Quando os Minutos Parecem Eternos

Extraordinária foto de Guilherme Kastner/Diário de Guarulhos/Futura Press, 22/09/10. Clique para ampliar.

Granizo de pelouros e frechas.
Mas o granizo de balas,
que sobre eles caia incessante,
desconcertou-os totalmente.

Arnaldo Gama (O Segredo do Abade)

Estamos sujeitos às surpresas, assim denominadas, pois advêm quando acreditamos que tudo está a indicar normalidade. Ao ouvir na manhã de 21 de Setembro, durante as transmissões dos noticiários pelas rádios paulistanas, que costumo acessar logo após os abomináveis programas políticos obrigatórios, apreendi que o tempo seria bom durante todo o dia, mas que pancadas de chuvas isoladas poderiam ocorrer durante a tarde. Preconizavam, sim, aguaceiros maiores e queda de temperatura para o fim da semana. Incautamente segui as previsões. Hélas, trois fois hélas, como se costuma dizer em França. Deveria viajar pela manhã, mas protelei para após o almoço.
Estou a me lembrar de duas situações relacionadas à meteorologia. Em Nova York, durante os dias fronteiriços 1987-88, a temperatura chegou aos 18º negativos. Em uma noite, liguei a televisão para saber a respeito do tempo que faria no dia seguinte. O locutor, à certa altura, disse que aproximadamente às 16:30 haveria uma enorme tempestade de neve. Deu-se a borrasca precisamente no horário. Em outra oportunidade, já comentada anteriormente, durante gravações que estava a realizar em Mullem, na Bélgica Flamenga, em gélida madrugada – estávamos no início do século XXI -, Johan Kennivé, o impecável engenheiro de som, pediu-me para interromper a performance, pois um vento com fortes rajadas deveria chegar em aproximadamente sete minutos, a provocar ruídos sobre os vitrais da Capela de Sint-Hillarius. Estranhei, interrompi a gravação e fui ter à Van de meu dileto amigo e lá tomar chocolate quente. Pois, exatamente no tempo citado, uma ventania intensa e de assustar chegou, mas dois minutos após se foi. Johan soubera por seus sensores meteorológicos.
Teria de sair de São Paulo. A revisão de livro a ser publicado no próximo ano na Europa impelia-me ao refúgio em Bragança Paulista. Quando da redação de determinados textos para o Exterior, leitura acurada de outros mais para publicação, ou escuta de CDs gravados na Bélgica para edição final, é sempre no Hotel Bragança, em frente à Praça José Bonifácio, que me recolho durante dias, pois a última revisão deve ser sempre a do autor. Assim entendo. Às 15:30, tranquilamente empreendi a curta viagem, que oscila entre pouco mais de uma hora até duas, no máximo. Tempo bom. À altura da Av. Tiradentes, o céu plúmbeo apontava para chuva que deveria cair proximamente. Fato normal. Ao atingir a marginal do Tietê – via expressa de maior afluxo do país – com o tráfego a fluir com a lentidão costumeira, a descarga veio abaixo em forma de granizo. Estava próximo ao estádio da minha infortunada equipe de futebol, a Portuguesa de Desportos, como se o proclamado São Pedro quisesse punir a nau lusitana permanentemente à deriva e a ter como estandarte a Cruz de Avis. O granizo, em formato de bolas de gude, caiu como um bombardeio. Imediatamente, a seguir velho conselho, coloquei a mão direita contra o vidro do para-brisa. Dizem que impede estilhaços. Confesso que é assustador. Durante mais de dez minutos, que pareceram uma eternidade, os “pedregulhos” de gelo, ensurdecedoramente, agiram como instrumentos de percussão no mais alto volume. Já me preparava, caso o vidro não suportasse os projéteis, para abandonar o veículo. A situação piorou, pois aqueles que estavam sob as pontes lá ficaram – proteger-se pode ter fortes doses de egoísmo e de instinto de sobrevivência -, a fim de evitar os duros impactos, o que fez o trânsito parar totalmente. Em determinado instante caiu sobre o capô um gelo do tamanho de uma bola de pingue-pongue, estilhaçando-se no vidro dianteiro. Marca indelével ficou sobre o metal.
Quando o trânsito começou lentamente a fluir, com a torrente aérea a despencar acompanhada de pedras em menor quantidade, pouco se via. O piso permaneceu imaculadamente branco por instantes. Perdi a entrada da Fernão Dias e fui parar bem longe, na direção da Penha, a seguir fluxos descontrolados pela marginal do Tietê. Entrei, a acompanhar motoristas visivelmente desorientados, por ruas que me fizeram lembrar outras localidades periféricas da cidade, com gelo ou plenas de água, e mais, com crianças a mergulhar naqueles “lagos” lamacentos ! É realmente surreal. Retornos e mais ruas inundadas. Finalmente, um bom samaritano me apontou a única possibilidade de chegar à via Dutra e de lá acessar a rodovia Fernão Dias. Ufa, consegui !
O drama não se encerrara, pois até antes de Atibaia, só chuva forte, por vezes seguida de granizos. Ao passar pelo túnel da Mata Fria, a longa descida até Mairiporã proporcionava banhos permanentes da lama que descia pelas encostas, atingia a estrada e se projetava no para-brisa, levantada pelas descidas desenfreadas de caminhões e ônibus conduzidos por motoristas irresponsáveis. Não havia, nesse longo declive, a menor possibilidade de buscar abrigo no acostamento, pois nessas situações o caos impera. A viagem durou ao todo quatro horas e meia e, ao chegar a Bragança, nenhuma só gota tinha caído na aprazível cidade. Só à noite houve aguaceiro de moderado a forte, mas de curta duração.
Segundo o meteorologista André Madeira, da Climatempo (Estadão, 22/09), “Calor e umidade colaboraram com as condições atmosféricas necessárias para a formação dessas nuvens pesadas, profundas e altas, típicas de tempestade. Essa água no topo da nuvem forma esse granizo”. Só teria de discordar de uma frase do especialista citada no jornal: “Granizo são pedrinhas de gelo”. Para quem vivencia o episódio é dantesca a cena. Sob aspecto outro, os meteorologistas afirmaram ter sido o fenômeno rigorosamente atípico, impossível de ser detectado com antecipação.
O fato é que não me recordo de situação paralela. Presenciei, ao longo da existência, chuvas, aguaceiros e tempestades intensas e variadas. Essa ficará marcada, pois certamente foi a que maior susto trouxe ao velho observador. A experiência leva-me doravante a ter mil cautelas quanto às previsões meteorológicas da cidade. Satélites e tantas outras tecnologias dão-nos certa segurança. Confiarei nas previsões… delas a desconfiar.

Tempo final 1:05:05. Clique para ampliar.

Seria injusto se não dissesse que os meteorologistas acertaram ! Previram, naquela terça-feira, a ficar lembrada, que frente a avançar do sul atingiria São Paulo com forte aguaceiro a partir da madrugada de domingo. Ao acordar às 5:30, para a terceira etapa (10km) do Circuito das Estações – Adidas (Primavera), temporal com trovoadas se abateu sobre a cidade. Houve alternância de chuva forte a moderada durante o aquecimento e a prova pela Av. Pacaembu e o Minhocão. Apesar de ter corrido com a bela camisa dois da Internazionale de Milano, que me foi presenteada por meu genro italiano, nem a grande cruz vermelha que a caracteriza amainou São Pedro. Creio que o festejado santo está a me penalizar. Mas dele continuarei devoto.

On the afternoon of 21 September, with meteorology predicting good weather with isolated showers, I decided to go to the neighboring city of Bragança Paulista, a one-hour trip under normal conditions. As I was driving through Marginal Tietê in São Paulo, the country’s most congested expressway, I was trapped by a severe hailstorm followed by heavy rain. Hails the size of marbles fell for more than 10 minutes, bringing traffic to a stand still. I got lost due to poor visibility and needed help to find the highway leading to Bragança, where I managed to arrive after more than 4 hours – most of the time in the rain -, just to learn that not a single drop had fallen in the city. Although based on reasonable sound data, our weather forecasts leave a lot to be desired. The only certainty is that nothing is certain.