Origem de Fascinante Envolvimento

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Enquanto Rameau
não ocupar o lugar ao qual tem direito
entre os maiores mestres,
a história da Música do século XVIII e
através dos séculos não terá sua total orientação.

Georges Migot

Ao mencionarmos Rameau a muitos frequentadores de concertos em nossa cidade, a grande maioria sabe de sua existência e pode até lembrar-se de uma única peça para teclado, Tambourin, que ainda é dedilhada em conservatórios. Não se produz Rameau em nossas salas. E de pensar que sua importância para a ópera tem a dimensão daqueles grandes compositores do século XIX eternamente interpretados. Sempre os mesmos. O autor da epígrafe, compositor de méritos, observaria, referindo-se ao teatro sinfônico e lírico dos séculos XVIII, XIX e XX: “O inovador foi incontestavelmente Rameau ao renovar a concepção da harmonia, mas a obedecer à mais perfeita organização dos segmentos”. O Traité de L’Harmonie Réduite à ses Principes Naturels, magistral livro em que o teórico Rameau fixa as bases da harmonia, teria influência decisiva sobre as estruturas musicais até o alvorecer do século XX. Claude Debussy, admirador incondicional do compositor, escreveria: “Rameau mostra o caminho pelo qual passará toda a harmonia moderna; e falhou, talvez, ao escrever suas teorias antes de compor as óperas, pois seus contemporâneos acharam ocasião para concluir a inexistência de toda a emoção em sua música”. E nesse ponto preciso reside toda a apreciação pública que persiste, ainda, em entendê-lo preferencialmente como teórico. Debruçar-se sobre o extenso catálogo de Rameau revelará um dos mais líricos mestres da história da Música. Mas, necessário se faz ouvir suas obras, apresentá-las nos teatros e nas salas de concerto. Estaria propenso o Sistema a mudar conceitos?
No post anterior mencionei o descortino que se abriu à pianista chinesa Zhu Xiao-Mei ao conhecer as Variações Goldberg, de J.S.Bach: “foi o encontro musical de minha vida.” Esse “estalo”, lembrando-me do Padre Antônio Vieira, acontece e, quando com ele nos defrontamos, a revelação se dá.
Em 1967 completava três anos sem me aproximar do piano por decisão pessoal, a buscar entender o possível sentido da música em minha existência. Ao regressar da França após anos a estudar em Paris, sentia que os programas das temporadas musicais se apresentavam tradicionais sob o aspecto repertorial e os primeiros passos da música na universidade eram ainda tênues. Casei-me e, para a sobrevivência digna, dediquei-me a outra área, comercial, onde permaneci longos anos. Ao visitar minha saudosa prima Lourdes Gandra em Ribeirão Preto durante o sepulcral silêncio sonoro que perdurava por três anos, encontrei-a a preparar o jantar. Após congraçamento sensível pediu-me para que fosse até seu estúdio, a fim de verificar alterações que fizera. Lourdes era dedicada professora de piano. Em sua biblioteca havia uma quantidade de pocket books contendo partituras fundamentais. Peguei com curiosidade a obra completa de Jean-Philippe Rameau. Sentei-me em frente ao piano e comecei a ler. Algo extraordinário se passou a partir do momento em que meus olhos e dedos liam e percorriam o Prélude do 1er Livre de Pièces de Clavecin (1706). O arrojo, a noção maior da dissonância – grande ousadia -, a construção excepcional do compositor de gênio em seus 23 anos de idade subjugaram-me. Na minha juventude já ficara encantado com a magistral interpretação das criações de Rameau pela excelsa pianista Marcelle Meyer (vide Marcelle Meyer 1897-1958 – A Redescoberta Merecida, 06/03/07). Dedilhei outras peças e, após o jantar, percorri o trajeto até o hotel e custei a dormir. Algo confuso ocorria, dizendo-me que jamais deveria ter parado. Só mais tarde senti que foi necessária a interrupção, a fim de que dúvidas não mais pairassem. O interregno, hoje entendido benéfico, fez com que o obstáculo maior referente à eterna repetição repertorial fosse enfim transposto. Doravante escolheria aquilo de que gostasse, quase sempre a preferenciar o qualitativo inusitado. Aquela pequena parcela de uma ponta do iceberg, friso, diminuta porção, eternamente sacralizada e repetida, poderia ser visitada, mas distante estaria de meus objetivos futuros. Quando frequentada, atenderia a projeto temático individual. E assim se deu. Essa opção rigorosamente pessoal distanciou-me de empresários e de determinadas programações rotineiras. Na realidade, cada intérprete sabe o que decidir, assim deveria ser, ao menos.
Ao retornar aos meus estudos a visar a edificação de algumas integrais, pontificou inicialmente Jean-Philippe Rameau, a chama que me indicou o caminho. Diria, o “estalo” de minha vida musical. A função de representante comercial deixada há tantas décadas dava-me tempo suficiente, àquela altura, para os estudos pianísticos e a leitura de incontáveis tratados e livros sobre música. Diria que foi uma das mais importantes fases de minha vida quanto ao aprofundamento voluntário e solitário sob a égide da Música e da Cultura. Estou a me lembrar que aos 24 anos, prestes a regressar ao Brasil, temeroso, perguntei à minha professora, a lendária Marguerite Long, sobre o meu incerto futuro pianístico. Colocou sua mão sobre meu ombro e disse que o que aprendera naqueles anos, sem quase nenhum contato com o Brasil, a não ser as cartas familiares semanais, dava a ela a certeza de que a mensagem musical fora transmitida num amplo leque repertorial e sobretudo estilístico, competindo só a mim o desenvolvimento em meu país. Assim se deu.

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Estudava a obra para teclado de Rameau e lia com respeito seus tratados teóricos. A insistência de Rameau quanto ao contributo imenso das fundamentais, sons de sustentação, foi determinante para a minha concepção interpretativa da obra do Mestre de Dijon e do repertório pianístico como um todo. A grande revelação que foi a obra para teclado do grande compositor surtiria o primeiro efeito em 1971, quando apresentei a integral em dois recitais no Auditório Itália, em São Paulo. O saudoso amigo e sensível pintor Theodoro Meirelles captaria, em desenho, um instante de uma das récitas. Em 1983, ano do tricentenário de nascimento de Rameau, apresentei novamente a obra completa para teclado na Temporada da Sociedade de Cultura Artística. Outros tempos aqueles do saudoso Alberto Soares de Almeida, entusiasta planejador das temporadas da tradicional Sociedade. Em Lisboa, no belo Teatro São Luiz, a integral seria repetida e constou no catálogo de efemérides do Ministério da Cultura da França.

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Estava a gravar em Sófia no ano de 1996 um CD a homenagear Villa-Lobos e tributos a ele prestados por vários importantes compositores do Brasil e do Exterior. Num dos intervalos da gravação na magnífica Sala Bulgária, no isolamento quase que absoluto, toquei por puro prazer várias peças de Rameau. Sem que eu soubesse, Heiner Stadler e o saudoso Athanas Bainov, que cuidavam do registro Villa-Lobos, estavam a ouvir na cabine de som. Veio o convite para a gravação da integral que se realizou em 1997 com o apoio decisivo de meu querido irmão João Carlos. Bainov impressionar-se-ia com os 5.000 e tantos mais ornamentos contidos nessa criação de período monárquico e magnificente! Para a realização da ornamentação Rameau criou uma tabela, a visar, sua resolução precisa. Apenas em 2001 seria lançado pela De Rode Pomp na Bélgica o álbum a conter os dois CDs dedicados à integral de Jean-Philippe Rameau para teclado. O ilustre François Lesure (1923-2001) aconselhou-me a incorporar à gravação o que de mais significativo existia nas transcrições que o autor realizou de sua ópera-ballet Les Indes Galantes, entre as quais a Ouverture e a magnífica Chaconne.
É com imenso gosto que verifico a acolhida da Clássicos Editorial para com essa gravação da obra de Jean-Philippe Rameau para teclado. A apresentação de algumas de suas extraordinárias criações será no recital do dia 21 deste mês na sala de câmara da Sala São Paulo, antes da sessão de autógrafos. Revisitar Rameau tem um significado de catarse. Retorno ao Grande Mestre, como aquele que entende estar diante de um iluminado. É pena que a repetição repertorial persista em nossas salas de concerto, os mesmos autores sempre ouvidos em suas obras mais conhecidas – outra ponta de iceberg – e a permanecerem como opção básica para intérpretes. Nada a fazer, pois as mentes deveriam ser trabalhadas.
O texto do encarte dos CDs Rameau já está à disposição do leitor no item Essays de meu site. Inclui a significativa apresentação de François Lesure, a explicar que não há mais nenhum sentido no debate cravo-piano. No seu entender, o que importa é o estilo do intérprete.

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O post sobre Rameau, devido ao lançamento dos CDs neste 21 de Novembro, manteve numa lista de espera outros textos que sairão em momentos defasados. Estão eles no meu baú mental. Contudo, o passar do tempo equalizará todos os temas, pois importa a intenção deste que insiste em escrever ininterruptamente todas as semanas, a entender o ato uma respiração. A experiência em Goiás durante uma semana intensamente musical seguida pela Maratona de Revezamento no lendário autódromo de Interlagos, Santa Cecilia sob o olhar terno vertido em conto por Idalete Giga e mais o artista da Hiper Super-Ação, Evilásio Cândido, estarão a fluir como as águas que descem os rios.

Clique nos links para ouvir três peças de Jean-Philippe Rameau constantes dos CDs a serem lançados:

Prélude
Air pour Borée et la Rose
Gavotte et doubles

On 21 November my double album with the complete keyboard works of J.P. Rameau will be released in São Paulo. This post focus on the origin of my interest in Rameau’s works. By clicking the links below readers may listen to 3 pieces of the album, including the sober and extraordinary Prélude (1706), the root of my fascination with the composer.