O que a Imprensa não Revela
Celui-là habitera mieux qui, faute d’eau, séche dans le désert,
en rêvant d’un puits qu’il connaît,
dont il entend dans son délire grincer la poulie et craquer la corde,
que celui-là qui, de ne point ressentir la soif,
ignore simplement qu’il est des puits tendres, vers où conduisent les étoiles.
Antoine de Saint-Exupéry (Citadelle CLXXXVII)
Não poucas vezes mencionei minhas posições como professor universitário. Apesar de lecionar piano, jamais pensei na formação de um pianista que não tivesse em conditio sine qua non uma visão musical mais ampla e também uma sólida cultura humanística, únicas salvaguardas para a edificação de um músico completo. Para quem é do métier, impossível não notar lacunas, mesmo em se tratando de um hábil virtuose de ofício, daquelas atribuições fundamentais. Fora das lides interpretativas, haverá vazio de ideias.
Flávio Metne foi meu aluno na universidade. Questionador, colocava-me sempre em posição atenta às suas elucubrações sobre técnica, repertório, mormente dos países do leste europeu e daqueles pertencente à Ásia Menor. Dialogar com Flávio era um prazer estético. Sua evolução pianística nunca foi desprovida dos porquês dos procedimentos realizados. Sempre indagava sobre as razões do técnico-pianístico ou daqueles interpretativos. Fonte de entusiasmo para seu velho mestre. O Trabalho de Conclusão de Curso por ele apresentado foi notável e o aluno de piano não apenas tocou, como discorreu sobre a formação histórica da música nacional do Azerbaijão.
Flávio cresceu musicalmente. Atavicamente ligado aos povos do Levante, aqueles pertencentes à região ao nascente do Mar Mediterrâneo, ou seja, situados na costa ocidental da Ásia por ele banhada, Flávio fixou-se na Síria há mais de uma década, onde desempenha profícua atividade como professor de piano do The High Institut of Music em Damasco. Desenvolve também pesquisas relacionadas tanto à música como à língua árabe. Lê constantemente meus posts e nos correspondemos com certa assiduidade.
A atual situação da Síria, interpretada com exacerbação nem sempre confiável pela mídia, fê-lo colocar suas posições a respeito daquilo que, como cidadão a participar da vida do país, observa e presencia. Pensei pois transmitir ao leitor essas agudas observações. Tendo vindo a São Paulo durante as férias escolares, encontramo-nos diversas vezes e foi um prazer enorme esse contato, que se traduziria em um segundo texto de meu ex-aluno e dileto amigo, resultado também de nossas correspondências e encontros decorrentes dessa sua vinda a São Paulo.
Em Julho escrevia-me instigante e-mail de Damasco. Reproduzo seu texto na íntegra, com sua autorização, pois o desenvolvimento do amigo tem-se dado de maneira homogênea, e o leitor poderá inteirar-se das preocupações de Flávio em áreas outras, distantes das nossas, mas humanísticas.
“A demora em escrever algumas palavras poderia denotar falta de estima… ao contrário, sua presença como mestre e amigo é contínua, seja através das gravações que ouço e as faço ouvir, seja pelas preciosas idéias sugeridas em seus artigos. Talvez o mais motivador seja mesmo sua postura ante a vida.
Vamos em frente. Como você pode imaginar, o país esta passando por momentos difíceis e é impossível ficar ileso, mesmo que moralmente… Foram muitas as ponderações e penso que o destino do sistema vigente poderá afetar seriamente a vida de muita gente. Otimisticamente, gostaria de acreditar que os detentores do poder neste país estão mais capacitados do que certos líderes da Liga e chegarão a um consenso inteligente. Caso isso não aconteça, poderá haver uma longa guerra civil ou a desgraça de uma teocracia, ou talvez a fragmentação do território em pequenos países, de acordo com as maiores religiões e etnias vigentes no Levante, e estas regidas por democracias de fachada.
A sociedade síria é uma trama complexa destas etnias, religiões e suas derivações, em cada uma delas há diferenças também culturais e econômicas, também com seus aliados internos e externos. Isso deve ser levado muito em conta ao se fazer qualquer análise.
Resumidamente, vejo três tipos de oposição. Uma oposição, diríamos, ideológica, ou seja, é fundamentada em idéias, comunistas ou nacional-sírias ou seja lá o que for. Outra grita por liberdade, mas com tendências declaradamente teocratizantes e fascistas. Um terceiro grupo composto por mercenários, com slogans muito pobres, quebrando , matando e fazendo declarações falsas às emissoras tendenciosas.
Tenho, como você, o hábito de ouvir muito as pessoas. Ouço o padre, o ministro, o exilado, o aluno, o colega de trabalho, o parente do interior, o filho do preso político, o pedreiro, o chofer, o tintureiro, o muçulmano rico, o muçulmano pobre, o cristão francofônico, o curdo sem nacionalidade, o agente, o militar, o nouveau-riche… as emissoras estatais e estrangeiras. Na maioria deles, o que há em relação à sorte do país é um grande ponto de interrogação estampado no rosto, fora as argumentações contraditórias, o diálogo surdo… O mais desesperador é que muitos indivíduos acreditam piamente que sua religião é a escolhida e que têm o direito, legitimado em seu livro sagrado, de apagar os outros do mapa! Estes também engrossam o caldo da ‘oposição’. A pressão internacional é considerável, tendendo a uma intervenção militar mal intencionada. Por outro lado, temo que se está usando, apesar da crise, os mesmos velhos métodos de manipulação popular; métodos estes que, ao meu ver, são aqueles que poderiam levar o sistema à falência.
Ontem foi sexta-feira, feriado, e ao pôr do sol causticante fui fazer uma visita a um parente. As praças cheias, as pessoas passeando, e no caminho que leva a Damasco centenas de famílias fazendo picnic com seus apetrechos, dos quais não falta o narguile. Que boa vida….Até que ponto o cidadão comum quer se envolver? Será que eles ignoram seu destino? Ou será que, depois de tantos conturbados séculos, sabem que nada podem fazer? Chega-se a um ponto em que tudo o que o cidadão quer, até o mais ilustrado dos homens, é que o deixem respirar em paz.
As tais aulas da sobrevivência… desvinculei-me definitivamente de uma pequena escola onde lecionava. Coloquei um ex-aluno meu no lugar para assim não prejudicar o diretor. Era cansativo demais por tão pouco retorno profissional e financeiro. Fico somente com as aulas no Instituto Superior, cujos alunos prestaram vestibular e passaram por um exame de admissão e onde meus esforços são, pelo menos moralmente, mais bem empregados.
Aproveitando meu gosto pela introspecção, pela contemplação, leitura, coisas do espírito enfim, saio o mínimo possível de casa, evitando lugares lotados, ambientes poluídos, trânsito… O retorno é grande pois leio os grandes mestres, escrevo bastante e o mais importante: dedos nas teclas.
O que tenho escrito? Tenho em minha mesa cinco pastas, cinco assuntos mais ou menos relacionados. O sistema que adotei: leio diversas fontes e é impossível esgotar um assunto em uma semana.Vou lendo, vivendo e refletindo e depois de um tempo começam a se estruturar idéias em frases ou parágrafos. Escrevo e coloco na devida pasta, abastecendo-a de material para ser reavaliado e organizado em forma de texto. Não me preocupo logo no começo em colocá-las em um discurso linear. Se as idéias estiverem corretas, buscam seus pares e tudo correrá bem. Tenho, portanto, a liberdade de abandonar por um tempo um assunto e retornar a outro. Forma-se assim uma espiral ascendente e, cada vez que se retorna a um motivo, as idéias se esclarecem. Nunca se sabe quando uma relação interessante pode ocorrer. As idéias precisam de tempo para amadurecer e um distanciamento é producente; prática sugerida na adolescência pelo meu psicanalista.
Estou ocupado, por exemplo, com um estudo, ‘Fórmulas de Polidez’, em vernáculo árabe. Não estão escritas em nenhum compêndio. Devem ser retiradas do convívio com os locais, sejam entrevistas, peças de teatro ou fontes as mais diversas. São milhares de fórmulas – herança linguística – usadas no convívio social e para cada ocasião uma fala, sua devida resposta e, às vezes, a resposta da resposta. São muito bonitas. Já tinha recolhido há muitos anos algumas frases, mas o impulso final veio a partir do Larousse, que tem uma parte dedicada a ‘Formules de politesse correspondant à divers événements’. Este é um trabalho mais acumulativo do que analítico, mas para o qual estou elaborando um pequeno comentário.
Outra pasta, o problema da avaliação pedagógica. Tenho participado anualmente das bancas examinadoras do Instituto e acredito que falta muito para uma melhor avaliação das provas práticas. Isso me leva a uma série de reflexões a esse respeito e, por conseqüência, foram devidamente escritas e serão propostas em futuro próximo. Não é um texto longo e poderei enviar-lhe o rascunho se for de seu interesse. Interesse maior será o meu em moldar-me às prováveis críticas. Avante, a motivação é maior. As outras pastas também são interessantes, mas penso que já tomei demais seu tempo”.
Resultado de nossas longas conversas em São Paulo neste Setembro, Flávio escreveria:
“Nunca fui um ativista e confesso que, nos meus 40 anos, não teria paciência de sê-lo. Sempre estou querendo saber e ouvir mais… Minha posição não me impede contudo de manifestar críticas a qualquer sistema existente.
Muitos assuntos eu não tratei em correspondências anteriores e que são, a meu ver, de suma importância. De passagem: o clientelismo impera, a corrupção institucionalizada; o código civil, importado da França, foi enxertado numa sociedade com história e valores diversos do país de origem, muitas leis herdadas dos idos tempos otomanos ainda parasitam na constituição de uma sociedade que é governada por um partido socialista ‘laico’, alimentado pelo sonho pan-arábico. Previdência social ineficaz, sistema hospitalar péssimo, desrespeito visceral ao meio ambiente, imprensa… mais remedia do que noticia.
A sociedade levantina é puritana por natureza. A palavra como tal é crime e os tabus são muitos. Arrisco dizer que censura e puritanismo legitimam-se mutuamente. Acho pouco provável leis sobreviverem contrariamente à moral vigente. Existe, sim, uma elite educada e esclarecida. Ela tem consciência ambiental, habituou-se a fazer reciclagem, respeita a cultura alheia e integra com naturalidade os espaços em que vive, não corrompe e não é corrompida. Há bons escritores, corais relativamente bem treinados, compositores tentando, dentro de suas possibilidades, desenvolver uma linguagem nacional, programas de assistência social promovidos pela nossa excelente Primeira Dama e coisas afins.
Sob o aspecto cultural, dada a sua localização geográfica, o Levante compartilha imensamente do belo imaginário mediterrâneo. Muçulmanos e Cristãos convivem sem atritos maiores. Algumas cidades sírias poderiam bem estar em Portugal, Espanha, Itália ou Grécia e o inverso seria também válido. É só olhar os semblantes de homens e mulheres, as casas construídas com pedras escuras, ver casamentos, danças, ouvir adufes e gaitas; observar os vinhedos e as oliveiras, assim como as mulheres vestidas de luto e o culto à Virgem. Acredito que essas semelhanças sobrevivam desde épocas anteriores às conquistas islâmicas. Indo mais a fundo, a paisagem de cidades mais afastadas do Mediterrâneo, nela incluindo seus habitantes, aproxima-se mais de panorama existente na Península Arábica. Acrescentaria cidades a nordeste com traços mais centro-asiáticos em todos os aspectos.
A História da região não foi nada homogênea e sim plena de conturbações, seja nos tempos de Roma e de seus Césares, ou naqueles de Alexandre, pois o território pareceria fadado às ocupações.
O viajante que empreender um turismo sério, fora dos saguões cinco estrelas e restaurantes com música ‘para inglês ver’, poderá, a partir de uma atenta e prazerosa leitura das paisagens, aprender muito sobre a história da região.
Viver o cotidiano do país por uns bons quinze anos permite-me observar : os sírios vivem num país seguro? Sim. A pobreza é inferior àquela de outros do ‘terceiro mundo’? Sim. Pode-se andar pelas ruas à noite sem medo de assalto? Sim. Há alimento subsidiado pelo Estado? Sim. Há liberdade de culto? Sim. O mais relevante: a tolerância entre as diversas etnias e religiões e a solidariedade entre as pessoas, independentemente destas diferenças, é, de fato, admirável.
Transpondo exageros movidos por parcialidades e desinformação, penso que uma reavaliação mais sensível deveria ser feita, evitando assim julgamentos e decisões políticas de consequências nefastas.”
Flávio me apresentaria fotos por ele tiradas na Síria. Compartilho cinco delas com meus leitores. Tem-se muito do país e do que vai no interior do olhar de meu querido amigo.
Flavio Metne was one of my students at the university in the past and for more than ten years he has been living in Damascus, where he is a piano teacher at the High Institute of Music. We keep in touch by e-mails and meet when he comes to São Paulo on vacation. In this post I transcribe two interesting messages received from him, in which he gives his views on today’s civil unrest in Syria and also on the diverse fabric that makes up the Syrian society.
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