Navegando Posts publicados em dezembro, 2008

Diferença que Faz Toda Diferença

Magma descendo as encostas.

Tempo bem empregado
curto parece.

Adágio açoriano

Nos dias que precedem o fim de mais um ano, sempre tenho a impressão de ver e sentir as pessoas mais apressadas, possivelmente em busca de soluções que não podem ultrapassar o dia 31 de Dezembro, hipotética data limite. Seria provável supor que, mais pela vida estressada do que pela euforia salutar, uma agitação contamina os estertores do ano. Caminhava em direção ao nosso canto de conversas (Vide Nélson, o Sábio, Nosso Cantinho Possível, 25/04/07), quando aluno da Universidade subia a minha rua. Após cumprimentos amistosos, perguntou-me o porquê de não mais ir ao Departamento. Expliquei-lhe a respeito da aposentadoria e de outros direcionamentos na minha vida musical, assim como novas janelas que se abrem alegremente nesta terceira idade. Indagou-me ainda se estava bem, e falei-lhe de minhas corridas. Contou-me que continuava os estudos regimentais sem problemas maiores e que estava esperançoso quanto ao futuro. Almejei-lhe o melhor.
Convidei-o a seguir, para alongarmos nossa conversa em casa. É sempre bom sentir o pulsar mental dos jovens. Aspirações, projetos e sonhos fazem parte da vida do estudante consciencioso. Através dele captamos a realidade presente e é impossível não lembrar de nossa juventude. Não tendo sido meu aluno individual, pouco contacto tive com o discípulo; portanto, nosso diálogo foi muito profícuo, pois inédito e pleno de interessantes reflexões. Em determinado momento falamos do tempo do compositor e aquele do intérprete. Como estamos a findar o ano, o tempo torna-se quase pleonasmo entre os assuntos. Contudo, o da criação e aquele da interpretação são configurações dentro do palpitar maior do tempo do calendário e merecem um pormenorizar. Mensurações quanto aos resultados nas duas categorias.
Tenho, há mais de vinte anos, externado a minha posição relacionada à transitoriedade do intérprete, sendo ele um corredor de prova de revezamento, e o compositor, um maratonista de percurso sem fim. Paradoxalmente, o compositor tem prazo fixo para a conclusão de uma obra, mesmo se considerada for aquela da contemporaneidade, o work in progres. Maior ou menor, esse tempo é real. Se determinadas composições podem ter representado muitos anos para a criação, outras como o Oratório Messias de G.F. Haëndel (1685-1759) ou os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky (1839-1881) foram escritas em semanas. Obra finda, ela fica fixada no papel pautado, e estará à disposição do intérprete. Se esse tempo finitus do compositor teve prazo limitado e certo, o mesmo não se dá com o tempo da edificação de uma composição pelo intérprete. Este, para que a obra se mantenha viva em sua memória e em sua atividade de instrumentista, tem de visitá-la com freqüência, o que tornará seu contacto com a criação do compositor muitíssimo mais longo do que aquele do próprio autor. Considerando-se a extrema facilidade de compor de Mozart (1756-1791) ou Schubert (1797-1828), que produziram muito e viveram pouco, certamente o contacto deles com o que era escrito durava pouco. Quando ouvi em DVD o grande pianista Mieczyslaw Horzowsky (1892-1993) aos noventa e tais anos executando no Carnegie Hall de Nova York a Sonata em ré maior (K.576) de Mozart, fui levado à reflexão dos tempos do compositor e do intérprete. Qual não foi a dedicação do pianista, durante décadas, para que essa Sonata se mantivesse plena em seus dedos? Quantas horas não desfilaram através dos decênios, a fim de que a criação de Mozart tivesse a interpretação ideal? No âmbito do autor, qual teria sido a duração exata da composição dessa Sonata? Tempo e tempo a refletirem a insondável compreensão de concepções frente à obra. Quantos milhares de pianistas já se debruçaram incontáveis horas durante suas existências para a manutenção em seu repertório desta bela Sonata e de quantidade imensa de tantas outras composições !
Pertinentemente, o aluno perguntou-me sobre o sentido de propriedade de obra concluída. Esse tema tem sido exaustivamente trabalhado em artigos, livros, tratados e, mais recentemente, em teses acadêmicas. Contudo, depois da composição finda e divulgada, passa ela a ser – obedecendo-se legislação que “protege” durante décadas sua “propriedade” – de domínio público. Ao intérprete cabe perpetuá-la, estudando-a convenientemente para apresentação, gravação ou puro entretenimento pessoal. Integrando doravante seu repertório, a obra aprendida será reestudada sempre que tiver de ser executada. Contando-se as vezes dessa imprescindível retomada, no caso de reapresentações ou gravação, tem-se a desmesurada proporção a separar o tempo da feitura e o da reprodução musical através da interpretação.
Veio por parte do aluno uma outra pergunta a levar ao pensar: “Professor, esse tempo real e presente na vida do intérprete tem sempre as mesmas características?” Ledo engano, comentei. Através da trajetória do instrumentista, o tempo da maturação, da transformação para o aperfeiçoamento, ou até para o desleixo, que também pode ocorrer, determina uma outra concepção de mensurabilidade. Estamos em permanente mutação ocasionada por fatores os mais variados. Seria lógico entender que a obra que faz parte de nosso repertório também sofra esses impactos. “Quais impactos” indagou-me? Em princípio não há mutações abruptas, assim como dificilmente o que nós somos no nosso de profundis sofre fortes alterações. Contudo, elas existem. No campo da interpretação, podemos modificar uma forma de respirar o discurso musical, no caso específico do pianista, mudanças de fraseado, de dedilhado que descobrimos mais cômodo após tantos anos e motivado muitas vezes pela própria transformação física de dedos e mãos. No campo pessoal e no musical, são os acúmulos de experiências vividas, verdadeiras salvaguardas para um músico. Tudo isso compreendendo outro debruçamento naquele período destinado à preparação de uma composição há tanto tempo a fazer parte de nosso repertório. Estudo onipotente e onipresente.
“Mas, professor, as alterações quanto à interpretação não poderiam também distanciar profundamente o executar de um pianista nas fases extremas de sua carreira?”, questionou-me o aluno. À pergunta arguta, respondi-lhe que não necessáriamente. Há em cada um de nós, intérpretes, idiomáticos de toda a sorte. Como exemplo, a minha gravação de Doumka de Tchaikowsky realizada em 1962 ao vivo no Conservatório de Moscou, tem muitíssimos elementos que fazem parte da minha interpretação hoje. Não a renego de forma alguma. Reconheço sim, que meu DNA lá está. Preferências quanto ao fraseado, às flutuações dinâmicas, ao gosto pelos baixos e pela respiração, à anima, persistem. Impressões digitais indeléveis. Cito esta peça, pois após quarenta e tais anos vou apresentá-la quando de minha tournée pela Bélgica em Fevereiro próximo. Aliás, tive o prazer de tocá-la para o aluno. Uma coisa certamente não mudou, ou seja, o meu encantamento pela obra.

Gêiser projetando-se nas alturas.

E voltamos à idéia inicial, que mostra a criação, quando finda pelo compositor, metaforicamente uma espécie de erupção que cessa. “Erupção?”, interrompeu-me o jovem. Sim, respondi-lhe. O que mais não é o fluxo criativo do que o magma, essa substância ígnea que está nas profundezas da crosta terrestre e que é projetada para o exterior através de um vulcão, serpenteando incandescente pelas encostas da montanha em direção ao mar ou à planície? Ao emergir dos abissais subterrâneos para o exterior, fixando-se a seguir no solo ou mergulhando nas águas, transformar-se-á em rocha magmática e a perenidade se concretiza. Temos a metáfora em sua plenitude, pois a idéia que flui do cérebro de um compositor pode ser comparada a essa pasta que sai do interior da Terra e que se torna material sólido doravante. Nós, intérpretes, e aí reside uma das magias de nossa atividade, estaremos sempre a lidar com a criação terminada para o autor, mas em permanente ebulição em nossa mente. Diria, uma outra categoria de erupção. Se a composição seria esse magma consistente e firme, não seria a interpretação, em outra comparação voltada à erupção, um gêiser, esse esplendoroso jato fervente que em fluxo constante ou periódico sai do sub-solo e se projeta lindamente nas alturas, a ocasionar um alumbramento para nossa visão? Sempre em transformação. A missão do intérprete tem essa “aura” extraordinária, sendo a certeza do revezamento um fato inequívoco, pois um instrumentista será fatalmente sucedido por outro, que preservará a composição petrificada mas viva. Processo contínuo.
Conversamos outros assuntos, e despedimo-nos cordialmente. Como disse a ele que o teor de nossa conversa, que fluiu mercê do encaminhamento dos temas, iria certamente para um post a ser inserido no blog, o jovem realmente curioso e inteligente apenas pediu-me, ao sair, que não colocasse o seu nome, pois não era meu aluno. Não senti qualquer aspecto de descortesia de sua parte, simplesmente entendi. Respeito sua vontade.

Gilberto Mendes e J.E.M. Tempo do compositor e tempo do intérprete. Foto Jorge Mateus, Santos, 18/12/08. Clique para ampliar.

Exemplo claro vivi dias após. Ao visitar meu dileto amigo Gilberto Mendes, nosso mais importante compositor erudito vivo, aos 18 de Dezembro, em Santos, ao piano discutimos sua última criação, Largo do Chiado, que deverei apresentar em primeira audição absoluta no mês de Maio em Portugal. Naqueles instantes, outro amigo, Jorge Mateus, fotografava a junção dos tempos: o do compositor que findara naquele dia a obra e o do intérprete que doravante teria outros tempos para manter a peça em seu repertório.
Fim de mais um ano. Foi bom refletir sobre tempos outros que não aquele do inexorável calendário. Nem por isso deixo de nele pensar, aproveitando essa aproximação de mais um ano, para enviar ao meu fiel leitor os votos sinceros de paz e saúde.

Some considerations on the time needed by a composer to create a complete piece of music, by an interpreter to keep the composer’s work alive and also on time as marked on the calendar, measuring the passage of events and announcing the arrival of a new year.

Clique para ouvir Doumka, de P.I. Tchaikowsky, com J.E.M. ao piano, gravação ao vivo no Conservatório de Moscou durante o 2o Concurso Internacional de Piano Tchaikowsky – Abril de 1962.

“O Jardim das Fadas”

São José tenta compreender. Catedral de Autun, França, Séc. XII. Clique para ampliar.

“Cristo nasceu para nós, vinde adorá-lo!
– Aproximai-vos fiéis, correi triunfantes a Belém
para adorar o Rei dos Anjos que acaba de nascer!
–O esplendor eterno habitou a carne.
Vimos o Deus Menino envolto em panos.”

A aproximação do Natal sempre nos leva a reflexões. Quão distantes estamos da comemoração interiorizada sentida pela grande maioria da cristandade através dos milênios. A mercantilização das últimas décadas, em crescente geométrico, anestesia desideratos voltados ao nascimento de Jesus. Ele é comemorado na essência por tantos cristãos espalhados pelo mundo, mas observado por outros mais como uma data do calendário em que a corrida às compras é prioritária. Ouço o rádio e, como um nefelibata, aguardo o impossível, pois as estações de maior audiência entrevistam comerciantes e compradores. Rarissimamente a imprensa focaliza a causa da comemoração do Natal, sendo mais importante para ela o fluxo da 25 de Março e seu mar de consumidores do que a essência essencial da Natividade, os instantes místicos em que uma manjedoura abrigou o menino Jesus.
Estou a me lembrar de duas situações separadas por tantos séculos de diferença. Não continuaria, hoje, São José atônito com a triste realidade? Escultores do século XII realizaram a obra-prima que é a Catedral de São Lázaro em Autun, na Borgonha Romana, em França, e um sobressaiu-se através da maestria e da identificação: Gislebertus, que assinaria o nome e mais Hoc Fecit no tímpano do Cristo Ressuscitado, sendo também autor de diversos capitéis. Um destes chamou-me a atenção em 1959, quando visitei o templo extraordinário durante um longo e inesquecível dia de visitação: St. Joseph médite et cherche à comprendre. A mão direita do Santo a sustentar a cabeça. Que intuição mística teve o escultor que entendeu a dimensão da Natividade! O mistério a levar São José a refletir. O que estaria a pensar? Extraordinária figura de José, o carpinteiro esposo de Maria, que, segundo o Evangelho de São Mateus, soube compreender o apelo do Anjo do Senhor. Em sonho, o Arcanjo revelou-lhe que ele nada teria a temer, pois o menino que estava por nascer fora concebido do Espírito Santo, atribuindo ao bom homem a tarefa de dar o nome de Jesus à criança que viria ao mundo.
Em 1973, passando por Cambuí, em Minas Gerais, parei para tomar um café. Qual não foi o meu espanto quando um escultor popular, que vendia suas criativas peças em barro cozido, apresentou-me um presépio despojado, entre outras mais esculturas espalhadas no meio da calçada. A Natividade lá estava representada em sua síntese: José, Maria, o Menino Jesus e a manjedoura. Antes de adquiri-lo, indaguei-lhe o porquê de São José estar com a mão fechada sob o queixo. Respondeu-me, em sua ingenuidade, que certamente o Santo estaria a pensar: “O mundo nunca mais será o mesmo.” Esse presépio sempre me despertou perplexidade. Tantos séculos a separarem Gislebertus de nosso escultor popular que deixou apenas suas iniciais, ZJ, e as do Estado, MG! Tanta identidade que o tempo apenas estaria a dimensionar! Que fluxo mágico a ligar o pensamento de dois artistas!

Presépio popular, barro cozido, autor ZJ, Minas Gerais, 1973. Clique para ampliar.

No Natal de 2007 inseri um bonito e simples conto de D. Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu (Vide Velho Natal – Um Conto Singelo, 22/12). Ao ler o texto sobre Dito Pituba (Vide Pesquisa de Campo – Entendimento Através das Entranhas, 27/09/08), a minha dileta amiga, professora e competente gregorianista portuguesa Idalete Giga, escreveu-me que estava a pensar em um conto que seria dedicado às minhas netas. Ao lê-lo, entendi associações generosas de uma alma sensível. O texto atravessou o oceano via internet, e é com o maior gosto que eu o publico em meu blog, não sem antes desejar um Natal vivido na intensidade a todos os leitores que me prestigiam semanalmente. Que os miúdos tenham acesso à delicadeza desse conto escrito para eles… e para nós também, cristãos ou não.

“O Jardim da Fadas”

“Era uma vez um menino chamado Edu, que vivia numa linda cidade com seus pais e irmãos. Edu gostava muito de sua cidade, onde havia parques cheios de árvores, lagos com cisnes e nenúfares, flores de todas as cores, relvinha verde, baloiços, cavalinhos de montar e escorregas. Edu brincava todos os dias no parque com seus amiguinhos e amiguinhas. Mas o que ele mais gostava era de visitar seu avô Pituba, que morava muito, muito longe, no grande Vale de Abipará, pertinho de um lugar encantado que ele chamava de Jardim das Fadas. Quando chegava a Primavera, o Jardim das Fadas ficava todo iluminado. Em todo o Jardim havia flores mágicas, que brilhavam durante o dia e brilhavam ainda mais durante a noite. Havia também libelinhas azuis, renas, corças, cavalos de crina branca, girafas de pescoço comprido e muitos outros animais, tão pequeninos que só as Fadas os podiam ver. O avô Pituba conhecia todos os segredos do vale de Abipará e toda a magia do Jardim das Fadas. Pituba era um sábio. Inventava e construía brinquedos mágicos. Quando Edu ia visitar seu avô, pedia-lhe sempre um brinquedo diferente. E também o acompanhava nos passeios ao Jardim das Fadas. Era só neste Jardim que os brinquedos tinham magia. Por isso, era nele que Edu gostava de brincar e experimentar todos os brinquedos inventados pelo avô. Tinha um cavalinho de madeira que podia voar, uma linda bailarina que rodopiava no ar, um palhacito que tocava saxofone, e uma bandinha de música com a Branca de Neve e os Sete Anões. Cada anãozinho tocava um instrumento muito engraçado. Bastava que Edu segredasse baixinho uma palavra mágica ao ouvido da Branca de Neve, para que os anõezinhos começassem todos a tocar seus instrumentos.
Um belo dia, Pituba construiu um brinquedo muito especial para oferecer a Edu no dia de seu aniversário. Inventou um pianinho que tocava sozinho. Mas para que pudesse tocar, Edu tinha de cantar uma canção. Quando Edu cantava , o pianinho começava a tocar sozinho a mesma canção. Admirado com esta maravilha, Edu perguntou ao avô: – Vôvô, porque é que o pianinho sabe a minha canção e está tocando sozinho?
O avô Pituba, pegando na mão de Edu, respondeu-lhe: – Meu querido netinho, se você fechar os olhos e disser três vezes: ‘quero ver quem está tocando no meu pianinho’, vai ter uma bela surpresa! Mas tome atenção! Para que o pianinho não perca a magia tem de lhe cantar nova canção.
E assim foi. Edu ficou tão feliz que logo inventou esta canção:

Corre, corre, cavalinho
Voa, voa, sem parar
Leva-me ao Jardim das Fadas
Pois é lá que quero brincar !

O avô gostou muito da canção. Logo que chegaram ao Jardim das Fadas, Edu fez tudo direitinho como o avô lhe dissera. Então, fechou os olhos e viu seu pianinho subindo, subindo, subindo devagarinho até ficar suspenso no ar. De repente, viu aparecer uma linda Fada, que começou a tocar a canção do ‘Corre, corre cavalinho’ com a sua varinha mágica. Edu ficou tão contente que começou a falar com a Fada: – Olá, querida Fada! Como é seu nome?
A Fada parou de tocar, olhou carinhosamente para Edu, ficou um bocadinho em silêncio e respondeu: – Chamo-me Princesa da Luz.
- Ah! Já sei! É você que acende as estrelas do céu, à noitinha? – Perguntou Edu.
A Fada sorriu, deu-lhe um beijinho, escreveu no ar a palavra SIM com a sua varinha mágica e desapareceu.
Edu abriu os olhos e foi logo contar ao avô o que tinha acontecido.
-Vôvô, já sei quem toca no meu pianinho! É a Fada Princesa da Luz que também acende as estrelas do céu, à noitinha!
Pituba pegou Edu no seu colo e segredou-lhe baixinho: – Que bom ter falado com a Fada Princesa da Luz! Agora, tenho outra surpresa para você. Mas desta vez só pode abrir o presente quando chegar a casa, combinado? -Sim, vôvô!
Ao chegar a casa dos pais, Edu estava muito curioso e correu logo para seu quarto . Ao retirar o papel que embrulhava o presente, viu uma caixa com uma linda rena desenhada na tampa e pensou: – Ah, deve ser uma rena mágica que o vôvô construiu para eu brincar na noite de Natal. Então abriu a caixa e dentro dela estavam outras caixas mais pequeninas. Cada uma tinha um pedacinho de chifre da rena que mais parecia de um boneco articulado. Edu foi juntando e montando pacientemente, uma a uma, as várias peçinhas. Era um jogo muito engraçado!
Então, qual não foi o seu espanto quando viu que não era um boneco , mas Santo António com o Menino Jesus ao colo! Porém, faltava uma peça. Faltava a cabecinha do Santo. Edu pensou que a tinha perdido e começou a chorar.
Fechou os olhos e viu de novo a Fada Princesa da Luz que lhe disse: – Não chores querido Edu! Vôvô se esqueceu de colocar a caixinha que falta e me pediu para a dar a você.
E levantando sua capa azul transparente retirou a caixinha que estava junto de seu coração e a deu a Edu. Quando Edu a abriu com muito cuidado, lá estava a cabecinha de Santo António. Assim, pôde completar o lindo presente do avô Pituba.

Santo Antônio. Imagem atribuída a Dito Pituba (1848-1923). Chifre, 8cm. Clique para ampliar.

Passaram muitos, muitos anos. Hoje, Edu é um famoso pianista, conhecido em todo o mundo. Santo António com o Menino ao colo ficou, para sempre, o Santo protector de sua família. Quando olha para ele recorda com muita saudade o avô Pituba, o Vale de Abipará, os longos passeios ao Jardim das Fadas, todos os brinquedos mágicos de sua Infância e nunca, nunca mais esqueceu a linda Fada Princesa da Luz.” Paço d´Arcos, 30/Out./2008.

O leitor terá a plena compreensão da dimensão de Idalete Giga, autora do conto tão sutil, ao ouvi-la dirigir o Coro da Capela Gregoriana Laus Deo, em um belíssimo canto gregoriano a louvar a Natividade: Christus natus est nobis, venite adoremus.– Adeste fideles, laeti triumphantes: venite, venite in Bethlehem. Natum videte Regem Angelorum.– Aeterni Parentis splendorem aeternum: velatum sub carne videbimus: Deum infantem pannis involutum.

Clique para ouvir “Christus Natus Est”, com o Coro Capela Gregoriana Laus Deo, sob a direção de Idalete Giga.

It’s Christmas season once more and random thoughts wander through my mind: commercial interests transforming the date into a secular holiday with its celebration of materialistic consumerism; two intriguing images of St. Joseph – distant 800 years in time – depicting the saint engrossed in thoughts, with a hand under his chin; Christmas stories. I want to include as the last post of 2008 a story written for my grandchildren by Idalete Giga, a very dear friend, teacher and Gregorianist living in Portugal. Though not exactly a Christmas story, it is suitable for the season. It’s entitled “O Jardim das Fadas” (The Fairy Garden). And to remind us all of the Nativity, readers of this blog can listen to a chant sang by the Laus Deo Gregorian Chapel Choir conducted by Idalete Giga.

A Permanência Através de Horizontes Desbravados

Felicja Blumental e J.E.M. 1955. Foto José da Silva Martins. Clique para ampliar.

E mar vai em vôo aberto
já pássaro aventureiro
para as descobertas.

Maria Isabel Oswald Monteiro

Os intérpretes que perduraram através dos tempos têm características bem próximas quanto à freqüência repertorial. Compositores foram privilegiados, a partir de tendências de cada instrumentista. Afinidades, escolas onde estudaram, países de origem, aspectos sociais e culturais, raça, todos são fatores que tendem a determinar orientações que se consolidam através da carreira do intérprete.
Se considerarmos o século XX, talvez o grande século do piano, verificaremos que a grande maioria dos pianistas que permaneceram na história interpretaram basicamente o chamado grande repertório tradicional. Agentes ou empresários, público, comparações influenciaram essa constância. Exceções existiram, a tornar mais significativa a continuidade post mortem de pianistas que entenderam que caminhos outros estavam a apontar horizontes absolutamente inéditos. A divulgação intensa dessa categoria de pianista poderia ocorrer, valorizando sensivelmente aqueles poucos que persistiram pelas sendas do repertório qualitativo esquecido e que hoje são lembrados através da competência exercida e da necessidade de se conhecer a produção extraordinária do passado, que ficara submersa por propósitos tantas vezes estranhos.
Em posts anteriores focalizei dois pianistas exemplares que primaram pela ação repertorial inusitada, apesar de terem perpassado parte considerável do repertório tradicional (vide Marcelle Meyer – A Redescoberta Merecida, 06/03/07 e Jean Doyen – A Interpretação Inefável, 31/08/07). A curiosidade, nos casos citados, fruto de ação voluntária, sem a mínima interferência de agentes voltados ao lucro, resultou, após o desaparecimento dos ilustres intérpretes, no redescobrimento, que hoje nos espanta, de acervo valiosíssimo da criação para piano. Revelou-nos ainda a inteligência desses instrumentistas na escolha seletiva, pois nesse repertório pouco freqüentado há muita obra sem interesse.
O centenário de nascimento de Felicja Blumental, nascida em Varsóvia aos 28 de Dezembro, deve ser comemorado. Trata-se de uma das grandes damas do piano do século XX. Estudou no Conservatório da cidade com professores importantes como Zhigniev Drzewiecki, Karol Szymanowski e Josef Turczynski. A adversidade oriunda da 2ª Grande Guerra acabou trazendo-a ao Brasil, onde permaneceu alguns anos. Tornou-se cidadã brasileira, realizou extensas tournées pela América Latina, regressando posteriormente à Europa, a continuar sua esplêndida carreira. Faleceu no dia 28 de Dezembro de 1991 em Tel Aviv. No ano de 1999, seu nome seria definitivamente incorporado ao Festival de Música de Tel Aviv, promovido pelo Museu de Arte da cidade israelense.
Felicja Blumental é uma dessas intérpretes maiúsculas, que soube entender todos os períodos. Se foi pianista a apresentar largamente o repertório tradicional, entendeu outra mais a sua missão e redescobriu autores, estimulou compositores no sentido de criarem obras para que apresentasse em público, privou da amizade de músicos e pintores ilustres, o que revela a essência de sua rica personalidade cultural. Suas gravações dos Cinco Concertos para piano e orquestra de Beethoven e das Mazurkas de Chopin atestariam sua competência. Gravou sessenta concertos para piano e orquestra, sendo que seus registros fonográficos daqueles compostos por Czerny, Field, Ries, Paisiello, Stamitz, Hummel e Hekel Tavares testemunham a freqüência ao repertório inusitado. Villa-Lobos dedicou-lhe seu 5º Concerto para piano e orquestra, Krzysztof Pendereki a Partita para cravo e orquestra, Witold Lutoslawski orquestraria suas Variações sobre um tema de Paganini para a pianista, que as apresentou em primeira audição. Destaquem-se igualmente as interpretações de obras para piano solo de autores pouco visitados: Clementi, Kuhlau, Viotti, Hoffmeister, Rimsky Korsakof (Quintetos com piano) e tantos outros.
Nos anos 50, a ilustre pianista freqüentou várias vezes a casa de meus pais. Sempre acompanhada de seu marido, Markus Mizne, Felicja Blumental encantava-nos, após o jantar, com a apresentação de algumas peças de seu repertório. Fascinava-me o seu tocar elegante, jamais buscando efeitos virtuosísticos vazios. João Carlos e eu tocávamos obras que estávamos a estudar e, após, Blumental tecia comentários de rara competência. Bem mais tarde, entendi sua mensagem de 1º de Agosto de 1954 em português fluente, deixada naquilo que denominávamos “livro de ouro”, depositário de outros depoimentos mais de notáveis artistas e que me foram tão encorajantes ao longo da trajetória. Meu irmão e eu conservamos os nossos livros. Escrevia ela nas minhas páginas que “ o exibicionismo aniquila a Arte verdadeira”. A sua execução buscava a beleza do som: “Beleza não se aprende, pode-se aperfeiçoá-la”, mais uma das frases de seu escrito. Outras mais, relativas à interpretação do jovem que eu era, preconizavam conceitos que me acompanham até hoje. Quando de meu recital aos 10 de Dezembro de 1954 no Teatro Colombo em São Paulo, lá estava a insigne artista a contemplar o estreante com um desenho realizado durante o evento. Guardo-o com o carinho devido. Meses antes retratara João Carlos quando de sua primeira apresentação no mesmo local. Mais honrado fiquei ao receber Felicja Blumental Portraits, editado pelo The Felicja Blumental International Music Festival at the Tel Aviv Museum of Art em Maio de 1999, com retratos da pianista realizados por artistas como Tsugouharu Foujita, Juan Pons, Kees Van Dongen, Erwin Dom Osem, Rémusat, Mané-Katz, Michonze, entre outros. Por sua vez, traçou ela em desenhos firmes Arthur Rubinstein, J. Heifetz, Oskar Kokoschka, Picasso, Chagall, Pendereki e outros ilustres amigos. Essa faceta de Felicja evidencia a imensa generosidade da artista.

Felicja Blumental, desenho de J.E.M. com esferográfica vermelha.10/12/54. Clique para ampliar.

Certa noite em que veio com Markus Mizne jantar em casa de meus pais, ofereceu-me um LP gravado em Londres para o selo Decca, quando pela primeira vez ouvi obras de Carlos Seixas, o notável compositor barroco conimbricense. Dela receberia igualmente as partituras dos cravistas portugueses. Sua interpretação absoluta ao piano impressionaria o redescobridor de Carlos Seixas e um dos maiores defensores do cravo, Macarius Santiago Kastner, que escreveria em 1953: “Fiquei encantado ao encontrar em Felicja Blumental a maravilhosa intérprete dos Cravistas Portugueses, que executa essa música com a real compreensão de estilo, com a alma e grande entendimento do som e da proporção”. É surpreendente que o notável Kastner se tenha submetido ao fascínio da interpretação ao piano de um repertório ainda reivindicado na época calorosamente pelos adeptos do cravo. Tão forte foi o impacto que aquele LP me causou que em 2003 gravaria na Bélgica, igualmente ao piano, dois CDs inteiramente dedicados às sonatas de Seixas. À Felicja Blumental prestei publicamente minha homenagem de gratidão quando de meu recital na Biblioteca Joanina em Coimbra, nas comemorações do tri-centenário de nascimento de Seixas em Junho de 2004.

Soirée Musical em São Paulo, 1954. Em pé, da esq. p/ dir.: Magda Tagliaferro, Madalena Lébeis e Felicja Blumental. Foto de meu pai José da Silva Martins. Clique para ampliar.

Louve-se a atitude da Concerto – Guia Mensal de Música Erudita – ao oferecer aos seus assinantes o CD Música Portuguesa com execuções de Felicja Blumental, integrando a série Música de Concerto de Clássicos (www.concerto.com.br). A organização dispões de outros CDs da intérprete. Destaque-se igualmente o empenho de sua filha, a cantora Annette Celine, radicada na Inglaterra, que tem feito revelar aos ouvintes as inexcedíveis interpretações da mãe ilustre (www.branarecords.com).

CD Música Portuguesa, pianista Felicja Blumental. Kees Van Dongen, óleo. Clique para ampliar.

Felicja Blumental continuará a ser lembrada e a servir de exemplo, a demonstrar que através da inteligência e da fina sensibilidade pode o intérprete conhecer caminhos novos, descortinar horizontes insondáveis antes, assim como, na busca do inusitado, tornar-se realmente o artista a desempenhar a missão integral.
Meus agradecimentos à Annette Celine, por ter generosamente autorizado a inserção neste post de faixa do mencionado CD Música Portuguesa, contendo a bela interpretação de Felicja Blumental da Sonata em fá menor de Carlos Seixas.

Clique para ouvir Felicja Blumental ao piano, tocando Carlos Seixas: Sonata em fá menor.
Faixa extraída do CD “Felicja Blumental – Música Portuguesa”, Clássicos Editorial MC009, lançado pela Revista Concerto.

This year we celebrate the birth centennial of Felicja Blumental (1908-1991), one of the most accomplished pianists of the 20th century. Born on 28 December in Warsaw, Poland, she left Europe shortly before the outbreak of World War II to escape the growing anti-semitism and settled in Brazil for some years, becoming a Brazilian citizen. In the early 1950s she returned to Europe, where she continued her brilliant career. I was fortunate to know Felicja personally. In the 1950s she was a frequent guest at my father’s home in São Paulo. My brother João Carlos and I, teenagers at the time, listened in silent awe to her elegant and restrained performances and she was generous to listen to the two piano students, leaving her comments in the visitors’ book (our so called “golden book”). I still keep it with her wise and encouraging words written in fluent Portuguese. What fascinates me more with Felicja Blumental is her ability to choose from various musical periods. While she was greatly admired for her interpretation of the conventional repertoire, she also recorded many seldom played concertos and solo piano pieces of a remarkable diversity of composers, contemporary works – many written specially for her – of notable 20th century musicians, Spanish and Portuguese Baroque composers. A true pathfinder, surveilling and fostering the piano literature from the past and the present. On one occasion in my father’s house she offered me a LP she had recorded in London with sonatas by the Portuguese Baroque composer Carlos Seixas on the piano. It was the first time I heard them. So strong was the impression of her performance on me that in 2003 I would record in Belgium two CDs with Seixas’ Sonatas, also on the piano. Her lifelong commitment to music, intellectual depth and extensive body of works remain an inspiration to many classical music performers around the world, myself included. My thanks to the singer Annettte Celine for the permission to include in this post Carlos Seixas’s Sonata in fa minor played by her mother, Felicja Blumental.