Fênix? Até Quando?

Mais n’espère rien de l’homme
s’il travaille pour sa propre vie
et non pour son éternité.
Antoine de Saint-Exupéry (Citadelle – VI)

Se há cidade que nada preserva, esta é São Paulo. Os poderes estatal e privado, que sempre andaram de mãos dadas, ao longo das décadas conseguiram deitar abaixo o que restaria para as novas gerações ao menos entenderem nosso passado. Vergonhosa foi a destruição paulatina da Av. Paulista, hoje uma avenida descaracterizada. Há falta de unidade nos prédios, que não obedecem ao mínimo de básica simetria, imundície crônica das calçadas que fizeram dela um “falso brilhante”, insegurança para o transeunte…  O que parece evidente é que o cartão postal a apresenta preferencialmente à noite, pois as luzes disfarçam problemas e, nessa situação, a  Avenida tem lá sua beleza.

Estou a me lembrar dos velhos casarões que representavam parte de um período preciso da trajetória da cidade. Durante o biênio 1954-55, em que estudei à noite no liceu Eduardo Prado, a fazer esquina com a Rua Pamplona, ao sair da escola por volta das 23:30h caminhava sem pressa pela Avenida Paulista até bem perto do Instituto Pasteur. Era prazeroso esse caminhar. Frondosas árvores, postes com a iluminação antiga, casarões majestosos… De lá pegava o bonde, após este contornar a Brigadeiro Luís Antônio, e ia até o cruzamento da Av. Domingos de Moraes com a Av. Rodrigues Alves. Geralmente descia a pé por esta avenida até a casa onde morávamos, a pouco mais de 50 metros da atual Av. Dante Pazzanese, no Ibirapuera. O que sobrou das Avenidas Paulista e Angélica? Pouquíssimos exemplos, quase todos em estado sofrível. São exemplos que proliferam pela cidade. O poder econômico, sempre em conluio com as estranhas aprovações públicas, já pouco tem para destruir. Para quem teve consciência da cidade com pouco mais de um milhão de habitantes, só lembranças…

Quando insisto em considerar minha cidade bairrro, Brooklin-Campo Belo, a cada dia mais transformada em canteiro de prédios sempre mais altos, é por sentir ainda lampejo do passado existente. Alemães que para cá vieram, ainda na primeira metade do século XX, fizeram construir moradias com estilo que encontramos no sul do país. Muitas delas já deram lugar aos edifícios, a cada ano erigidos em maior altura.

Foi na década de 50 que meu pai comprou um terreno amplo em frente à Estrada de Santo Amaro, mais tarde Avenida, hoje uma das mais movimentadas vias da cidade. Construiu algumas casas que foram vendidas e, sobretudo, a morada da família, que ficaria concluída em fins de 1957. Pensava ele abrigar sob o mesmo teto todos os filhos e dependentes, sonho impossível. Apesar desse aspecto visionário, meus irmãos Ives, João Carlos e eu lá moramos, já casados, por breve período. Naquele período, basicamente nada existia no bairro. Inúmeros terrenos baldios e ruas sem pavimentação, mormente após duas ou três quadras da Avenida Portugal em direção ao Rio Pinheiros, assim como fossas sépticas e poços domésticos nas residências. Nesse segmento do bairro via-se imenso brejo com terra escura, que se encharcava no período das chuvas.

No piso inferior da grande casa não havia janelas que dessem para a avenida. A imensa sala de visitas tinha-as voltadas para as laterais da moradia. Tendo conhecido um artista plástico italiano que passava por São Paulo – infelizmente não nos lembramos de seu nome -, nosso pai contratou-o para fazer um grande mural em mosaico com motivos musicais, já a pensar em futuro Conservatório a ser dirigido por João Carlos e por mim, vontade que nunca se realizaria, por motivos vários concernentes às trajetórias diferenciadas dos irmãos.

O mural ficou pronto no momento da inauguração da casa. Era motivo de muita curiosidade. Na residência que abrigava sete pianos, sendo três de concerto na sala principal, meus pais realizaram inúmeros recitais, deles sempre com a participação de João Carlos e a minha, assim como audições de piano de nosso professor José Kliass. Lá se hospedaram os portugueses Fernando Lopes-Graça (compositor), Sequeira Costa (pianista), Ivo Cruz (compositor), Manuel Ivo Cruz (regente), a pianista francesa Maria Therèse Fourneau e tantos outros. Figuras ilustres da música brasileira, como Guiomar Novaes, Antonieta Rudge, Madalena Lébeis, Camargo Guarnieri, Eleazar de Carvalho, Souza Lima, o compositor argentino Alberto Ginastera e tantos mais frequentaram a grande morada.

Com o passar dos anos e dificuldades que nossa mãe passaria a sentir ao subir escadas, os pais se mudaram para a região da Paulista e lá permaneceram. A casa foi alugada e, desde o primeiro inquilino, cobriram com massa e tinta o grande mural-mosaico. Locatários se sucederam e novas pinturas sobre a pintura trataram de mais ainda tornar o mural “soterrado”. Com a morte de nossos pais, a casa foi finalmente vendida. Alugada há anos para a Academia Brasileira de Arte (ABRA), escola que presta relevante papel junto à comunidade com seus cursos especializados e exposições, novamente a parede aludida recebeu novas pinturas.

Laerte Galesso é meu amigo e dirige a ABRA. Encontramo-nos muitas vezes, seja em exposições de pintura – uma delas do excelente Luca Vitali, que tantas ilustrações criou para meu blog – ou pelas ruas de nossa cidade-bairro. Desde 2007 menciono ao Laerte a existência daquela obra de arte oculta, mural que apenas em uma antiga foto parcial era conhecido. Disse-lhe que seria necessário resgatá-lo. Neste 2011, Laerte empreendeu com seu irmão Evaldo a retirada das muitas camadas de pintura. Quase que diariamente compareci a essa exumação, que necessitou de acurada sensibilidade por parte de Evaldo. Com formão sensível conseguiu retirar, com rara habilidade, as muitas camadas de pintura, sem destruir mínimo segmento do grande mural. Finalmente, após trabalho sereno, árduo, mas sem a pressa que elimina o bom desempenho, conseguiram os irmãos revelar o mural-mosaico, realizado em 1957, mas encoberto desde o começo dos anos 70.

Como era intenção de nossos pais transformar a casa em um Conservatório, o grande mural de 12m por 3m exibe motivos do universo da música: lira, alaúde, dançarinos - extremamente bem elaborados - e, a preponderar, um imenso teclado perpassado pelo pentagrama, a preconizar os futuros de João Carlos e o meu.

Neste dia 9 de Dezembro haverá a reinauguração. Parte de uma história relativamente recente, mas que fora apagada, retorna em plena pujança. A ABRA está de parabéns, e a comunidade da cidade-bairro poderá doravante ter diante dos olhos uma obra artística especial. Façamos votos para que vândalos, que infestam a cidade, não a destruam. Oxalá não a importunem. Votos também para que outro tipo de destruidores do passado da cidade, as incorporadoras, não tentem adquirir, com a avidez que lhes é peculiar, essa morada hoje com seu mural-mosaico, uma obra de arte recuperada da cidade-bairro Brooklin-Campo Belo.

In the fifties my father commissioned from an Italian artist a mosaic mural to adorn the facade of our home in São Paulo. The years went by, my parents moved into an apartment, the property was rented and the mural – a tribute to the arts, displaying dancers, a lyre, a lute and a giant keyboard – was covered by layers of cement and paint. The current tenant is ABRA  (Brazilian Academy of Art), a school of arts. The director, at my suggestion, agreed to restore the mural, and it will be re-inaugurated on 9 December. A work of art recovered and offered as a gift to the community.