Navegando Posts publicados em maio, 2014

Cláudio Giordano e a Observação Cirúrgica da Humanidade

O futuro da humanidade e da vida na Terra é muito incerto.
Corremos o risco de nos destruirmos graças à cobiça e à estupidez.
Stephen Hawking

Antes da compaixão a humanidade precisa da equanimidade que,
mais do que um sentimento, é uma atitude de razão.
Cláudio Giordano

Viver a sétima década resulta em uma série de sedimentações do pensar e na observação, possivelmente mais arguta, do mundo que nos cerca. Cláudio Giordano, aos 75 anos, é um sábio e assiste ao cotidiano com perspicácia, nostalgia, temor, incertezas quanto o post-mortem, mas amando estar vivo e presenciar… A integridade ético-moral de Cláudio Giordano é comovente. Editor esmerado e perfeccionista, visionário tantas vezes, cultivou através dos decênios as obras em que acreditava. Os livros editados por Giordano estão sempre sob a égide da qualidade, mormente aqueles destinados às pequenas tiragens. Nada lhe escapa, apenas o mercantilismo de nossos dias. Nunca luta contra o tempo, pois se percebe em suas edições que a maturação da arte de diagramar, compor um livro, entender a feitura de cada autor só seria perceptível àquele iluminado pelo talento nato e amoroso. É Giordano um compulsivo pela edição? É-o, na medida em que está diuturnamente em contato com o livro. É-o, na dedicação amadorística – amador nas acepção sensível da palavra – à coleção de livros, pois bibliófilo vocacionado. Toda a sua imensa coleção foi doada à Unicamp, lamentando-se tão somente a lentidão da instituição na catalogação e exposição conveniente dos volumes, preferencialmente sua brasiliana. Nanico, revista que permaneceu durante um bom tempo, é o perfil – não no nome – do perfeccionismo giordaniano. Textos curtíssimos de amigos autores consagrados, pílulas literárias, poemas de antanho e indicações preciosas. Um primor de edição.

Cláudio Giordano é um homem simples, se considerarmos a volúpia social pelo lucro. Diria mesmo que há em Giordano o desprendimento que caracterizou alguns notáveis santos da Igreja Católica. Sua vida é quase monástica, seu desapego ao consumo, luxo e desperdício é proverbial. Que o digam todos os autores que tiveram o privilégio de merecer edições da Giordanus.

Acumularam-se as experiências. Poder-se-ia dizer que “Mediocridade” (São Paulo, Giordanus, 2014), que ora nasce, é o resultado do pensamento do autor frente a esse mundo distorcido e incompreensível, tanto no aspecto terreno como no sobrenatural. A pequena tiragem (150 exemplares) bem demonstra o recato, a fuga da mass media, o despojamento e a interioridade. Cláudio Giordano não escreve para a multidão, mas sim externa, no pequeno livro de 93 páginas, suas inquietações mais profundas, e o faz pela primeira vez. Dir-se-ia um desvelamento pleno, sem subterfúgios ou mistificações. Abre-se por inteiro.

“Mediocridade” divide-se em duas partes distintas. A primeira, constituída por VII breves capítulos, que bem poderíamos definir como doutrinária, sem intenção acadêmica. Giordano, de maneira exemplar, apresenta-se tal e qual seus 75 anos indicam: dúvidas, incertezas, declínio físico inexorável, mas esperançoso, a querer ainda observar o que se passa no planeta. As situações, que demonstrariam certa nostalgia, fazem-no edificar um texto reflexivo de altíssima apreensão do vivido e assimilado. “Mesmo não podendo dizer que sou feliz (nem que deveras o tenha sido ao longo destes setenta e poucos anos), desde que aprendi a pensar e refletir sobre a existência não cesso de gostar de estar vivo, de agradecer à natureza o dom da vida, e ao mesmo tempo de abater-me, ao pensar que a qualquer momento deixarei de existir”. Continua: “Pois eu quisera não desaparecer, quisera que, morto, restasse ainda alguma consciência de mim capaz de continuar a observar a aventura humana”.

Giordano menciona um livro que marcou nossa geração e continua atual, “O Homem Medíocre”, do pensador ítalo-argentino José Ingenieros (1877-1925). Serviu-nos de norte, assustava-nos a ideia desse pragmatism que leva à perda da identidade e do pensar individual, das características até sombrias do homem. A menção serve para Giordano autoanalisar-se, considerando-se “medianamente dotado do que chamamos inteligência e nulamente prendado no que tange a habilidades”. Não concordaria com o medianamente, pois o autor tem profundo senso dedutivo e cultura invejável, adquirida nesse mergulho abissal que tem realizado no universo dos livros.

Agnóstico, sente-se impossibilitado de acreditar na existência de Deus unicamente pelo fato de que sua inteligência não o permite. “Se existe esse criador (obviamente meu criador também), ele é de tal forma  ‘superior’ a mim que não encontro a menor chance de entender suas ações e propósitos”. Para Giordano, o Deus que faria sentido “jamais criaria um universo tão contraditório como este em que vivemos, povoado de dor, de atrocidades, de calamidades, de seres que se devoram ou se matam, seja por instinto inelutável seja por crueldade, vale dizer, por uma ação voluntária”. Há um certo humor ao abordar a possível discussão com um ateu. A existência do autor não sofreria alterações numa provável dialética que se lhe apresentasse da passagem “do não saber se Deus existe” para “a convicção de que ele não existe”.

O egoísmo é um dos focos de “Mediocridade”. Revolta-o o egoísmo exagerado, a busca do lucro sem o menor princípio moral, a insanidade que se apossa deste planeta. Trata-os como chagas que atingem a humanidade. Incomoda-o a preocupação única do homem com os seus interesses. Observa: “O que se vê e a história nos mostra é a triste evidência da mais elementar irracionalidade do ser humano em sociedade, a começar pelas guerras e indústria armamentista, e terminando pelos sistemas políticos, econômicos, religiosos etc., que regem as sociedades: democracia, teocracia, islamismo, marxismo, budismo, imperialismo, cristianismo, monarquismo, capitalismo e o diabo a quatro”.  Não estamos a assistir o recrudescimento da insanidade no planeta e, hélas, em nosso país?

Com precisão e sensibilidade, Cláudio Giordano, como evidência da evolução “intelectual” do homem através dos tempos – provocação talvez -, apresenta fragmentos de textos basilares e por vezes contraditórios, mas escritos por notáveis autores.  Montesquieu (1689-1755), em “O Espírito das Leis” 15º, capítulo V, ao “demolir” a imagem do negro com a maior naturalidade escreve: “Impossível aceitar a ideia de que Deus, ente sapientíssimo, tenha posto uma alma, em especial uma alma boa, em corpo inteiramente negro” (sic). Vivesse nos nossos dias!!! Fernando Pessoa (1888-1935) está presente (Alberto Caeiro); Cervantes (1547-1616) e excertos de D.Quixote, que nos surgem com absoluta atualidade. Atualíssimo também “O Mínimo Vital”, do jornalista, filósofo, poeta e político salvadorenho Alberto Masferrer (1868-1932). “Apologia de Sócrates”, de Platão (428/427 a.C – 348-347 a.C), apresenta-nos Sócrates frente à morte, elucubrando sobre seus acusadores e aceitando o desfecho final como dádiva, pois eventualmente estaria no Olimpo com notáveis que admirava. Do grande escritor Nikias Kazantzakis (1883-1957) Giordano extrai segmento de “Vidas e Proezas de Aléxis Zorba”. Henry Miller (1891-1980) discorre sobre graves problemas sociais norte-americanos, fragmento extraído do livro “Sexteto”, artigo “China”. Temos também poema pleno de metáforas, “Lo Fatal”, de Ruben Dario (1867-1916), poeta nicaraguense; fragmento de “Em que creem os que não creem”, do escritor Eugênio Scalfari (1924- ); a evocação de um Deus onipresente em toda a vida humana, animal e vegetal, feita por Karen Armstrong (1944- ), e uma apologia da autora inglesa às Artes “Religião e arte são atividades parecidas. Ambas tentam explicar de forma não racional o que não pode ser explicado, como a mortalidade, a injustiça e a dureza da vida. Parece algo simples, mas alcançar Deus requer disciplina e discernimento”. Giordano insere ainda excerto do “Discurso sobre a desigualdade dos seres humanos”, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), e igualmente pensamentos de Stephen Hawking (1948- ). De Étienne de la Boétie (1530-1563), extraiu um segmento do “Discurso sobre a servidão voluntária”. A obra foi escrita quando o autor beirava os 20 anos e é de uma clareza absoluta a abordar o tirano e os súditos, mostrando que passivamente estes aceitam o jugo, mas que se estiverem unidos, a situação pode reverter-se. Um verdadeiro grito contra o absolutismo. Curiosamente, li a obra em francês e posteriormente, na década de 1980, em tradução para o português. Estava plena de explicações e notas de rodapé, bem ao espírito acadêmico, e que suplantavam a dimensão dessa obra-prima. Todas dispensáveis, pois a transparência e a atualidade do texto de La Boétie não necessitam de elucubrações.

“Mediocridade” é um pequeno Grande livro. Tanto gostei que li por duas vezes com profundo interesse.

This post is about the book “Mediocridade”, written by my friend and perfectionist editor Claudio Giordano, in which he addresses many issues that plague our society. Excerpts from great authors supporting the views of the author complete the book.

 

 

 

Considerações Relevantes

Na realidade, o único terreno de experiência
é o compositor no momento que está a compor,
e o único observador possível é esse mesmo compositor.
André Souris

Sempre que abordo um tema técnico de minha área, faço-o com prudência. Sei que para muitos leitores a abordagem pode se apresentar um pouco árida. Contudo, a não vinculação que sempre tive, desde o primeiro post de Março de 2007, com qualquer mídia de ampla divulgação escrita, falada ou de imagem, dá-me a possibilidade de “narrar” o meu cotidiano mental e transmiti-lo. Sendo a música uma das minhas prioridades temáticas, por vezes assunto mais teórico surge e, na medida do possível, busco “amenizá-lo” para os que me proporcionam, certamente, o estímulo maior para a continuação do pensamento-texto.

O post de 26 de Abril suscitou inúmeros posicionamentos a respeito do denominado sistema temperado de afinação. Séculos após sua sedimentação, há ainda o que se dizer a respeito. No texto em apreço concentrei-me nos instrumentos de teclado, mormente o piano, pois o substancioso artigo de Adolfo Salazar El Clave Temperado dava ensejo a essas observações.

O compositor e pensador francês François Servenière escreveu-me logo a seguir, ampliando o leque relativo à afinação. Expandiu observações, a considerar a orquestra igualmente e a magia da afinação diferenciada para os muitos instrumentos. Faz igualmente outros comentários sempre pertinentes e ricos. Transmito-os ao leitor com algumas semanas de atraso, devido a outros posts já agendados. Comenta:

“Precisamos voltar aos fundamentos da música e explicar os harmônicos de um denominado som fundamental, o que permite esclarecer o leigo sobre a questão…, assim como o que deriva dessa explicação. O temperamento é, como você bem demonstra, um progresso, mesmo se outros instrumentos  permitam todas as variações de altura e também da massa do som orquestral. O que torna rica uma orquestra é justamente a não exatidão do temperamento entre os diferentes grupos de instrumentos, suas qualidades e defeitos inerentes a cada executante e instrumento, os harmônicos próprios para cada material, o que demonstra a análise de Jean-Baptiste Fourier (1768-1830). É impressionante e antiperfeccionista, mas é fato. Diga-se, o ouvido dos instrumentistas não é o mesmo. Há diferença de escuta entre o intérprete de teclado que ouve com os dois ouvidos; aquele de instrumentos de cordas que pode escutar com um ou dois, a depender da dimensão do instrumento e sua posição sobre seu corpo; o executante de instrumentos de sopro que também trabalha com a ressonância de seu crânio; o cantor que fará vir de sua garganta e de seu ventre e que até pode ficar, por vezes, incomodado pela ressonância em seus ouvidos. Apesar da evolução da afinação através de séculos e milênios (http://home.scarlet.be/johan.broekaert3/Tuning_French.html ), haveria particularidades de interpretação das percepções de altura dos sons muito diferenciadas, o que é lógico. Isso pode ser sentido nos estilos de música e nas regiões onde são praticados. Alfred Tomatis colocou em evidência a diferença da altura do som e a problemática dos instrumentos em regiões úmidas, secas, ao nível do mar ou na altitude. A depender dessas circunstâncias, o som produzido não é o mesmo em função das proporções do gás utilizado (azoto, oxigênio…).

Sob outro aspecto, a eletroacústica e suas ilimitadas variações autorizam-nos a pensar que a música e suas cores são infinitamente variadas, como o são as cores do arco-íris, com nuances sem conta entre todos os tons. Ao mesmo tempo, pelas cores do céu a humanidade também definiu, a partir de Pitágoras, as cores fundamentais (amarelo, vermelho, azul), cores secundárias misturadas às primeiras e, enfim, todas as variedades de cores decorrentes de todas as misturas seguintes. Na música dá-se o mesmo. As cores fundamentais são o temperamento e seus 7 graus principais, etc…  Depois vêm os semitons, os sustenidos, os bemóis. Com todas as inversões potenciais decorrem a 7ª, a 9ª e a 11ª (Servenière se refere aos intervalos)… e, a partir daí, a serpente morde a cauda… Inútil irmos em direção ao microtonal, pois todas as cores potenciais estão presentes. Adicione a essa efervescência potencial as monstruosas variações naturais tonais dos instrumentos e das vozes e você terá o arco-íris de que falávamos acima. Não estaria evidente? Qual a razão de se querer recriar artificialmente, pela eletroacústica e o microtonal, uma situação que existe naturalmente pela acústica original e o temperamento, se este é utilizado com todas as suas potencialidades? O problema da música microtonal é que ela se diferencia pouco do arco-íris. Mostra-se tão vasta em cores, em nuances e em sons e tão pouco precisa em temperamento (em nossos idiomas essa palavra também designa caráter e personalidade), pois, paradoxalmente, ela não tem mais caráter, temperamento, tampouco personalidade. Eis a realidade acústica, semântica e simbólica. Quando você fala dos compositores eletroacústicos adeptos da última geração de instrumentos eletrônicos e vivendo de subvenções para as encomendas de obras que terão uma, quiçá duas apresentações, observei que eles funcionavam por vezes como fornecedores-testadores de softwares. Seria aproximadamente o caso do arquiteto que, ao utilizar um software de arquitetura, acabasse por trabalhar só com software. É o que se passou no IRCAM, como todos sabemos. Um pedreiro utiliza sua pá para fazer cimento. No dia em que essa pá passa a lhe interessar mais do que o muro a ser construído, seria melhor que ele mudasse de métier! Tive colegas que foram testadores de softwares e que, originalmente, foram músicos. Eis a armadilha da modernidade eletrônica. Esses passos sempre me foram estranhos. Escolhi os melhores softwares para que eles me ajudassem no plano prático, gráfico e sonoro. O importante é que a música estava dentro de mim. Como você, que escolhe para suas gravações os melhores instrumentos Steinway, que só existem a partir do aperfeiçoamento que vem do cravo, do pianoforte… Não sou criador de software, como você não é fabricante de piano. Em seu e-mail você escreve algo relevante em que eu também acredito. Na literatura, como na música, o alfabeto e a gramática não mudaram nada ou quase nada através dos séculos. Hoje, os ‘modernos contemporâneos’ gostariam de mudar a gramática e a ortografia, até o alfabeto. Imagine um pouco o ‘beco sem saída’ que representa esse projeto insano! Tentar a mudança das cores do planeta, seu alfabeto, suas línguas? Estamos realmente na Torre de Babel! Que pretensão desses falsos demiurgos? A pretensão maior vem quando eles explicam suas proezas intelectuais incríveis… na mais bela língua de Molière, de Shakespeare, de Goethe, de Camões, de Cervantes ou de Dante. Veja bem, eu acreditava que eles queriam mudar as cores do mundo, seu alfabeto, sua gramática, o próprio mundo. Pensei que gostariam de nos fazer passar da ‘obscuridade à luz’, nós, pobres ignorantes e cegos, como eles diziam. Ter-nos-iam mentido? Ideologia Mentirosa implica Duplicidade de Comportamento, implica Resultados Calamitosos. São fatos universais”. (tradução J.E.M.)

A periódica inserção de posições de François Servenière, que muito me honra com seus e-mails sempre provocadores, ajuda-nos a observar uma outra percepção, no caso do músico francês que está permanentemente a buscar na criação seu foco de vida.

My post of last April 26 was about the well-tempered tuning with focus on the keyboard. Now I transcribe François Servenière’s views on the tuning of various instruments, with worth reading comments about the electroacoustic music.

 

 


Compositor e Professor de Imenso Valor

A entidade musical apresenta pois,
essa estranha singularidade de conter dois aspectos,
de existir simultânea e distintamente
sob duas formas separadas uma da outra pelo silêncio do vazio.
Essa natureza particular da música
comanda a sua própria vida e suas repercussões na ordem  social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

A morte sempre causa impacto, seja de quem for. O desaparecimento de um músico da maior qualidade, com quem mantive relacionamento de amizade e musical, não deixa de ser sentida no âmago.

Conheci Mario Ficarelli nos anos 1950 e frequentamos a Academia Paulista de Música nos meados da década. Para o leitor, diria que a Academia teve entre seus docentes alguns dos mais competentes músicos, cujos nomes ultrapassaram fronteiras. Fato muito raro em São Paulo, seja em Conservatório ou em Universidade. Entre seus mestres, professores de altíssimo nível. O Brasil voltado à música clássica conhecia sobejamente todos os nomes que se seguem: Eleazar de Carvalho, José Kliass, Souza Lima, Caldeira Filho, Fritz Jank, Dinorah de Carvalho, Raul Laranjeira, Bernardo Federowsky, Jaime Ingram, entre outros mais. Uma verdadeira seleção de expoentes. Mario Ficarelli não apenas estudava composição, como exercia funções administrativas que o ajudaram a manter seus estudos. Num período em que a classe estudantil apenas pensava música, o convívio aluno-mestre tornou-se verdadeiro amálgama.

Estou a me lembrar de um verdadeiro companheirismo e aprendi, desde esse período, a admirar Ficarelli por suas posições firmes e dedicação exemplar à música. Antes de completar o curso recebi bolsa do governo francês, após premiação em concurso de piano em Salvador, e permaneci vários anos em Paris. Ao regressar ao Brasil, encontramo-nos em muitas oportunidades, sempre prazerosamente e, no início dos anos 1980, ao ingressar no Departamento de Música das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), partilhamos nossa vida acadêmica, que se prolongaria definitivamente na Universidade de São Paulo logo após.

Essa introdução se fez necessária, pois ligações de amizade de quase seis décadas merecem a lembrança. Mario (sem o acento agudo) foi um de nossos maiores nomes na composição brasileira. Teve a coragem, em período em que se “degladiavam” nacionalistas e vanguardistas, de não se filiar a nenhuma corrente e seguir um caminho seguro, o que levaria ao respeito nacional e, sobretudo, internacional. Sob outra égide, Ficarelli jamais negou a existência de seus eleitos. Entre eles, Jean Sibelius, Gustav Mahler, Igor Stravinsky. Debruçou-se sobre as sete sinfonias de Sibelius e defendeu magnífica tese de doutoramento na Universidade de São Paulo. Participei do júri. Logo após realizaria o concurso de Livre-Docência, a abordar sua Sinfonia nº 2, Mhatuhabh. Como compositor praticou uma linguagem de altíssima competência, a obedecer unicamente aos seus propósitos interiores.

O catálogo de Mario Ficarelli é extenso, a abranger mais de 150 obras para formações instrumentais as mais diversas, como sinfônica, cênica, vocal, coral e camerística. Sua obra deverá permanecer pela qualidade e independência.

Mario Ficarelli legou-nos uma bibliografia de síntese, conceitual. Há em seus escritos a necessidade de expor posições firmes e sinceras. Mestre ao abordar a elaboração de suas próprias criações, não escondendo os processos que levariam à definição de uma obra. Como professor, acredito ter sido um dos mais competentes entre os que conheci na Universidade de São Paulo, pois concentrava-se essencialmente na obra musical, analisando-a com acuidade e sem vacilos. Em suas aulas inexistia a palavra tergiversar e aqueles que tiveram o privilégio da formação segura sob seus cuidados são testemunhas. Inúmeras vezes conversamos sobre temas em que eu estava a trabalhar, como Rameau, Scriabine, Debussy, Henrique Oswald, música contemporânea. Por vezes éramos rodeados por alunos conscientes. Momentos para lembrar.

Nossa relação amistosa jamais teve um senão e recebi de Mario quatro peças para piano, tendo apresentado três delas em primeira audição. Pegadas na Areia (São Paulo 1983),  Minimal-Ciranda (São Paulo, 1987), Estudo nº 3 (Gent – Bélgica, 1996). Pegadas na Areia e Minimal-Ciranda integrariam cadernos que editei na USP em homenagem a Henrique Oswald (1985) e Villa-Lobos (1987), respectivamente. Essa última peça gravei-a posteriormente na Bulgária para o CD Music of Tribute, dedicado ao autor das Bachianas e lançado pelo selo Labor (USA). Sobre a peça, escreveu François Servenière (2011): “O minimalismo de Mario Ficarelli é impressionante, pois mesmo que a consideremos divertida, simples, repetitiva e cíclica, seu interesse reside nas ínfimas variações, que nos hipnotizam como uma serpente naja no instante do ataque”. Quanto ao Estudo nº 3, gravado na Bélgica para o CD Estudos Brasileiros para piano e lançado pela Academia Brasileira de Música, Servenière comenta: “No Estudo nº 3 há todo o potencial de dissonância da linguagem contemporânea. As harmonias são na realidade politonais e trabalham sob essa particularidade dos harmônicos característicos dos instrumentos de cordas. O final tem cadência mais tonal”. Paradigmas – Estudo nº 4 teve a première realizada por minha mulher, a pianista Regina Normanha Martins (Rio de Janeiro, 2001). A obra veio a integrar o álbum de Estudos para piano que elaboro desde 1985, dele a constar, presentemente, 90 colaborações do Brasil e do Exterior. Essa composição foi dedicada à minha saudosa mãe por ocasião de seu falecimento, em 1999. Mario sempre teve especial apreço pela homenageada. Segundo Ficarelli, a composição Paradigmas “evoca a morte e a ressurreição e foi escrita a partir de alguns de seus mais notáveis símbolos musicais, no entendimento do autor. Não se tratando de meras citações ou colagens, constituem-se em paradigmas que são ordenados de modo evolutivo a partir da morte, perpassando conflitos, vencendo-os, para chegar à vitória do renascimento”.

O nosso desligamento da Universidade de São Paulo pela compulsória, ele em 2005 e eu em 2008, levou-nos a comunicações mais raras, mas nunca desprovidas de afeto. Quando de minha eleição para ingresso na Academia Brasileira de Música, como membro honorário, em 2010, foi dele, membro efetivo imortal, uma carta que me emocionou.

O diálogo competente entre Mario Ficarelli e Roberto Duarte e a profunda amizade entre os dois, tendo a música como fulcro, levou-me a convidar o ilustre maestro para que escrevesse um depoimento sobre o compositor. Transcrevo-o ao prezado leitor:

O amigo-irmão Ficarelli

“Assim nos tratávamos, pelo sobrenome, sem que isto tivesse qualquer intenção de formalidade. Apenas hábito.

Ficarelli era um mestre por excelência. No latim ele encontrou o título para uma das suas mais interessantes obras, Transfigurationis, encomenda do Maestro Eleazar de Carvalho para a temporada de 1981 da OSESP. Tive a honra de regê-la em sua estreia mundial. Dois fatos curiosos (transformações) aconteceram à época dos ensaios e da apresentação da obra: 1. iniciava-se entre nós uma sólida amizade; 2. tornei-me vegetariano. Efeito da obra ou mera coincidência?

Desde Transfigurationis nota-se o cuidadoso uso da percussão, que para Ficarelli não era um mero acessório e sim parte integrante da ideia geradora da obra. Duas notas (fá-mi) são o ponto de partida. Correspondem ‘às duas frequencias que caracterizam a Terra’… ‘Kepler, em sua terceira lei, determina que os planetas produziriam determinados sons quando da realização de seus movimentos no espaço’, como explicava Ficarelli. Suas harmonias são ora audaciosas, ora simples, transitando do tonal ao atonal. A obra termina com uma simples e literal citação do primeiro tema da Nona Sinfonia de Beethoven.

A Segunda Sinfonia ‘Mhatuhabh’, inspirada no livro I nostri amici extraterreni, de G. Grosso e U. Sartorio, foi dedicada a mim e a Tonhalle-Orchester Zürich.

Sua estreia, sob minha direção, ocorreu em Zurique, em 1992, com a Tonhalle-Orchester.

Duas páginas, com detalhadas explicações sobre a elaboração dos temas, foram anexadas ao autógrafo, com a recomendação de só serem reveladas após a sua morte.

Mhatuhabh tem Introdução e cinco movimentos e segue um programa. Sua apresentação em todas as grandes salas em que a dirigi (Zurique, Moscou, São Paulo e Rio de Janeiro) recebeu do público os mais efusivos aplausos.

Na partitura ao concluir a Sinfonia Ficarelli escreveu:

A Terceira Sinfonia, escrita sob estipêndio da Fundação Vitae, foi composta em 1992, durante sua estada na Europa. Propositalmente diferente da Segunda, sem deixar de ter a força e a vitalidade características do compositor. Sua primeira audição só foi realizada em 1998 pela (nova) OSESP, sob minha regência.

Para Sinfonia, última produção sinfônica de Ficarelli, foi uma das obras comissionadas pela Funarte para a XX Bienal. Pouco depois de concluído o trabalho, em um jantar no Rio, acompanhado de sua adorada Silvia, ele me disse com aquele seu típico ar solene-brincalhão e voz empostada: ‘Duarte, espero que você seja o regente da Para Sinfonia, mas prepare-se para suar a camisa, pois é uma obra forte e muito dinâmica’. Quis o destino que eu realmente a regesse em outubro de 2013 no Theatro Municipal do RJ, à frente da Orquestra Petrobrás Sinfônica.

Na realidade a Para Sinfonia é uma sinfonia completa em três movimentos, executados sem interrupção. As características do compositor estão presentes em cada compasso: Ficarelli sem medo de ser ele mesmo, sem maiores audácias ou extravagâncias, mas com arrojo e a inteligência de sempre. Ritmos fortes, percussão ativa e linhas melódicas simples, mas eficazes, percorrem o movimento inicial. Na parte intermediária, com o coração voltado para o romantismo, o mestre é influenciado pelo Jazz, com um solo de piano e intervenções do Vibrafone, Trompete, Clarineta e Trombone solistas. A conclusão, como não poderia deixar de ser, é otimista, feérica e retumbante.

Um retrato, sem retoques, do próprio Ficarelli”!

No blog do dia 26 de Abril, ao referir-me a quatro compositores brasileiros vivos que admirava, mencionei: Gilberto Mendes, Mario Ficarelli, Ricardo Tacuchian e Paulo Costa Lima. Enviei a Mario o post em questão. Infelizmente não recebi resposta, pois Ficarelli travava sua última batalha.

Clique para ouvir, com José Eduardo Martins ao piano, as seguintes obras de Mario Ficarelli:

This post is a tribute to the outstanding Brazilian composer and my personal friend Mario Ficarelli, who passed away last May 2. Ficarelli left more than 150 works for solo instruments, symphonic orchestra and various ensembles and has been awarded prizes in Brazil, France and Germany. This post also includes words by the prominent Brazilian conductor Roberto Duarte, who was very close to Ficarelli and premiered many of his works.