Literatura sobre Arte Sacra no Brasil

É um inútil desperdício de tempo
celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar
as obras que deixaram.

Monteiro Lobato

Paulistinhas, terracota - séc. XIX -  foto: J.E.M.

Alguns estudiosos debruçaram-se, no século XX, sobre a temática da Arte Sacra Brasileira. Por analogia, poderíamos avocar a frase de Miguel Torga, que afirmou que um escritor, aos escrever algo significativo, fá-lo tendo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. Com Eduardo Etzel ocorreria o mesmo. Estudou em profundidade a bibliografia pertinente à Arte Sacra no Brasil. Quatro aspectos fundamentais, contudo, diferenciam-no de ilustres ascendentes: ter sido cirurgião torácico e psicanalista, apreender a temática através da pesquisa de campo, preferenciar basicamente a Arte Sacra Popular, persistir no aprofundamento durante cerca de trinta anos. A medicina ofertou-lhe o amplo conhecimento anatômico e a psicanálise, os meandros que levam ao inconsciente; a pesquisa de campo aguçou, mercê do embasamento anterior, o sentido da análise do objeto de estudo, ampliando o leque das hipóteses e das certezas; a área pesquisada fê-lo captar as manifestações da Arte Sacra de tendência não erudita; a persistência dimensionou a qualidade da pesquisa. Estes atributos atestariam o patamar ímpar em que sua obra sobre a Arte Sacra Brasileira posiciona-se.
A longa trajetória inicia-se a partir de Imagens Religiosas de São Paulo. Apreciação Histórica (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1971, 302 págs), levantamento de parcela considerável da Arte Sacra Popular do Vale do Paraíba. Nesse percorrer extensa região, Etzel colhe material, seleciona-o, compara-o e estabelece hipóteses que as evidências transformariam em verdades com o decorrer do tempo. Há mapeamento de toda a região. Notável a perspectiva que imprime às paulistinhas – pequenas esculturas feitas em barro cozido sobre base oca, para não racharem devido à temperatura alta, e modeladas a partir de fôrmas – a procurar nessas peças anônimas traços que porventura identificassem o autor. Em muitas delas, marcas inalienáveis, seja na pintura, nos pormenores ou, raramente, na data fixada em baixo-relevo no interior da peanha vazada, levariam à revelação do santeiro, embora sem nome. Impressiona-se com outras diminutas esculturas da imaginária, realizadas em nó de pinho pelos escravos e seus descendentes. O livro, antecâmara de estudos futuros a respeito de santeiros populares, já apresenta algumas poucas imagens de alguns autores identificados. Outras peças religiosas, como oratórios e crucifixos, enriquecem a obra.

Esculturas em Nó de Pinho - 3cm a 15cm, séc. XIX - foto: J.E.M.

Quando escreve a seguir O Barroco no Brasil. Psicologia e Remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1974, 312 págs.), seria possível entender que a característica não erudita da arte sacra do Vale do Paraíba tenha influenciado Etzel na busca do Barroco brasileiro menos ventilado. Dirige-se a regiões onde essa manifestação estilística sofreu menos os eflúvios da riqueza proporcionada pelo ouro e pela cana-de-açúcar. Pesquisando em pequenas localidades das áreas visitadas, depara-se muitas vezes com soluções autógenas de artistas e artesãos que, sem o aprofundamento exegético “erudito”, criaram soluções ímpares para imagens religiosas. Apesar do curto período aurífero em Goiás, como exemplo, as manifestações do barroco, palavra sempre em pauta na pena do autor, tiveram características sui generis como contributo à Arte Sacra no Brasil. Barroco pobre e despojado, mas original em suas soluções. Tardiamente, Goiás encontra um artista de grande mérito: José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874). As várias fases por que passou São Paulo são abordadas, assim como os Estados do Sul. Por todos os lugares, Etzel realizou pesquisa documental aprofundada antes de formular hipóteses.

Nossa Senhora com Menino - terracota. Dito Pituba, séc. XIX. Foto: J.E.M.

Em Arte Sacra Popular Brasileira. Conceito-Exemplo-Evolução (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1975, 174 pgs.), Eduardo Etzel focaliza com precisão um tema determinado. Após considerações relativas ao título, à inter-relação cidade campo e à função do santeiro junto à comunidade, dedica-se a um em especial, Benedito Amaro de Oliveira, o Dito Pituba (1848-1923) de Santa Isabel, cidade a poucos quilômetros de São Paulo. Investiga a criação, os porquês de uma produção imensa e a genialidade de Pituba surge por inteiro. Soube empregar os mais variados materiais para a elaboração de imagens, crucifixos e oratórios: madeira, argila que servirá à terracota, couro, arame, tampinha de garrafa, caixas de vinho, de óleo ou de bacalhau importados. Também encontrou outras soluções rigorosamente inéditas, como a utilização de pregos para a fixação da peanha à imagem. Etzel aprofunda o estudo e compartimenta as fases da produção do santeiro conforme a feitura, analisando os porquês.

Oratório e Imagens, Dito Pituba, séc. XIX - foto: J.E.M.

Ao escrever J.B.C. Um Singular Artista Sacro Popular – A Obra Transcende o Homem (São Paulo, CESP, 1978, 63 págs. mais anexo iconográfico), Etzel presta homenagem a José Benedito da Cruz (1877-1934), pedreiro, marceneiro e pintor nascido em Paraibuna, e que trabalhou na região de Mogi das Cruzes reformando ou pintando capelas e fazendo imagens. Notável o detalhamento do estudioso quanto à igreja matriz de Taiaçupeba (Capela do Ribeirão). J.B.C., que deixava nas obras sua assinatura, ou iniciais, pintou 10 capelas, confeccionou retábulos e viveu dessa atividade de santeiro popular. Etzel capta seus traços, encanta-se com a puerilidade de suas pinturas e de sua imaginária e novamente formula hipóteses para a criação de obra tão singular.
Imagem Sacra Brasileira (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1979, 157 pgs.) é bem definido pelo autor, no prefácio, como um guia para que o amador possa apreciar o que existe exposto em museus e coleções, e para auxiliá-lo, se porventura pretender adquirir uma peça, desviando-o das fraudes que grassavam e que, infelizmente, continuam a existir. Distingue a imagem erudita da popular, examina sucintamente esculturas sacras com pleno domínio e nesse “resumo” percebe-se que “o” livro sobre a Arte Sacra estava a ser preparado. E este surgiria um lustro após.
A publicação de Arte Sacra – Berço da Arte Brasileira (São Paulo, Melhoramentos, 1984, 256 págs.) merece, entre a opera omnia do autor voltada à temática, posição absolutamente ímpar. Corolário de todo o caminhar. Etzel defende, sempre a apresentar provas, a Arte Sacra como origem primeira de nossa arte, mercê da chegada dos padres, no século XVI, às terras brasileiras, a difundirem o culto católico: “ o resultado dessa ação missionária, cuja arma principal foram os templos com a melhor riqueza artística possível nas circunstâncias locais, tornou-se a Arte Sacra o berço, o começo e a raiz única da arte brasileira…” A posição firme do autor estende-se pelos sete capítulos, a abranger grande área do território brasileiro. Busca, nos inventários dos séculos XVII e XVIII, provas para suas teorias. Como exemplo, no capítulo destinado às missões jesuíticas no sul do país, após pouco encontrar em Sete Povos das Missões, com os templos e a imaginária destruídos depois da Guerra Guaranítica, vai ao Paraguai, onde traços marcantes ainda existem nas missões locais. Pertinentemente ilustrado, o livro é extraordinário por seu todo. À resenha que escrevi, publicada no “Cultura” de “O Estado de São Paulo” (nº 215, ano IV, 22/7/84, pág. 10), Eduardo Etzel, aos 78 anos, escreve-me carta de Minas Novas (28/7/84), onde estava a fim de estudar mais profundamente Anjos e Divinos na Arte Sacra do Brasil: “Palavra que até chorei… Sempre tive a impressão de ser marginalizado pela nossa ‘inteligentzia’ que não me levava a sério. Você botou os pontos nos ii e registrou o fato. Sem modéstia acho que foi justo e preencheu uma expectativa que para mim era necessária.”
Poder-se-ia afirmar que, nos três derradeiros livros sobre Arte Sacra Brasileira, Etzel penetra profundamente temáticas enraizadas em nossa cultura: Nossa Senhora do Ó. História-Iconografia-Características Brasileiras (São Paulo, Bovespa, 1985, 79 págs.), Anjos Barrocos no Brasil – Angelologia (São Paulo, Kosmos, 1995, 92 págs.) e Divino – Simbolismo no Folclore e na Arte Popular (São Paulo, Kosmos, 1995, 180 págs.). No primeiro, como afirma, estuda “a fascinante iconografia de Nossa Senhora da Expectação, também chamada do Ó, a Virgem Mãe às vésperas do nascimento de Jesus Cristo”; no segundo, aprofunda-se na simbologia dos anjos na Arte Sacra Brasileira, investigando a curiosa dualidade relativa à feitura erudito-popular, assim como a presença do masculino e do feminino dessa manifestação em nossa imaginária; no Divino, documenta largamente, através da História, o culto permanente à terceira pessoa da Santíssima Trindade. Foi um prazer ter sido convidado por Eduardo Etzel para escrever o Prefácio, finalizando-o: “ Desconhecer a contribuição de Eduardo Etzel, única no desvelamento dos segredos que cercam a criação sacro-popular brasileira, é negar o conjunto monolítico mais expressivo e enriquecedor de nossa literatura específica. A partir dele, as trevas que envolviam a criação sacro-popular estão a se dissipar. E sempre há a esperança….”

Eduardo Etzel: an account of my friendship with Eduardo Etzel, thoracic surgeon, psychiatrist and humanist, who introduced me to the universe of the Brazilian religious art. A summary of each of the books he wrote on this subject.