Gestual Econômico a Valorizar Texto-Música
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Sou trova da madrugada,
Poema do Sol desperto
Numa guitarra trinada.
E o jeito seguro e certo
Que foi raiz encontrada:
Memória de mim tão perto.
João Manuel Mendes (Fado dos meus Fados)
Reiteradas vezes comentei a respeito do gesto e de seu impacto. Quando entrevistado por Joseph Horowitz, o grande pianista Claudio Arrau (1903-1991) abordaria o tema. Aos cinquenta e tais anos percebeu que seus gestos ao tocar em público eram excessivos. Refletiu muito e chegou à conclusão de que haveria a necessidade de diminuí-los sensivelmente. Para o insigne pianista estava em causa a própria música. Arrau doravante transmitiria apenas a essência sonora e o gestual tornou-se econômico. Suas interpretações ganhariam, a partir de determinada idade, a aura da inefabilidade.
Haveria duas básicas categorias de intérpretes frente ao gesto e, nessas, nuances quanto à flexibilização dos movimentos corporais como um todo. A ausência do gesto supérfluo pode levar à síntese da exteriorização, a estar o processo inteiramente voltado à carga integral que emana da mensagem musical. Sob outra égide, movimentos excessivos, quando voluntários, estariam a evidenciar a atração nítida do intérprete pelo palco no intuito de obter o delírio da platéia. E a música em sua essência, onde realmente ela se situa, neste último caso?
Convidado pelo distinto amigo António Júlio Machado Rodrigues, dinâmico Presidente da Casa de Portugal, minha mulher e eu assistimos, após a belíssima ceia de Natal na tradicional sede da comunidade lusíada, a uma extraordinária apresentação de Carlos do Carmo, o nome mais representativo do fado desde a morte da inesquecível Amália Rodrigues. Louve-se a sensibilidade do Presidente da Casa ao trazer a São Paulo, mais uma vez, o extraordinário artista. O recital do fadista, que se fez acompanhar por excelentes guitarristas, deu-se logo após a música circunstancial e descartável que tivemos de ouvir, quando um conjunto “musical” entendeu que o limite auditivo tinha de ser transposto, e os decibéis estratosféricos fizeram-me recorrer a tampões nos ouvidos. Infelizmente, essa prática “sonora” invadiu quase todas apresentações em festas, casamentos, formaturas…
Ao adentrar o palco, Carlos do Carmo dirigiu-se ao público e calmamente pediu silêncio absoluto durante sua apresentação. Foi atendido e, somente após cada fado, portugueses e descendentes aclamavam o cantor. Conhecia-o através de vários CDs que conservo com carinho, mercê de meu afeto pelo gênero fado, mormente cantado com qualidade ímpar. Carlos do Carmo emociona cidadãos de todas as classes e músicos eruditos submetem-se ao seu fascínio. O musicólogo Rui Vieira Nery já me havia, bem anteriormente, mencionado as qualidades excepcionais do artista, presenteando-me com CDs do cantor. Em seu excelente livro sobre o fado (vide Para uma História do Fado – Origens e Trajetória, 23/02/08), Vieira Nery escreve: “Será, depois de Amália, o primeiro fadista a assumir de forma inequívoca uma vontade de passagem do Fado do recinto ‘típico’ exclusivo para os espaços de difusão ocupados pelos demais gêneros da canção urbana”. Por sua vez, o compositor António Victorino D’Almeida, em entrevistas a Paulo Sérgio dos Santos, insiste sobre suas virtudes inalienáveis, comparáveis aos nomes referenciais do canto. Seus comentários dão a dimensão do grande fadista: “E cito-lhe desde a Maria Callas, ao Frank Sinatra, ao Carlos do Carmo… São vozes incríveis. O Placido Domingo, o [José] Carreras, a Amália Rodrigues, a Edith Piaf… Coisas assim… Mas a Edith Piaf não era tanto a voz, a Edith Piaf estava sempre um pouco desafinada. Ao Sinatra compreendo que lhe chamassem ‘The Voice’. O Carlos do Carmo é outra voz assim, não é? E dentro duma certa forma de cantar, com a voz não preparada, são das maiores vozes que alguma vez ouvi” (António Victorino D’Almeida conta 50 anos na Música a Paulo Sérgio dos Santos. Portugal, Quimera, 2005, 340 pgs.). Acrescentaria, entre cantores da música popular, Bing Crosby, Nat King Cole, Charles Aznavour, Tony Bennett e Elis Regina.
Ainda não tinha visto Carlos do Carmo em cena. Vários impactos se produziram.
Primeiramente, a escolha do repertório. Impecável. Fados primorosos, muitos deles com textos de grandes poetas portugueses e alguns de autores brasileiros. Uma garantia. Em outra percepção, musical preferencialmente, observa-se no tratamento da composição um esmero absoluto. Nada é supérfluo e a frase musical e o texto, num perfeito amálgama, associam-se irremediavelmente. Carlos do Carmo, nesse trato da melodia, consegue transmitir a respiração texto-música e tantas vezes recorre a suspensões – momentos inefáveis em que apenas as ressonâncias são “subjetivamente” entendidas. Essas pausas ou silêncios vêm sempre precedidas da preparação adequada e da sequência que faz entender métrica, sentido do texto e a frase musical em sua elasticidade agógica. Diria que, em termos musicais, tem Carlos do Carmo o sentido pleno daquilo que na música é denominado rubato, liberdade que se dá ao movimento de uma frase, sem contudo perder-se a essência do ritmo. Sob aspecto outro, possui o artista o domínio das gradações sonoras, e finais de fados arrebatadores têm a precedê-los a ascensão calculada, bem cuidada, de um mestre. À medida que me encantava com a bela récita do fadista, observei que a palavra distração – possível em apresentação de mais de uma hora ininterrupta – não teria nenhum sentido, mercê da força da transmissão. O público irmanou-se e, a pedido do cantor, quase que em sua totalidade acompanhou-o no refrão de Lisboa, menina e moça.
Nos intervalos entre os fados, comentava com meu dileto amigo Vital Vieira Curto a respeito daquilo que é essencial. Quem realmente é não necessita de artifícios. O gestual tão comum e exagerado em tantos cantores populares, que não poucas vezes se utilizam de vestimentas extravagantes, dá lugar à sobriedade, à economia dos gestos, à elegância no trajar. Diria que a atitude de artistas que entendem a mensagem musical como prioridade reflete o mais absoluto respeito ao público. Carlos do Carmo apresenta-se com gestual parcimonioso. Por vezes, as mãos indicam intenções relativas à tradução texto-música, outras vezes o colocá-las nos bolsos evitaria movimento desnecessário. Mesmo quando desce do palco, a fim de melhor se identificar com a platéia, permanece sóbrio na gesticulação. Todos se concentram naquilo que é transferido com total competência.
Ao findar o belo espetáculo, Júlio Rodrigues levou-me até Carlos do Carmo. Externei-lhe minha admiração, a ratificar-lhe essas suas qualidades, raras na música erudita, raríssimas na popular. O excepcional fadista asseverou-me que era assim que entendia a transmissão da música. Noite para não ser esquecida.
Ao acessar o Youtube videos Carlos do Carmo, o leitor poderá ouvir fados de seu repertório.
Some days ago I attended a show of the great fado singer Carlos do Carmo in São Paulo. Charmed by his elegance, the restraint of his gestures, his impeccable choice of repertoire and subtle control of tempo for expressive purposes, I was led to reflect on the issue of the essential and the superfluous in art. Carlos do Carmo is outstanding in a casual and effortless way, holding the audience in the palm of his hand without theatrical performances. His priority is to convey his musical message with competence, not to display extravagant versions of himself. A quality rarely found in classical music performers, even rarer in pop singers. A night not to be forgotten.