Navegando Posts publicados em janeiro, 2010

Gestual Econômico a Valorizar Texto-Música

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Carlos do Carmo na Casa de Portugal de São Paulo. Foto JEM. Clique para ampliar.

Sou trova da madrugada,
Poema do Sol desperto
Numa guitarra trinada.
E o jeito seguro e certo
Que foi raiz encontrada:
Memória de mim tão perto.

João Manuel Mendes (Fado dos meus Fados)

Reiteradas vezes comentei a respeito do gesto e de seu impacto. Quando entrevistado por Joseph Horowitz, o grande pianista Claudio Arrau (1903-1991) abordaria o tema. Aos cinquenta e tais anos percebeu que seus gestos ao tocar em público eram excessivos. Refletiu muito e chegou à conclusão de que haveria a necessidade de diminuí-los sensivelmente. Para o insigne pianista estava em causa a própria música. Arrau doravante transmitiria apenas a essência sonora e o gestual tornou-se econômico. Suas interpretações ganhariam, a partir de determinada idade, a aura da inefabilidade.
Haveria duas básicas categorias de intérpretes frente ao gesto e, nessas, nuances quanto à flexibilização dos movimentos corporais como um todo. A ausência do gesto supérfluo pode levar à síntese da exteriorização, a estar o processo inteiramente voltado à carga integral que emana da mensagem musical. Sob outra égide, movimentos excessivos, quando voluntários, estariam a evidenciar a atração nítida do intérprete pelo palco no intuito de obter o delírio da platéia. E a música em sua essência, onde realmente ela se situa, neste último caso?
Convidado pelo distinto amigo António Júlio Machado Rodrigues, dinâmico Presidente da Casa de Portugal, minha mulher e eu assistimos, após a belíssima ceia de Natal na tradicional sede da comunidade lusíada, a uma extraordinária apresentação de Carlos do Carmo, o nome mais representativo do fado desde a morte da inesquecível Amália Rodrigues. Louve-se a sensibilidade do Presidente da Casa ao trazer a São Paulo, mais uma vez, o extraordinário artista. O recital do fadista, que se fez acompanhar por excelentes guitarristas, deu-se logo após a música circunstancial e descartável que tivemos de ouvir, quando um conjunto “musical” entendeu que o limite auditivo tinha de ser transposto, e os decibéis estratosféricos fizeram-me recorrer a tampões nos ouvidos. Infelizmente, essa prática “sonora” invadiu quase todas apresentações em festas, casamentos, formaturas…
Ao adentrar o palco, Carlos do Carmo dirigiu-se ao público e calmamente pediu silêncio absoluto durante sua apresentação. Foi atendido e, somente após cada fado, portugueses e descendentes aclamavam o cantor. Conhecia-o através de vários CDs que conservo com carinho, mercê de meu afeto pelo gênero fado, mormente cantado com qualidade ímpar. Carlos do Carmo emociona cidadãos de todas as classes e músicos eruditos submetem-se ao seu fascínio. O musicólogo Rui Vieira Nery já me havia, bem anteriormente, mencionado as qualidades excepcionais do artista, presenteando-me com CDs do cantor. Em seu excelente livro sobre o fado (vide Para uma História do Fado Origens e Trajetória, 23/02/08), Vieira Nery escreve: “Será, depois de Amália, o primeiro fadista a assumir de forma inequívoca uma vontade de passagem do Fado do recinto ‘típico’ exclusivo para os espaços de difusão ocupados pelos demais gêneros da canção urbana”. Por sua vez, o compositor António Victorino D’Almeida, em entrevistas a Paulo Sérgio dos Santos, insiste sobre suas virtudes inalienáveis, comparáveis aos nomes referenciais do canto. Seus comentários dão a dimensão do grande fadista: “E cito-lhe desde a Maria Callas, ao Frank Sinatra, ao Carlos do Carmo… São vozes incríveis. O Placido Domingo, o [José] Carreras, a Amália Rodrigues, a Edith Piaf… Coisas assim… Mas a Edith Piaf não era tanto a voz, a Edith Piaf estava sempre um pouco desafinada. Ao Sinatra compreendo que lhe chamassem ‘The Voice’. O Carlos do Carmo é outra voz assim, não é? E dentro duma certa forma de cantar, com a voz não preparada, são das maiores vozes que alguma vez ouvi” (António Victorino D’Almeida conta 50 anos na Música a Paulo Sérgio dos Santos. Portugal, Quimera, 2005, 340 pgs.). Acrescentaria, entre cantores da música popular, Bing Crosby, Nat King Cole, Charles Aznavour, Tony Bennett e Elis Regina.

Carlos do Carmo na Casa de Portugal de São Paulo. Foto JEM. Clique para ampliar.

Ainda não tinha visto Carlos do Carmo em cena. Vários impactos se produziram.
Primeiramente, a escolha do repertório. Impecável. Fados primorosos, muitos deles com textos de grandes poetas portugueses e alguns de autores brasileiros. Uma garantia. Em outra percepção, musical preferencialmente, observa-se no tratamento da composição um esmero absoluto. Nada é supérfluo e a frase musical e o texto, num perfeito amálgama, associam-se irremediavelmente. Carlos do Carmo, nesse trato da melodia, consegue transmitir a respiração texto-música e tantas vezes recorre a suspensões – momentos inefáveis em que apenas as ressonâncias são “subjetivamente” entendidas. Essas pausas ou silêncios vêm sempre precedidas da preparação adequada e da sequência que faz entender métrica, sentido do texto e a frase musical em sua elasticidade agógica. Diria que, em termos musicais, tem Carlos do Carmo o sentido pleno daquilo que na música é denominado rubato, liberdade que se dá ao movimento de uma frase, sem contudo perder-se a essência do ritmo. Sob aspecto outro, possui o artista o domínio das gradações sonoras, e finais de fados arrebatadores têm a precedê-los a ascensão calculada, bem cuidada, de um mestre. À medida que me encantava com a bela récita do fadista, observei que a palavra distração – possível em apresentação de mais de uma hora ininterrupta – não teria nenhum sentido, mercê da força da transmissão. O público irmanou-se e, a pedido do cantor, quase que em sua totalidade acompanhou-o no refrão de Lisboa, menina e moça.
Nos intervalos entre os fados, comentava com meu dileto amigo Vital Vieira Curto a respeito daquilo que é essencial. Quem realmente é não necessita de artifícios. O gestual tão comum e exagerado em tantos cantores populares, que não poucas vezes se utilizam de vestimentas extravagantes, dá lugar à sobriedade, à economia dos gestos, à elegância no trajar. Diria que a atitude de artistas que entendem a mensagem musical como prioridade reflete o mais absoluto respeito ao público. Carlos do Carmo apresenta-se com gestual parcimonioso. Por vezes, as mãos indicam intenções relativas à tradução texto-música, outras vezes o colocá-las nos bolsos evitaria movimento desnecessário. Mesmo quando desce do palco, a fim de melhor se identificar com a platéia, permanece sóbrio na gesticulação. Todos se concentram naquilo que é transferido com total competência.

Júlio Rodrigues, Presidente da Casa de Portugal de São Paulo, JEM e Carlos do Carmo. Foto Regina Martins. Clique para ampliar.

Ao findar o belo espetáculo, Júlio Rodrigues levou-me até Carlos do Carmo. Externei-lhe minha admiração, a ratificar-lhe essas suas qualidades, raras na música erudita, raríssimas na popular. O excepcional fadista asseverou-me que era assim que entendia a transmissão da música. Noite para não ser esquecida.

Ao acessar o Youtube videos Carlos do Carmo, o leitor poderá ouvir fados de seu repertório.

Some days ago I attended a show of the great fado singer Carlos do Carmo in São Paulo. Charmed by his elegance, the restraint of his gestures, his impeccable choice of repertoire and subtle control of tempo for expressive purposes, I was led to reflect on the issue of the essential and the superfluous in art. Carlos do Carmo is outstanding in a casual and effortless way, holding the audience in the palm of his hand without theatrical performances. His priority is to convey his musical message with competence, not to display extravagant versions of himself. A quality rarely found in classical music performers, even rarer in pop singers. A night not to be forgotten.

A Pureza de um Autor

Posso afirmar que envelhecer assim
‘combatendo o bom combate’
não é ruim…
Envelhecer com vida e garra
é para quem merece !

Norberto de Moraes Alves

Torna-se mais acentuada a diferença entre o que deve ser lido, ouvido, visto pelo cidadão no entender da mídia, em comparação ao que pensa parcela surda e operosa que produz e assimila à margem da divulgação. Quando a mídia incensa determinado autor, seja qual for o seu valor, imediatamente o cidadão que lê, ouve e assiste a teatro, filmes ou TV corre para sentir o odor do incenso, seja este especiaria ímpar, ou simples resina qualquer a queimar. Foi assim no passado e perpetua-se em ascensão geométrica no presente. Basta uma excentricidade ou inovação, duvidosa ou não, e determinado autor é eleito pelo público. Todavia, espalhados pelo planeta, escritores, poetas, pintores, escultores e compositores ainda reverenciam modelos execrados pela modernidade “criativa” ou pelos adeptos do modismo forjado.
Por serem menos conhecidos, autores “ocultos” pareceriam entender situações. Uns se conformam, outros retêm uma tristeza notória e outros mais convivem com a realidade e continuam a produzir no mais autêntico sentido vocacional. Entre tantos, há inúmeros com real valor e que pelas mais variadas razões jamais foram procurados pelos meios de comunicação. Esse fenômeno não acontece só sob a guarida do cada vez mais inclemente sol tropical. Autores que se notabilizam – tantas vezes ungidos artificialmente – aqui e alhures acham-se no direito de tudo dizer, de opinar como arautos, e infinidades de absurdos e arbitrariedades são proferidos em entrevistas, sob a égide de mitos reais ou forjados. Mais deprimente quando a “fama” veio outrora e, durante o resto da existência, o autor prossegue em obras recorrentes. Em todas as categorias da Cultura. O grande público, sem captar o engodo, tem a certeza de estar diante da “verdade”.
Em nosso país, figuras notáveis estão a produzir cultura ainda à “antiga”, mas num universo criativo sensível, distante de modismos efêmeros. O tema surgiu após novas visitas a Bragança Paulista. Tenho conhecido figuras que me sensibilizam. Durante aproximadamente duas décadas permaneci quase que isolado nos “meus” bancos da Praça José Bonifácio, ou no quarto no Grande Hotel Bragança, a fim de escrever artigos para publicações arbitradas no Exterior, ou ouvir material gravado na Bélgica que seria convertido em CDs, respectivamente. Pouco a pouco, figuras humanas extraordinárias cruzaram meu caminho e, se continuo a visitar Bragança Paulista, basicamente pelos mesmos motivos, haverá sempre o congraçamento com essa gente generosa da cidade.
Os bons amigos, Hugo e Rosana, da Hughes Mens Wear, estabelecimento junto à praça mencionada, apresentaram-me a Norberto de Moraes Alves, escritor e poeta de Bragança Paulista. Iria dar um recital na cidade, mas previamente o querido casal presenteou-me com um livro de Norberto. Sensível dedicatória do autor enriquecia a obra. Após o recital, o escritor e poeta oferece-me outros dois livros. O simples folhear, já no Hotel, causou-me interesse. Após a leitura das três obras contendo contos, poesias e crônicas, tive a sensação de leveza. Norberto é um puro e escreve amorosamente. Percebe-se que o autor tem prazer em narrar suas experiências, fértil imaginação na criação de contos diversificados em seus temas e uma veia poética sensível e inteligível.
Acompanhá-lo em três livros que se estendem pela primeira década deste século é apreender a vocação autêntica dirigida aos textos curtos, de síntese, que captam a própria essência do episódio. A condução dos contos é realizada com maestria e os personagens integram a narrativa de maneira homogênea. São participantes efetivos durante o desenrolar da trama.
As Flores da Lua (Piracicaba, Degasperi, 2001, 140 p.) tem prefácio da filósofa Marilena Chauí que, ao comentar dois contos, entre outros, escreve: “Se sorrimos, às vezes, e nos emocionamos, outras vezes, também não podemos deixar de perceber a crítica social que se desenha em filigrana em contos como ‘Bicho de pé’ – o mundo feito e desfeito num intervalo eleitoral – e ‘Momento de decisão’ – a vida destroçada por uma economia que despreza a terra e sua gente”. Acrescentaria o conto A Herança, nítida posição frente à vida e à posição social, mormente entre membros de uma mesma família.
Norberto de Moraes Alves tem o dom de fazer crítica sem perder a elegância da escrita ou o controle dos personagens. Bons e maus, justos e injustos, nesses breves contos não se degladiam ferozmente. Permanecem num antagonismo quase que discreto, exceção ao conto Fidelidade, que tem como cenário fazenda do século XIX e onde a tragédia vai impor-se de maneira absoluta, mercê de trama a envolver paixão, adultério, brancos e negros. Em outros contos, o autor, que ao ingressar no magistério público em plena Serra da Bocaina, precisamente em São José do Barreiro (Vale do Paraíba), sofreria efeitos do linguajar do povo simples existente nessa extensa região, entrega aos personagens essa fala do caipira e do caboclo. Demonstra virtuosidade nessa configuração que perpassa alguns contos. Em outros, como Capaiz !!!, Um fato insólito e O Cordeiro de Deus, Norberto de Moraes Alves trata de maneira hilariante as narrativas, e um humor incisivo seduz o leitor. Há por vezes, na condução dos contos presentes nesse livro e em Sopro de Ternura, certa proximidade com os Contos da Montanha, do extraordinário escritor português Miguel Torga. Se em Torga as descrições que envolvem humor ou tragédia estariam a revelar densidade na escrita – peculiaridade do autor – e estilo a proporcionar ao leitor a sua detectação, em Norberto Moraes Alves uma descontração, um quase divertir-se ao escrever, percorre os textos. Mas é a presença, nesses breves escritos de ambos, do homem da pequena aldeia ou do campo em seus afetos e idiossincrasias que merece ser apreendida.

Em Quintal dos Sonhos (Bragança Paulista, Barletta, 2007, 112 p.), o poeta cria imagens líricas plenas de singeleza. Tocam fundo. Distante de qualquer tendência modernista, Norberto prefere falar direto à sensibilidade de cada leitor. Poemas expressivos, diáfanos, diria até puros na plena acepção da palavra, revelam o que o autor é na realidade. Se em Insegurança versos captam esse estado:

“Quando quero falar de amor
e não encontro a palavra exata,
navego em pensamentos
qual indecisa fragata,
enfrentando o mar revolto
a ponto de naufragar” ;

se em Pesadelo:

“A dor se fez sofrimento
sem tempo de despertar” ;

ao versar Sobre a Inspiração, a luminosidade se dá:

“Inspiração
é qual arpejo,
de melodia
que atravessa
as nuvens
de um sonho.
São acordes
de um lamento
de saudade
e de desejos.
Entregue-se,
navegue por ela
mesmo que
por um só
momento…”

Ao escrever Sopro de Ternura (Bragança Paulista, ABR, 2009, 126 p.), Norberto retorna aos poemas e contos, a criar novas imagens e personagens. Os belos versos de A Rosa e a Eternidade são exemplos:

“A rosa não se perpetua
pela forma, pela cor
ou pela nobreza da flor
da qual é revestida,
mas pela pétala
que flutua,
deixando que o aroma,
aos poucos, no tempo se dilua
e busque no infinito
a semente…
de todo o sempre.”

Humor e tragédia se intercalam no segmento destinado aos contos, e Le Due Sorelli e O Anjo de Asa Quebrada são exemplos, respectivamente. Algumas breves crônicas, geralmente a homenagear entes queridos que partiram para a outra margem, encerram o livro.
Norberto de Moraes Alves é esse puro que encontra na pena o exteriorizar sentimentos que as novas gerações estão sendo induzidas a sufocar. Sua escrita fica como um farol que, ao ser visto, proporciona ainda salvaguardas para a existência.

On one of my visits to the city of Bragança Paulista I had the privilege of knowing the writer Norberto de Moraes Alves, who lives in the city and offered me three of his books. In this post I give an account of my reading, completely captivated by the lyricism of his poems and the simple elegance, conciseness and imagination of his short stories.

Visitá-lo em Prazo Certo

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Gil na tarefa de desbastar cabelos. Clique para ampliar.

Barba ensaboada,
meio rapada.

Adágio açoriano – S. Miguel

Um de meus primeiros posts para o blog abordou o livro Postais Paulistas, de Frederico Branco (vide Frederico Branco – A Revisitação das Imagens Perdidas, 09/03/07). Em uma das crônicas, Muito além do Vesúvio, o autor descreve velha barbearia que costumava frequentar. Não esquece nenhum pormenor e, bem mais tarde, ao referir-se a uma mais moderna, observa com certa nostalgia que “não se fazem mais barbeiros nem salões como os de antigamente. Nem clientes, como verifiquei há dias”. A descrição que Frederico Branco faz é exata se comparada àquela que mensalmente frequentava minha mente na infância. Tratava-se de uma garagem adaptada com azulejos brancos, situada bem próximo de nossa casa na Avenida Rodrigues Alves, na Vila Mariana, onde vivemos até o final da juventude.

Oficina de peruqueiro-barbeiro. França, século XVIII. Enciclopédia Diderot.

A profissão de barbeiro é muito antiga e foi-se transformando com o passar do tempo. Teve requintes no século XVIII em França. O ofício popularizou-se com o passar das décadas, a fazer parte do cotidiano. Curiosamente, no interior do Brasil, aquele que fazia o corte de cabelos e barba exercia, quando necessário, a função de “dentista”. Um boticão ajustado a um dente que estava a provocar dor, e a extração se dava. Quando de minhas incursões em busca da imaginária paulista nos anos 70-80, na região que se estende de Santa Isabel a Nazaré Paulista, no Estado de São Paulo, encontrei em um chiqueiro uma estranha cadeira completamente partida. Como andava sempre de botas naquelas ocasiões, adentrei o velho galpão, chafurdando naquela massa mole e informe, e retirei todas as partes dessa cadeira. Observei que havia resquícios de palhinha da India. A anciã, que habitava a casa simples coberta por sapé e bem próxima ao chiqueiro, disse-me que seu pai e seu avô haviam sido barbeiros e extraíam dentes. Quis saber mais e a idosa contou-me que, antes da extração, jovens ou velhos tomavam uma caneca de pinga e que, ainda menina, era a encarregada, quando ouvia o seu nome, de levar a aguardente já preparada para ser engolida de um só trago. Disse-me ainda que o pai de uma de suas comadres, que morava a tantas léguas de sua casa, desempenhara igualmente a profissão de barbeiro. Naquele mesmo dia encontrei, pois, duas cadeiras, sendo que a última estava inteira, sem palhinha, mas com uma tábua qualquer pregada, a fim de que se pudesse sentar. Serviu contudo como modelo para as restaurações que foram realizadas em São Paulo por um excelente especialista que conheci nos anos 70, Luca Miranda. Verificamos tratar-se de cadeiras de barbeiro da segunda metade do século XIX. Elegantes e funcionais, possuem um encosto regulável para a cabeça, o que proporcionava maior conforto para o freguês.

Cadeiras de Barbeiro. Século XIX. Clique para ampliar.

Todavia, foi no século XX que entre nós surgiram essas pequenas barbearias que cuidavam rotineiramente do corte de cabelos e do cuidado com a barba. Barbeiros tinham rara habilidade, nesse último caso, no manuseio da afiadíssima navalha, que ao menor descuido causava estragos, só não maiores graças ao álcool Zulu sempre à mão do profissional. Imperava a cadeira Ferrante, alta, confeccionada em ferro fundido e com a marca em letras grandes no repouso para os pés, também em ferro. Presentemente elas têm design bem diferente. Até hoje lembro-me do instrumental do barbeiro de minha infância, um descendente de imigrantes portugueses. Na minha memória ficaram tesouras comuns ou de desfiar da famosa marca Solingen; pentes de osso; bombinha a servir como vaporizador humidificante; pequena máquina manual que chegava a arranhar o pescoço e que servia para cortar com precisão pêlos os mais recalcitrantes; loção Sandar com perfume bem popular que, quando sobre a mesinha do profissional, tinha três camadas coloridas e que, antes de ser utilizada, era agitada pelo barbeiro, ficava turva e servia para o cidadão aplicar vigorosa massagem capilar; e finalmente, o talco. O corte para o miúdo, adolescente e jovem daqueles tempos era bem comum, sem nenhum sentido de esmero maior. Importava ao barbeiro desbastar o que crescera rapidamente em um mês e receber o que lhe era devido. Quando aguardávamos atendimento, revistas bem velhas serviam para fazer passar o tempo e um jornal esportivo estava à disposição. A conversa tinha como temas política e futebol, e já àquela altura a corrupção grassava. O aparelho de rádio permanecia ligado, ou dando notícias ou a tocar música popular brasileira do período.
Pertencente à classe dedicada ao trabalho que pode variar na intensidade, mercê da frequência dos clientes, geralmente o barbeiro é muito bem informado. Ouve, bem mais do que lê, e dificilmente não está atualizado quanto ao cotidiano, graças à diversidade cultural dos fregueses. Esse barbeiro de antigamente é cada vez mais raro e subsiste nos bairros, na periferia e nas cidades do interior. Profissional geralmente bem estimado pelos frequentadores. Infelizmente, o termo barbeiro, com a chegada das casas especializadas que atendem homens e mulheres, passou a ser quase que pejorativo. Atualmente nas grandes cidades, os barbeiros preferem ser denominados hairdressers ou hairstylists, e os estabelecimentos aos quais pertencem têm fachadas atraentes. Redes existem em que é notória a presença desses especialistas, não apenas mais jovens, mas também uniformizados. Como ainda pertenço às tradições, frequento os mesmos barbeiros e tanto Samuel como Gil conservam o estilo à antiga no corte e no trato. Isso me reconforta quando vou à poda dos cabelos, que teimosamente ainda cismam em crescer. Lembro-me que durante a quimioterapia, quando quase tudo veio abaixo, Samuel podava uns poucos fios desorganizados e insistia em receber apenas metade do preço tabelado.

Instrumentos de trabalho do Sr. Gusmão, pai de Uyara. Clique para ampliar.

O tema veio a propósito de uma conversa com meu amigo e vizinho Uyara. Disse-me que encontrara os instrumentos que seu pai utilizou durante décadas, pois barbeiro em São Sebastião do Paraíso (MG). Daí a estendermos recordações foi fácil. Frisou que seu Gusmão lhe dizia que o melhor couro para afiar navalhas era o de Anta, pois a lâmina deslizava com maciez. Meu saudoso pai também desempenhara a função de barbeiro durante a mocidade na cidade de Braga, em Portugal. Um de seus fregueses, Lourenço dos Santos, que mantinha uma casa comercial importante – Casa das Novidades -, convidou-o a vir morar e trabalhar em seu estabelecimento, o que ocorreu entre 1918-28, quando nosso progenitor veio tentar a vida no Brasil, amando Portugal, mas sem jamais retornar ao torrão natal. No entanto, durante toda a existência manteria correspondência com Lourenço e descendentes, a demonstrar gratidão eterna.

JEM a cortar cabelos de um menino. La Querye, França, 1960. Clique para ampliar.

Em texto bem anterior já mencionara minhas incursões no corte de cabelos, difícil tarefa para um leigo (vide La Querye – Férias Inesquecíveis, 09/02/08). Naqueles sempre lembrados 1960-61, quando das férias no departamento de Allier, na França, “exerci” a função de barbeiro à antiga, e miúdos filhos de meus amigos submeteram-se ao coiffeur improvisado. Se pratiquei calamidade em um dos cortes, a provocar um caminho de rato que consegui nos dias subsequentes, a duras penas, tornar menos evidente, safei-me razoavelmente nesse mister que era praticado ao ar livre. A foto, não publicada no post La Querye, foi encontrada recentemente dentro de um livro que estava a consultar. De jaleco típico, estou cuidando de um dos cortes. DNA? Só bem mais tarde soube dos predicados profissionais de meu pai, como barbeiro que foi durante alguns anos da sua mocidade.
Se incontáveis profissões podem jamais cruzar a vida dos cidadãos, a de barbeiro é uma das que o homem não pode prescindir, mesmo quando a devastação capilar se apresenta evidente. Subsistirá, e é motivo a mais, simples e tranquilo, para uma boa conversa descompromissada e periódica. Após a poda, a visualização através do espelho será a prova de que o barbeiro, geralmente mantido na fidelidade durante anos, trabalhou bem e merece o nosso agradecimento.

On Barbering and Barbers:
The starting point of this post was a chat with a friend, who mentioned his father had been a barber. It made me think about the ancient profession of barbering, the barbershops of my youth – walk-in salons with their arsenal of razors, scissors, brush, bone combs, after-shave lotions, antique barber chairs – and the high-end salons of today, with their teams of usually young uniformed professionals trying to accommodate tradition with modern practices, as fashion and trends evolve.