A Interpretação Inefável

Jean Doyen

Aujourd’hui je n’ai pas su résister à l’appel
de ces visions que je voyais flotter, à mi-profondeur,
dans la transparence de ma pensée.

Marcel Proust

The reward of a thing well done is to have done it.
Ralph Waldo Emerson

Muitos dos mais importantes pianistas do século XX foram franceses e tiveram a formação no país de origem, pois a França se notabilizou igualmente pela quantidade expressiva de grandes professores, a maior parte, diga-se, pianistas relevantes. Se considerarmos que há lacunas quando se faz uma listagem, nomear alguns desses intérpretes excepcionais, já desaparecidos, é a evidência da tradição enraizada desde o século XIX. Marguerite Long (1874-1966), Blanche Selva (1884-1942), Alfred Cortot, nascido na Suíça, mas considerado francês (1877-1962), Yves Nat (1890-1956), Marcelle Meyer (1897-1958) (vide post Marcelle Meyer), Yvonne Lefébure (1898-1986), Robert Casadesus (1899-1972), Jacques Février (1900-1979), Vlado Perlemuter, naturalizado francês (1904-2002), Jeanne-Marie Darré (1905-1999), Jean Doyen (1907-1982) (vide www.musimem.com, seção “Biographies”), Lelia Gousseau (1909-1997), Monique Hass (1909-1987), Monique de la Bruchollerie (1915-1972), Ginette Doyen (1921-2002), Samson François (1924-1970) e tantos outros testemunharam, ao longo de trajetórias substantivas, a qualidade da interpretação pianística em França.
Neste ano comemora-se o centenário de Jean Doyen. Já aos nove anos de idade entra para o Conservatório de Paris, onde, entre seus principais professores, teve a orientação pianística dos lendários Louis Diémer e Marguerite Long. Em 1922, recebe o primeiro prêmio dessa Instituição de Ensino, iniciando carreira como pianista três anos após. Tendo realizado paralelamente cursos de composição, recebeu em 1937 o prêmio Gabriel Fauré. Ao suceder Marguerite Long como professor de piano no Conservatório de Paris, permanece no Estabelecimento de 1941 a 1977.
Possivelmente Jean Doyen tenha sido um dos pianistas de maior repertório no século XX. Vladimir Horowitz tinha admiração pelo intérprete. Apresentou integrais dos principais compositores sacralizados e também redescobriu e apresentou em première: Variações sobre um tema de Don Juan, de Chopin, Fantaisie sur un vieil air de ronde française, de Vincent d’Indy, Trois Dances, de Samazeuilh, e muitas outras obras. A atividade pedagógica intensa levou-o a orientar legião de pianistas, entre os quais Marie Thérèze Fourneau, Philippe Entremont, Claude Kahn, Artur Moreira Lima. Como professor, sempre respeitou a personalidade de seus discípulos e seu gosto pessoal – não imposto – era, contudo, apreendido naturalmente por seus alunos. Só não fazia concessões quanto ao rigor estilístico das obras em estudo. Sob outra égide, a índole não voltada aos holofotes tenha, possivelmente, distanciado-o da mídia voraz. Apesar da freqüência das apresentações, sobretudo na França, não houve por parte do pianista a atração pela chamada grande carreira internacional. Porém, suas gravações atestam inalienável qualidade interpretativa, onde profundo refinamento e absoluta compreensão estilística dão, aos registros que ficaram, plena noção das características essenciais de sua execução. Clareza, uso econômico de pedalização, sentido natural da agógica (flexibilização nos andamentos) na excelência de seu emprego tornaram ímpares as suas fixações sonoras. Intérprete da tríade essencial da música francesa do período, representada por Gabriel Fauré, Claude Debussy e Maurice Ravel, sua gravação da integral para piano de Fauré (Erato-Le Piano Français) reflete o que se poderia entender como uma leitura absoluta, verdadeiro modelo para os pósteros. Nenhum exagero. A virtuosidade, quando presente, apresenta-se como um meio apenas, e os tempi por Doyen eleitos estariam sempre a traduzir a inefabilidade do conteúdo faureano. Se a sua interpretação revela um estilo definido, poder-se-ia acrescentar que não há desvio arbitrário a agradar parcela do público, mas que conduziria à possível distorção.
Em meados de 1959, eu estudava sob a orientação de Marguerite Long e Jacques Février. Solicitei à extraordinária professora a mudança do “professor assistente” e a mestra indicou-me Jean Doyen. Poderia assegurar ter tido a maior empatia com o grande pianista e professor. Foram três anos em que não houve o mínimo desentendimento. As aulas eram dadas em sua residência e sempre em uma sala com dois pianos, pois o mestre exemplificava todas as suas intenções executando de maneira absoluta qualquer passagem, fosse ela a mais complexa. A cada semana recebia aula de Marguerite Long ou de Jean Doyen, alternadamente. Uma obra de grande fôlego tinha de ser preparada e memorizada quinzenalmente. Esse tour de force obrigava-me, por vezes, a 10 horas de estudos diariamente. Sem jamais ultrapassar os limites do bom entendimento, o professor explicava com nitidez todos os aspectos estruturais da obra e, sob o prisma da praticidade, tinha sempre o dedilhado adequado para as passagens mais complexas. Se pedia ao mestre interpretar a obra que o jovem aluno de então estava a estudar, com prazer a obra fluía de seus dedos, e sempre de cor. Recordo-me de duas perguntas a ele feitas e das respostas sem qualquer empáfia. A uma primeira, relacionada ao número de concertos para piano e orquestra que apresentara, respondeu-me que foram cerca de 60. A uma segunda, sobre sua prodigiosa memória, disse-me que por várias vezes aprendera, durante viagem de trem, determinada peça desconhecida para ele até então, a fim de tocá-la de cor em um recital já programado, ou seja, sua experiência se daria durante a apresentação. Os extraordinário Walter Gieseking e Claudio Arrau, basicamente coetâneos, tiveram igualmente esse dom raro. Estou a me lembrar de que um dia levei a Jean Doyen a Tocata, de Camargo Guarnieri, pois teria de dar um recital de música brasileira. Antes que eu a executasse, pediu a partitura, leu-a em pé em poucos segundos, sentou-se ao piano e a interpretou impecavelmente no andamento proposto pelo compositor, obedecendo a todos os sinais da dinâmica, da articulação e da agógica. Atônito, eu apenas virava as páginas. Ao finalizar, sorriu e disse com a maior naturalidade: “C’est amusant. Assez difficile. Un beau morceau”.
Nesse período, com ele estudou o colega e amigo Moreira Lima, que o admirava igualmente. Lembrávamos constantemente de uma frase do mestre, quando este sentia um toque mais superficial: “Enfoncez vos doigts”. Como explicava Jean Doyen, o som tem que ter vida, mesmo nas passagens em baixíssimas intensidades.
Ficaria sempre a imagem do grande músico. A ele devo imenso tributo, graças à competente didática pianística e ao estímulo. Seria possível entendê-lo na abrangência, através da relação que Jean Doyen mantinha com a vida, onde os espaços estavam solidamente estruturados: do pianista, do professor, da família constituída de mulher e filha, todos em plena harmonia. Amálgama completo. Geneviève (1944-2004) seguiria os passos de seu pai, ao tornar-se pianista e, sobretudo, professora.
Em Tempo de Concerto da USP-FM, 97.3, (www.radio.usp.br), no programa Idéia, Criação e Interpretação, estarei a apresentar a integral para piano solo de Gabriel Fauré, assim como a Ballade para piano e orquestra interpretadas por Jean Doyen. A programação se estenderá de Setembro até as duas primeiras semanas de Outubro, sempre às terças-feiras às 22 horas. Futuramente, apresentaremos obras para piano solo e os Concertos para piano e orquestra de Maurice Ravel, as Variações Sinfônicas de Cesar Franck e as Valsas de Chopin, em versões inefáveis de Jean Doyen.

In 2007 we celebrate the birth centennial of Jean Doyen (1907-1982), who ranks amongst the greatest keyboard virtuosi of the XXth century in France. He taught at the Paris Conservatoire and also gave private piano lessons, forming a multitude of pianists, myself included. With a prodigious memory, he had an extensive repertoire, encompassing sacralized composers and contemporary ones as well. His recordings testify to the excellence of his performance: clear, elegant playing, subtle use of pedals, sense of agogics and a style of his own, with no need of over-playing that, though well received by the audience, may lead to distortions. Unpretentious, accessible, not a bit showy, Jean Doyen has not received from the media the recognition that a performer with his accomplishments would deserve. An outstanding pianist, teacher and man, I consider his recordings as jewels that all music-lovers should know.