Frente ao Inevitável

Radiografia pré-operatória. Seta a indicar a articulação da base do polegar esquerdo. Clique para ampliar.

O estudo de piano necessita prolongados esforços.
Esses não implicam lutar contra a natureza.
Uma mão normal é feita para tocar piano
e todo pianista que não compartilha dessa convicção
é indigno de sua arte.

Marguerite Long (Le Piano de Margueite Long)

Ao estudar a integral dos Estudos para piano do grande compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915), apresentando-a em 1977, deparei-me com um problema singular, a quase total inexistência da passagem do polegar em sua opera omnia para o instrumento. Ter-me debruçado sobre a totalidade da produção de Scriabine levou-me a considerar hipóteses que mereceram um laudo médico sur le tard.
No início dos anos 80 conversei com o Prof. Dr. Heitor Ulson, competente especialista de cirurgia da mão, sobre um mal do qual Scriabine teria sofrido em sua mão direita (1890), o que o impossibilitou, durante certo período, de tocar com as duas mãos e, posteriormente, utilizar de maneira a mais econômica possível a chamada passagem do polegar. O cirurgião aventou a possibilidade de o compositor russo ter sofrido do mal de De Quervain, síndrome descoberta por Fritz de Quervain (1868-1940), cirurgião suíço, mal este descrito em 1895 (tenossinovite do extensor e abdutor do polegar). Para artigo que redigi para revista especializada francesa, o Dr. Ulson escreveu esclarecedora nota de rodapé, a posicionar sua teoria (Quelques Aspects Comparatifs dans les Langages Pianistiques de Debussy et Scriabine. In: “Cahiers Debussy”, Paris, Centre de Documentation Claude Debussy, nouvelle série, nº 7-1983, pgs. 24-37). Apreendi através de colegas pianistas que mestres russos acataram nossas teorias e admitiriam posteriormente que não havia sido detectada até então essa particularidade do técnico-pianístico em Scriabine, ou seja, a sua quase que absoluta rejeição à passagem do polegar e, paradoxalmente, o emprego acentuado de grandes aberturas da mão direita e da esquerda (esta por analogia) em sua extraordinária criação. Sob aspecto outro, as citações bibliográficas voltadas à suposta inflamação da mão direita e datadas do final do século XIX ainda perduravam. A causa da provável inflamação, segundo consenso, foi provocada por estudos pianísticos excessivos. O jovem Scriabine teria sido, inclusive, tratado com óleo de rícino e frequentado estância termal.
Em meados dos anos 90 – à época, a beirar os sessenta anos – comecei a sentir dores nas articulações da bases dos polegares. Aconselhado por amigo, consultei reumatóloga conceituada. Após examinar pormenorizadamente minhas mãos, disse-me que já tocara muito em minha vida, sugerindo que, doravante, o ideal seria tocar apenas para meu deleite. Com a maior serenidade !!! Escusado dizer que levantei-me, paguei a consulta e deletei por completo o vaticínio contra natura de minhas intenções e índole.
Durante os estudos pianísticos observava, progressivamente, o mal se avantajar. Consultas abalizadas com o ilustre Dr. Heitor Ulson, primo irmão de minha mulher Regina, resultavam sempre no esclarecimento a levar-me à certeza da intervenção cirúrgica. Fatalmente ela iria ocorrer. Tivera experiência outra quando, no final dos anos 80, o Dr. Ulson me operou de uma tenossinovite estenosante (dedo em gatilho), com amplo sucesso. Contudo, no mal que progredia nos polegares, eu só sabia protelar. Gravações no Exterior desde 1995, recitais com repertórios tantas vezes a solicitarem um limite sonoro extremo nas altas intensidades eram precedidos por fortes doses de anti-inflamatórios cada vez mais poderosos. Mas, com receio da intervenção, persistia em evitar o inevitável.
Foi após a gravação dos dois CDs na Bélgica e da longa tournée em Portugal em Maio último que o processo chegou ao limite. Dores e inchaço, mormente na região do polegar da mão esquerda. Algumas obras do extraordinário Lopes-Graça exigiam sessões longas de grande impacto e num processo técnico-pianístico em que as mãos permanecem em ampla abertura. Ao regressar, radiografias apontavam para a imperiosa necessidade de cirurgia reconstrutiva. A inflamação da base da articulação dos polegares, denominada Rizartrose, lá estava instalada, a não sugerir sofismas. Acatei o competente diagnóstico e agendamos à operação para o dia 5 de Julho último. Tinha a certeza da escolha do cirurgião. Decisão irrevogável. O médico Heitor Ulson, Prof. Dr. do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNICAMP, Coordenador da Área de Cirurgia da Mão e Ex-Presidente da Associação Brasileira de Cirurgia da Mão, teria a acurada atenção que o tornou respeitado no Brasil e no Exterior.
Para a elaboração de um post elucidativo para leigos, músicos e médicos, solicitei ao cirurgião um laudo esclarecedor, inclusive com imagens, tanto da radiografia como do ato cirúrgico. As fotos tiradas durante a cirurgia podem causar impacto, daí ter, para a ilustração em menor formato, inserido uma tarja azul sobre a área que estava sob intervenção cirúrgica. Se o prezado leitor se interessar, poderá clicar sobre a imagem para visualizar a foto ampliada sem tarja. Contudo, não recomendo essa vizualização àqueles mais sensíveis. Friso, o post só foi feito com a mútua anuência do paciente e do cirurgião. Aliás, o ato cirúrgico, que foi bem documentado, é parte da apresentação que o Dr. Heitor Ulson fará durante o XIº Congresso da Confederação Internacional da Sociedade de Cirurgia da Mão, a ser realizado entre os dias 30 de Outubro a 5 de Novembro em Seul, na Coréia do Sul.
Eis o precioso depoimento:
“Atendendo a seu pedido sobre o procedimento cirúrgico a que tivemos a honra de submetê-lo recentemente, passo a considerar os fatos mais relevantes: Inicialmente, a afecção – assim chamada de ‘osteo-artrose da base do polegar’ (Rizartrose) – é bastante frequente, acometendo principalmente as mulheres em torno ou após a menopausa. Entretanto, não poupa os homens e está em ascensão, pois as faixas etárias mais elevadas são crescentes em todo o mundo. Vivemos mais e nos desgastamos mais! Estes ‘desgastes’ ou alterações degenerativas também são influenciados por fatores genéticos, hormonais, ocupacionais e ainda por outros, menos conhecidos. Quando o estágio de desgaste da superfície cartilaginosa da junta é avançado, ocorre atrito das partes ósseas expostas, produzindo cada vez mais dor e limitação funcional correspondente ao polegar que, sozinho, representa 42% da função da mão. Assim, ou nos adaptamos temporariamente à situação dolorosa – que tende a progredir de forma variável na intensidade e velocidade, porém quase sempre para pior – ou procura-se tratamento médico-cirúrgico.

Foto: Ortoclínica Manus. Clique para ampliar.

Foto: Ortoclínica Manus. Clique para ampliar.

Foto: Ortoclínica Manus. Clique para ampliar.

Há várias décadas os cirurgiões especialistas da área procuram resolver essa situação aflitiva e os métodos variam bastante, indo de operações sobre partes moles ou articulares, com ou sem próteses. Para os casos onde há demanda de movimentos mais amplos, variados e, se possível, indolores, a técnica cirúrgica por mim preferida é a biológica, esta usando tecidos do próprio paciente. Reconstroem-se ligamentos após a ressecção parcial do osso ‘doente’ (trapézio) e introduz-se em seu lugar uma porção de massa muscular da eminência tenar, que servirá de coxim amortecedor das pressões exercidas na ‘nova’ junta, quando forem realizadas as diversas modalidades de pinça entre o polegar e os demais dedos. O pós-operatório costuma ser tranquilo, com imobilização temporária em tala gessada – 3 a 4 semanas – apenas envolvendo polegar e punho, ficando livres os dedos para uso parcial da mão. A reabilitação no geral completa-se com o importante auxílio de terapeuta da mão, sendo bem tolerada, durando 5 ou 6 semanas com sessões semanais e podendo ser necessário o uso de órtese à noite para a manutenção da posição correta. Anexo, para melhor ilustrar, uma radiografia pré-operatória da articulação da base do seu polegar esquerdo, recém-operado (trapézio metacarpiano) e que facilmente demonstra o grau de desgaste já avançado. Incluo também demonstração da técnica, utilizando-se a massa muscular tenar como ‘almofadinha’ a preencher o espaço ampliado da junta após a remoção dos tecidos ‘doentes’. No seu caso, tem sido importante a sua total colaboração para a obtenção do resultado funcional precoce. Nem sempre, contudo, encontramos tal determinação, a qual certamente o tem levado a retomar os seus estudos, enfrentando teclado com agilidade, precisão e duração, o que muito surpreendeu pelo resultado. Finalizo, caro José Eduardo, profícuo concertista, pesquisador, professor acadêmico e importante difusor internacional de autores brasileiros, parabenizando-o pelos seus resultados.” Heitor J. R. Ulson Ortoclínica Manus e Hospital Samaritano São Paulo, SP e-mail: ortoclínicamanus@ig.com.br

Polegar em recuperação. Cicatriz em destaque. Foto: Elson Otake. Clique para ampliar.

A reabilitação se processa. Dois dias após a cirurgia, com faixas e tala gessada, já dedilhava com o conhecimento do médico, com muita dificuldade e dores evidentes, cinco minutos diários. Foi assim durante todo o longo mês de Julho, com aumento progressivo do tempo até meados de Agosto. Abdiquei nesse período dos treinos e corridas, seguindo orientação estrita do cirurgião. Uma queda poderia por tudo a perder. Preparei-me progressivamente para o recital a fazer parte do Curso O Som de Portugal, que será oferecido na Casa de Portugal de São Paulo e a ser ministrado pelo ilustre musicólogo e professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso, entre os dias 25-29 de Outubro. Será o tema do próximo post. O recital do dia 27, unicamente dedicado à música portuguesa, não terá obras de forte impacto – sonoridades altíssimas -, pois a paciência e a esperança na recuperação completa, que deverá acontecer dentro de seis a sete meses segundo o especialista, apontam para o caminho da prudência.
Em Fevereiro será a vez do polegar da mão direita. E a saga continua…

For many years I’ve been suffering from rhizarthrosis, a chronic and progressive wear of the cartilage of the joint at the base of the thumb. I’ve always postponed surgery, but the extreme exposure of my hands due to the piano practice made it unavoidable: I could no longer stand the pain. This post is a detailed account of the surgical technique used on my left hand three months ago and of the post-surgery treatment given by the doctor himself, the hand surgery specialist Dr. Heitor Ulson.