. Naqueles anos foram encontradas, em casas dos humildes homens do campo, criações de Dito Pituba, paulistinhas anônimas (imagens em terracota pintadas e com a base vasada), nós de pinho (pequenas peças de devoção esculpidas por escravos e seus descendentes), oratórios, crucifixos e outros mais objetos de culto. Muitos, abandonados em santas-cruzes, espécies de “capelinhas” à beira de estradas, onde os devotos largam imagens quebradas ou semidestruídas.
Aos domingos à tarde visitava o Dr. Eduardo, como o chamava, e um universo se abria. Pacientemente ensinou-me a arte da restauração, que consistia basicamente em limpeza, retirada de repinturas com o maior cuidado, colagem de fragmentos quebrados, preenchimento esporádico com gesso pedra, alisamento com lixas especiais e cuidadoso retoque. Para esse mister, Eduardo Etzel desenvolvera técnica própria, prática, segura e de resultados. Disse-me que alguns procedimentos vieram da larga experiência como cirurgião. Não poucas vezes ficávamos surpresos com a descoberta na pintura original, após várias camadas retiradas, das iniciais do santeiro ou mesmo a data de feitura. Durante esses anos privilegiados fui analisado sem o saber. Metodologia sui generis. Etzel conseguiu “restaurar” tantos outros fragmentos de meu passado nessas conversas em torno da imaginária sacra popular.

Em fins de 1977, realizávamos, com ampla aprovação do Professor Pietro Maria Bardi, uma exposição no MASP com obras de Dito Pituba por nós recolhidas em períodos diferentes. Nos anos que se seguiram, continuamos esse trabalho de recuperação, verdadeira ourivesaria. Após o exaustivo restauro, tomávamos um lanche preparado pela sua inseparável companheira Kitinha, seguido de sessão de leitura de suas pesquisas, que resultariam em tantos livros fundamentais à bibliografia da arte sacra no Brasil.
Tardiamente, escreveu também outras obras: o polêmico Escravidão Negra e Branca. O Passado através do Presente (São Paulo, Global, 1976), em que lança olhar singular sobre os séculos de escravidão, que continua existindo com outra roupagem; a autobiografia Um Médico do Século XX Vivendo Transformações (São Paulo, Nobel-Edusp, 1987, 236 pgs.), no qual o analista busca respostas a partir da interpretação de episódios ocorridos desde a infância; Filosofando com o Miró (São Paulo, Ateliê, 2000, 271 pgs.), interessantíssimas reflexões, espécie de “solilóquio”, tendo seu fox-paulistinha Miró como fiel ouvinte. Contudo, são seus excepcionais livros sobre arte sacra que definitivamente estarão a perenizar o grande humanista. Sobre este conjunto monolítico, inigualável no Brasil, farei comentários no próximo post.