Segue-se o caminhar

De Lisboa a Évora percorre-se lindo trajeto. O Alentejo é mágico e as grandes extensões  alentejanas tomam proporções inusitadas. Já escrevi vários posts sobre a região nas diversas estações. A luz é diferenciada daquela da primavera, a relva tem outro verde, mas a dar destaque, por vezes, às colorações azuladas devido às flores bem pequenas. Sobreiros, oliveiras, chaparros e avinheiras têm outras tonalidades nesta estação e se espalham esparsamente pela planura ondulante. As cegonhas, em seus ninhos nas altas torres, aguardam o inverno, que no Alentejo é bem cortante. Não mais saem da região, integrando a paisagem durante todo o ano. Belíssimo vê-las planarem e com mínimo esforço se deslocar pelos céus. Nossa amiga Idalete Giga, excelente gregorianista e alentejana apaixonada, sempre se encanta ao observá-las em evoluções serenas.

O recital, como nesses últimos seis anos, deu-se no requintado Convento Nª Srª dos Remédios, erigido no século XVI. Sinto-me bem ao adentrar a igreja, hoje destinada à música, através da bela programação do Eborae Musica, escola tão bem dirigida pela Profª Helena Zuber. O altar mor e as outras talhas douradas dos altares laterais bem evidenciam a qualidade desses artistas, que tão bem souberam trazer harmonia a essa igreja tão especial. O data show, preparado tão cuidadosamente pelo professor José Maria Pedrosa Cardoso, tem tido a melhor recepção por parte do público, não apenas pelo esmero com que cuidou das frases de Francisco de Lacerda inseridas durante o discurso musical das Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, como pelos desenhos expressivos de Luca Vitali. Eurico Carrapatoso se fez presente novamente e apresentou-me compositor de grande talento, João Francisco Nascimento. Devo apresentar em primeira audição seu Estudo Fúria, Volutas e Saraivadas, dedicado a Carlos Seixas, na tournée de 2012. Obra que resultará. Muito bem escrita, integrará a coleção, já a beirar os 80 Estudos compostos desde 1985 por compositores de todos os rincões deste planeta e que integram nosso projeto. Qual não foi a surpresa de lá encontrar o querido amigo António Menéres, ilustre arquiteto português, que estava de passagem pela cidade e hospedado, com sua esposa Maria Amélia, no mesmo hotel. Uma alegria muito grande para Regina e para mim.

Com o casal Pedrosa Cardoso e Maria Manuela descemos ao Algarve e o recital foi realizado na concorrida Escola de Música de Lagos, com muito boa boa audiência. Apesar da gravíssima crise que se abate sobre Portugal, mercê de políticos inescrupulosos, empresários gananciosos e banqueiros com programas estranhos – não ocorre o mesmo no Brasil? -, é alvissareiro verificar-se a permanência dessas escolas da resistência no país. Diria que a arte erudita, praticada por jovens alunos e professores que ainda acreditam, é salvaguarda da esperança, e o número de apresentações destinadas aos novéis praticantes chega a ser digno de registro. O curto período nessa bela Lagos frente ao mar serviu para a degustação dos peixes preparados extraordinariamente por mestre Firmino, o homem do mar, pai de Manuela, assim como dos doces amendoados, por sua mãe Maria Elias. Chamaram-me a atenção, neste outono, diversos ninhos de cegonhas na cidade, em torres de eletrificação ou em chaminés. Elas se espalham e são bem aceitas pelos cidadãos, fazendo bela parceria com as centenas de gaivotas que sobrevoam as margens algarvias.

Tomar, a cidade dos templários, do Convento de Cristo, cuja construção teve início no século XII, com inúmeros claustros construídos ao longo dos séculos e a magnífica Janela do Capítulo, foi a quinta cidade visitada. Berço do grande compositor Fernando Lopes-Graça. O recital na Escola de Música Canto Firme foi muito concorrido. Antônio de Souza, sensível regente coral e dirigente da Escola, soube preparar antecipadamente o público. Eurico Carrapatoso compareceu e tanto suas obras como as três peças de François Servenière tiveram comentários elogiosos. São realmente belas composições. Um pianista e professor russo lá presente comentou que não é necessário tornar a música ininteligível para mostrar “intelectualidade”, pois agradara-lhe a competente organização estrutural das obras e sua inserção junto ao público, que se mostraria altamente receptivo. E o que dizer de Francisco de Lacerda? A cada recital, maior a minha convicção de estarmos diante de verdadeiras obras primas que, hélas, pianistas continuam a  negligenciar. Creio que se contam nos dedos de uma só mão aqueles que realizaram a integral das Trente six histoires… Constrangedora situação.

À medida que subimos rumo ao norte, ao Minho de meu pai, a paisagem se transforma e um novo post mostrará as recepções, em Braga e Póvoa de Varzim, das obras propostas para a turnê em Portugal. Continuamos a digressão.