Cláudio Giordano e a Observação Cirúrgica da Humanidade
O futuro da humanidade e da vida na Terra é muito incerto.
Corremos o risco de nos destruirmos graças à cobiça e à estupidez.
Stephen Hawking
Antes da compaixão a humanidade precisa da equanimidade que,
mais do que um sentimento, é uma atitude de razão.
Cláudio Giordano
Viver a sétima década resulta em uma série de sedimentações do pensar e na observação, possivelmente mais arguta, do mundo que nos cerca. Cláudio Giordano, aos 75 anos, é um sábio e assiste ao cotidiano com perspicácia, nostalgia, temor, incertezas quanto o post-mortem, mas amando estar vivo e presenciar… A integridade ético-moral de Cláudio Giordano é comovente. Editor esmerado e perfeccionista, visionário tantas vezes, cultivou através dos decênios as obras em que acreditava. Os livros editados por Giordano estão sempre sob a égide da qualidade, mormente aqueles destinados às pequenas tiragens. Nada lhe escapa, apenas o mercantilismo de nossos dias. Nunca luta contra o tempo, pois se percebe em suas edições que a maturação da arte de diagramar, compor um livro, entender a feitura de cada autor só seria perceptível àquele iluminado pelo talento nato e amoroso. É Giordano um compulsivo pela edição? É-o, na medida em que está diuturnamente em contato com o livro. É-o, na dedicação amadorística – amador nas acepção sensível da palavra – à coleção de livros, pois bibliófilo vocacionado. Toda a sua imensa coleção foi doada à Unicamp, lamentando-se tão somente a lentidão da instituição na catalogação e exposição conveniente dos volumes, preferencialmente sua brasiliana. Nanico, revista que permaneceu durante um bom tempo, é o perfil – não no nome – do perfeccionismo giordaniano. Textos curtíssimos de amigos autores consagrados, pílulas literárias, poemas de antanho e indicações preciosas. Um primor de edição.
Cláudio Giordano é um homem simples, se considerarmos a volúpia social pelo lucro. Diria mesmo que há em Giordano o desprendimento que caracterizou alguns notáveis santos da Igreja Católica. Sua vida é quase monástica, seu desapego ao consumo, luxo e desperdício é proverbial. Que o digam todos os autores que tiveram o privilégio de merecer edições da Giordanus.
Acumularam-se as experiências. Poder-se-ia dizer que “Mediocridade” (São Paulo, Giordanus, 2014), que ora nasce, é o resultado do pensamento do autor frente a esse mundo distorcido e incompreensível, tanto no aspecto terreno como no sobrenatural. A pequena tiragem (150 exemplares) bem demonstra o recato, a fuga da mass media, o despojamento e a interioridade. Cláudio Giordano não escreve para a multidão, mas sim externa, no pequeno livro de 93 páginas, suas inquietações mais profundas, e o faz pela primeira vez. Dir-se-ia um desvelamento pleno, sem subterfúgios ou mistificações. Abre-se por inteiro.
“Mediocridade” divide-se em duas partes distintas. A primeira, constituída por VII breves capítulos, que bem poderíamos definir como doutrinária, sem intenção acadêmica. Giordano, de maneira exemplar, apresenta-se tal e qual seus 75 anos indicam: dúvidas, incertezas, declínio físico inexorável, mas esperançoso, a querer ainda observar o que se passa no planeta. As situações, que demonstrariam certa nostalgia, fazem-no edificar um texto reflexivo de altíssima apreensão do vivido e assimilado. “Mesmo não podendo dizer que sou feliz (nem que deveras o tenha sido ao longo destes setenta e poucos anos), desde que aprendi a pensar e refletir sobre a existência não cesso de gostar de estar vivo, de agradecer à natureza o dom da vida, e ao mesmo tempo de abater-me, ao pensar que a qualquer momento deixarei de existir”. Continua: “Pois eu quisera não desaparecer, quisera que, morto, restasse ainda alguma consciência de mim capaz de continuar a observar a aventura humana”.
Giordano menciona um livro que marcou nossa geração e continua atual, “O Homem Medíocre”, do pensador ítalo-argentino José Ingenieros (1877-1925). Serviu-nos de norte, assustava-nos a ideia desse pragmatism que leva à perda da identidade e do pensar individual, das características até sombrias do homem. A menção serve para Giordano autoanalisar-se, considerando-se “medianamente dotado do que chamamos inteligência e nulamente prendado no que tange a habilidades”. Não concordaria com o medianamente, pois o autor tem profundo senso dedutivo e cultura invejável, adquirida nesse mergulho abissal que tem realizado no universo dos livros.
Agnóstico, sente-se impossibilitado de acreditar na existência de Deus unicamente pelo fato de que sua inteligência não o permite. “Se existe esse criador (obviamente meu criador também), ele é de tal forma ‘superior’ a mim que não encontro a menor chance de entender suas ações e propósitos”. Para Giordano, o Deus que faria sentido “jamais criaria um universo tão contraditório como este em que vivemos, povoado de dor, de atrocidades, de calamidades, de seres que se devoram ou se matam, seja por instinto inelutável seja por crueldade, vale dizer, por uma ação voluntária”. Há um certo humor ao abordar a possível discussão com um ateu. A existência do autor não sofreria alterações numa provável dialética que se lhe apresentasse da passagem “do não saber se Deus existe” para “a convicção de que ele não existe”.
O egoísmo é um dos focos de “Mediocridade”. Revolta-o o egoísmo exagerado, a busca do lucro sem o menor princípio moral, a insanidade que se apossa deste planeta. Trata-os como chagas que atingem a humanidade. Incomoda-o a preocupação única do homem com os seus interesses. Observa: “O que se vê e a história nos mostra é a triste evidência da mais elementar irracionalidade do ser humano em sociedade, a começar pelas guerras e indústria armamentista, e terminando pelos sistemas políticos, econômicos, religiosos etc., que regem as sociedades: democracia, teocracia, islamismo, marxismo, budismo, imperialismo, cristianismo, monarquismo, capitalismo e o diabo a quatro”. Não estamos a assistir o recrudescimento da insanidade no planeta e, hélas, em nosso país?
Com precisão e sensibilidade, Cláudio Giordano, como evidência da evolução “intelectual” do homem através dos tempos – provocação talvez -, apresenta fragmentos de textos basilares e por vezes contraditórios, mas escritos por notáveis autores. Montesquieu (1689-1755), em “O Espírito das Leis” 15º, capítulo V, ao “demolir” a imagem do negro com a maior naturalidade escreve: “Impossível aceitar a ideia de que Deus, ente sapientíssimo, tenha posto uma alma, em especial uma alma boa, em corpo inteiramente negro” (sic). Vivesse nos nossos dias!!! Fernando Pessoa (1888-1935) está presente (Alberto Caeiro); Cervantes (1547-1616) e excertos de D.Quixote, que nos surgem com absoluta atualidade. Atualíssimo também “O Mínimo Vital”, do jornalista, filósofo, poeta e político salvadorenho Alberto Masferrer (1868-1932). “Apologia de Sócrates”, de Platão (428/427 a.C – 348-347 a.C), apresenta-nos Sócrates frente à morte, elucubrando sobre seus acusadores e aceitando o desfecho final como dádiva, pois eventualmente estaria no Olimpo com notáveis que admirava. Do grande escritor Nikias Kazantzakis (1883-1957) Giordano extrai segmento de “Vidas e Proezas de Aléxis Zorba”. Henry Miller (1891-1980) discorre sobre graves problemas sociais norte-americanos, fragmento extraído do livro “Sexteto”, artigo “China”. Temos também poema pleno de metáforas, “Lo Fatal”, de Ruben Dario (1867-1916), poeta nicaraguense; fragmento de “Em que creem os que não creem”, do escritor Eugênio Scalfari (1924- ); a evocação de um Deus onipresente em toda a vida humana, animal e vegetal, feita por Karen Armstrong (1944- ), e uma apologia da autora inglesa às Artes “Religião e arte são atividades parecidas. Ambas tentam explicar de forma não racional o que não pode ser explicado, como a mortalidade, a injustiça e a dureza da vida. Parece algo simples, mas alcançar Deus requer disciplina e discernimento”. Giordano insere ainda excerto do “Discurso sobre a desigualdade dos seres humanos”, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), e igualmente pensamentos de Stephen Hawking (1948- ). De Étienne de la Boétie (1530-1563), extraiu um segmento do “Discurso sobre a servidão voluntária”. A obra foi escrita quando o autor beirava os 20 anos e é de uma clareza absoluta a abordar o tirano e os súditos, mostrando que passivamente estes aceitam o jugo, mas que se estiverem unidos, a situação pode reverter-se. Um verdadeiro grito contra o absolutismo. Curiosamente, li a obra em francês e posteriormente, na década de 1980, em tradução para o português. Estava plena de explicações e notas de rodapé, bem ao espírito acadêmico, e que suplantavam a dimensão dessa obra-prima. Todas dispensáveis, pois a transparência e a atualidade do texto de La Boétie não necessitam de elucubrações.
“Mediocridade” é um pequeno Grande livro. Tanto gostei que li por duas vezes com profundo interesse.
This post is about the book “Mediocridade”, written by my friend and perfectionist editor Claudio Giordano, in which he addresses many issues that plague our society. Excerpts from great authors supporting the views of the author complete the book.