Um Compositor de Exceção

Capa do CD a ser lançado no dia 27/10/10. Clique para ampliar.

Encarna Carlos Seixas um estilo individual,
um estilo e uma estética portugueses,
diferentes da arte italiana, francesa, alemã, inglesa, espanhola ou polaca.

Santiago Kastner

The composers who have “made it”
into the repertoire since the mid 1800s,
from Josquin to Bartok,
have not done so merely because their music is of high quality,
but because it has had powerful support.

J. Peter Burkhouder

A História da Música nem sempre contempla, como mereceria ser, o verdadeiro talento. Pode ele permanecer como um verbete apenas nos grossos compêndios, e pouco se faz no sentido de ser dado o devido lugar ao ilustre personagem. Há aqueles que se mantêm submersos durante séculos e que, ao serem redescobertos, causam estupor. Mas nem essa surpresa é salvaguarda para uma obra ser divulgada e interpretada. Outros fatores, possivelmente mais cruéis, impedem a circulação das composições em escala maior. Já mencionei várias vezes o fator geopolítico, a interferir na propagação de criações de autores do maior nível, que têm na penumbra um destino infortunado. Mercado a fazer valer o que “deve” ser ouvido, agentes e a submissão comprometedora de intérpretes frente à situação tornam o quadro desolador.
O curso O Som de Portugal que estará a ser realizado entre os dias 25 e 29 de Outubro na Casa de Portugal de São Paulo, ministrado pelo ilustre professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso, terá no dia 27 às 20 horas, após uma das conferências, meu recital a abordar uma panorâmica da música portuguesa. A Casa de Portugal e o Banco Banif tiveram a iniciativa de lançar um CD unicamente com música portuguesa. Após reuniões mantidas com o Prof. José Jorge Peralta e o Senhor António Reis Cardoso dos Santos representando ambas as Instituições, respectivamente, optamos por CD dedicado ao grande compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742). O selo belga para o qual gravei álbum duplo com Sonatas expressivas do autor aquiesceu, e selecionamos 17, que integram o presente CD. É possível pois, através dessas Sonatas, compreender-se o enorme contributo de Carlos Seixas para a música portuguesa e universal. O texto foi confiado ao professor visitante Pedrosa Cardoso e a masterização para tal empreendimento ficou a cargo da Sun Trip. A Universidade de Coimbra e a Câmara Municipal da tradicional cidade generosamente permitiram a reprodução das belas medalhas inseridas na capa e no fundo de caixa do CD.
Apesar do redescobrimento de Seixas nos anos 30, empreendido pelo notável musicólogo Santiago Kastner que, após ter a percepção histórica do imenso músico português, conseguiu ver suas Sonatas editadas na Alemanha pela B. Schott’s Söhne (2 volumes, 1930-1935), e bem tardiamente, 105 Sonatas pela Fundação Calouste Gulbenkian em Portugal (3 volumes, 1980-1992), e considerando-se o empenho da grande pianista Felicja Blumental, que gravou em meados do século XX inúmeras Sonatas de Seixas e outras obras de cravistas portugueses (vide Felicja Blumental – A Permanência Através de Horizontes Desbravados, 13/12/08), o compositor continua, imerecidamente, divulgado a conta-gotas. Uma injustiça se perpetra, inclusive através das mentes dos pianistas portugueses mais festejados fora das fronteiras lusíadas, que insistem em ignorá-lo, não propositadamente, assim gostaria de pensar, mas movidos pela pressão dominadora do mercado, que só reverencia o repertório repetitivo. Pouco a fazer. Outros intérpretes, mais fixados em Portugal, têm dado valor expressivo à muitas obras de Seixas, executando-as e buscando as gravações. Tenho absoluta convicção que muitas das Sonatas de Carlos Seixas para teclado não estão, a rigor, abaixo da qualidade de seus ilustres coetâneos, mormente Domenico Scarlatti (1685-1757). Algumas dessas criações seixianas ultrapassam inclusive, na ousadia, o extraordinário compositor napolitano que viveu alguns anos em Lisboa a servir a corte portuguesa e a privar da amizade de Carlos Seixas.

Capa do álbum duplo lançado pelo selo belga De Rode Pomp em 2004. Clique para ampliar.

Para o CD, o texto do encarte, redigido por Pedrosa Cardoso dimensiona Carlos Seixas no seu tempo. A inserção de parte considerável do escrito se faz necessária, pois pensada por um sensível estudioso do compositor coimbrão: “O nome de Carlos Seixas é um dos mais registrados na discografia portuguesa e corresponde a um compositor que viveu apenas 38 anos na primeira metade do século XVIII. No seu tempo viviam nomes cimeiros do barroco musical, tais como A. Vivaldi (1678-1741), J. S. Bach (1685-1750) e G. F. Haëndel (1685-1759). Estes compositores não se encontraram pessoalmente, mas suas obras não passaram despercebidas e serviram mesmo de modelo mútuo. O italiano Vivaldi morreu em Viena e muitos dos seus concertos foram publicados na Holanda. Haëndel, coetâneo e quase conterrâneo de Bach, afirmou-se na Itália e nacionalizou-se inglês. Bach copiou e ‘parodiou’ muita música de Vivaldi e admirou a música do seu coevo Haëndel.
Na mesma época, e provavelmente sem conhecer aqueles nomes, Carlos Seixas nasceu e estudou em Coimbra, nunca tendo saído de Portugal. À sombra da Sé Velha e da Universidade, teve apenas por mestres seu pai, o organista titular proveniente de Tomar, e Fr. Nuno da Conceição, um trinitário lisboeta, lente de música e Mestre de Capela da Universidade. Herdando o cargo do pai aos 14 anos, emigrou pouco depois para Lisboa onde, aos 16 anos, tornou-se organista da Igreja Patriarcal. Sua troca do Mondego pelo Tejo só se pode explicar pela sua ânsia de horizonte: a música, como outras artes, estava a fazer de Lisboa uma grande capital europeia: ali haviam chegado já vários músicos italianos, entre eles Domenico Scarlatti, o famoso mestre da capela papal, que trocou Roma por Lisboa, certamente à custa de condições salariais de exceção, graças ao poder mecenático de D. João V e, indiretamente, ao ouro do Brasil.
O jovem Seixas chegou, convenceu os melhores, assimilou as correntes estilísticas da Europa e venceu como executante e compositor. Barbosa Machado, que o conheceu de muito perto, fala de uma produção excepcional, que se perdeu na sua maioria, certamente devorada pelo terremoto de 1755. Mesmo assim, Carlos Seixas é um dos maiores vultos do período barroco português e um dos mais notáveis na história da música em Portugal. Para além de três significativas composições para orquestra e algumas excelentes peças corais, conhecem-se dele mais de uma centena de sonatas para instrumento de tecla. Algumas dessas sonatas, também chamadas tocatas, parecem adequadas ao órgão; outras, todavia, têm claramente carácter de música para outros teclados. Atribui-se habitualmente esta produção de Seixas ao cravo, instrumento que o jovem compositor deve ter praticado e ensinado na sociedade aristocrática de Lisboa; contudo, o carácter expressivo de algumas daquelas sonatas parece sugerir o clavicórdio ou até o fortepiano, como defende José López-Calo. De resto, as sonatas de Carlos Seixas, longe de dependerem, ou mesmo imitarem, a vasta e preciosa produção de Domenico Scarlatti, apresentam geralmente um estilo personalizado que, acusando de certo modo a tradição organística ibérica, possuem características inovadoras, sobressaindo não apenas o pendor para o estilo galante de muitas delas, mas sobretudo a sua dimensão de sonata em vários andamentos, com a inclusão frequente do minueto”.
Urge a divulgação maior da obra para tecla de Carlos Seixas. Apesar das vaticinadoras palavras de Santiago Kastner em seu livro sobre o compositor (Carlos de Seixas. Coimbra, Coimbra Editora, 1947), o músico conimbricense continua não devidamente visitado em Portugal e no mundo. Escreve Kastner: “Quer a arte de Seixas ser manuseada com afecto e delicadeza. A querençosa bonança, a transparente boniteza desta música pode ser enquadrinhada com o gosto requintado do ‘connaisseur’ ou do provador selecto. Não é, a de Seixas, música para brutamontes, zânganos ou materialistas, outrossim, não pode servir aos que procuram brilho exterior, sensação, ‘thrill’ americano, cascada de sonoridades caleidoscópicas ou arranques emocionais de dionísica veemência. Não ! O mundo seixiano é mais recatado, mais propenso aos matizes pequenos e subtis. Com amor nos devemos aprofundar na frágil e sensível alma deste singular músico, decifrar as suas sonoras configurações, escutar as suas Sonatas, tal qual gozamos a contemplação de ternas miniaturas e preciosas iluminuras. E muita luz e alegria nos dará tamanho cravista, génio à sua maneira. E prestando atenção, saberemos algo acerca da alma musical portuguesa”.
O prezado leitor poderá ouvir, através do YouTube, seis Sonatas de Carlos Seixas que integram o CD em apreço, e a qualidade absoluta da escrita do grande mestre português poderá ser detectada.

In 2004 I recorded in Belgium a double CD entirely dedicated to the keyboard sonatas by Carlos Seixas (1704-1742), the great Portuguese composer born in Coimbra. From this CD I selected 17 sonatas for another CD, sponsored by the Banif Bank and Casa de Portugal in São Paulo. It will be released on 27 October after my recital at the Casa de Portugal. The CD booklet was written by the Portuguese musicologist José Maria Pedrosa Cardoso.