Da Narrativa ao Conto

… os heróis desses quinze contos não deveriam jamais esquecer
que as leis do destino e as forças da natureza
são mais pujantes do que desejos e esperanças.
Não adianta o homem se agitar na luta pela existência,
pois a vida, mesmo quando não tem bom início,
termina sempre mal. Lembre-se,
uma lamentável queda vale mais do que um fim insignificante.
Sylvain Tesson

Uma das condições essenciais do conto é a brevidade e o espírito de síntese. Gênero específico da literatura, ao longo dos séculos escritores se notabilizaram no mister. Sob outra égide, o conto pode apresentar várias fontes de ideias. Entre essas poder-se-ia mencionar a criação “abstrata”, quando toda a trama do conto, personagens e situações vêm à mente do autor de maneira inédita, sem “contágios” imediatos. Uma outra temática pode advir de fato real que se passou na vida do contista, mas inédito, ou seja, não transmitido a um interlocutor. Uma terceira, entre tantas, refere-se ao outro, aquele que está a passar por momento hilariante ou trágico e que, retido na mente do contador, dimensiona-se através da pena. Nessa metamorfose, as situações observadas recebem tintas novas e a imaginação do contista dá a pintura final ao quadro.

Reunidos, contos podem ser ingeridos pelo leitor de maneira homeopática. Curtos e sem sequência, a leitura rápida pode ser feita no espaço temporal exato, a propiciar ao amante da leitura a possibilidade de que o cronômetro mental seja acionado em situações precisas: espera de consulta médica ou exames laboratoriais, viagens curtas, o aguardo em oficina mecânica, a proverbial paciência para atendimento em repartição pública, seja ela qual for. Nessas situações em que o tempo se nos afigura estanque, o conto é precioso companheiro e pode ser degustado sem pressa.

Foram muitos os livros de narrativas de Sylvain Tesson que resenhei ou comentei desde Maio de 2011. Andarilho na grande maioria das obras e “eremita” nas florestas da Sibéria, às margens do lago Baikal, Tesson revelar-se-ia pensador brilhante sobre as experiências vividas diuturnamente.

Em Une Vie à Coucher Dehors (France, Gallimard, 2009) Sylvain Tesson é contista. Obteve o festejado Prêmio Goncourt, categoria contos, em 2009. Nesse ano, Gallimard faria a edição econômica, selecionando cinco dos quinze contos do livro premiado, L’Éternel Retour.

Une Vie à Coucher Dehors foi lido ao longo de certo tempo, de maneira homeopática, entremeado a outros livros percorridos alopaticamente. Os interregnos serviram para melhor compreender as intenções do narrador, doublé de contista, nesse intrigante livro.

Parte considerável dos contos surge do destilar de incontáveis observações ao longo de dezenas de milhares de quilômetros caminhados. O acúmulo do olhar arguto estaria a demonstrar que o tempo do narrador nem sempre coincide com o hipotético tempo do personagem, real ou imaginado. O caráter dos figurantes deve certamente esbarrar na realidade observada. As asas da imaginação dão sentido e vida aos tantos que penetram os contos. Muitos deles vivendo na geografia que um dia abrigou os passos do narrador de aventuras.

Considere-se que todos os quinze contos têm final trágico ou infeliz, fazendo jus à epígrafe. Esse ceticismo quanto ao relacionamento humano, às distorções de pensares e ambições, ao desinteresse pela condição humana, ao conformismo, à ignorância são temas que perpassam o livro. Tem-se hilariantes histórias de homens do mar em La Chance, que não impedem a morte do anfitrião em queda acidental banal; a relação serena penetrada pelo ciúme e desconfiança afetiva,  levando à tragédia em La Crique; a ignorância de náufragos após tempos em ilha deserta, tornando-os irracionais, em L’île. Os personagens de L’Asphalte e Le Lac devem ter sido criados considerando-se as narrativas reais de Éloge de l’Energie Vagabonde e Dans les Forêts de Sibérie, pois o autor seguiu em bicicleta os caminhos do petróleo e do gás da alta Ásia à Turquia e permaneceu seis meses às margens do lago Baikal, respectivamente. Personagens que povoam l’Asphalte e situações inusitadas, relacionadas à construção de uma estrada de betume acalentada com ardor pela figura central, não deixam traços do desfecho duplamente trágico, pois o que é bom para a comunidade pode ser a desgraça para o idealizador da benfeitoria. Em Le Lac, o temido urso, sempre mantido à distância nas narrativas de Tesson, é o vilão da história que tenderia a final ao menos tranquilo.  Em La Particule, sob outro contexto, há semelhança no desenrolar da história com “A Voz de um livro”, de Edmondo de Amicis (vide post  A voz de um livro.19/02/2010). Se de Amicis escreve na primeira pessoa sobre as tantas mãos pelas quais um livro pode passar ao longo de sua duração, em La Particule Tesson engenhosamente historia, também na primeira pessoa, a “viagem” de uma partícula que sobe aos ares após deixar o corpo de um brâmane que acabara de ser cremado e incorpora-se, progressivamente, a outros seres vivos vegetais ou animais. Ao final, implora: “e eu, miserável partícula, célula anônima, pobre poeira de átomo, eu vos suplico, ó Deus do céu, de me dar repouso, de me libertar do ciclo e de me deixar ganhar o vazio…”.

Seria possível entender que ao criar figurantes, Tesson tenha se desviado de uma escrita espontânea, que brota do dia a dia da narrativa. O estar vivendo o instante do acontecido, como afirmava Vladimir Jankélèvitch, dá ao narrador, inclusive, o timing da pulsação. Preciso em suas anotações – pois Tesson tudo assinala em suas viagens – o fixado pelos sentidos e, por vezes, metaforizado em belas imagens, ganha uma naturalidade ocasionalmente perdida na  redação dos contos. Em outro contexto, o conto de Tesson adquire uma imaginária “veracidade”, pois o autor, em tantos textos desse gênero literário, conheceu lugares, costumes e pessoas as mais diversas. Sente-se, em alguns momentos, o amálgama ficção-realidade

A leitura de Une Vie à Coucher Dehors tem interesse. A configuração dos enredos, a descrição minuciosa dos personagens de culturas tão díspares e a brilhante redação teriam sido primordiais para o recebimento de uma das láureas mais cobiçadas em França, acima mencionada. O autor fez jus.

I have already reviewed many non-fiction books by the French explorer and writer Sylvain Tesson, describing his adventures in remote areas of the globe. This time I’ve read Une Vie à Coucher Dehors (translated into English as “A Life of a Mouthful”), winner of the Goncourt Prize for short story books in 2009. His stories, both good humored and pessimistic, wrestle with the big questions of life and, though fictional, it’s possible to say that Tesson brings to them many of the memories and experiences of his time spent in the wilderness.