O Final de um Projeto de Longa Duração

O que impede de saber não são nem o tempo nem a inteligência,
mas somente a falta de curiosidade.
Agostinho da Silva

Como intérprete de quatro séculos de música
busco sempre nas partituras as respostas que os compositores defuntos não me podem mais transmitir.
Paradoxalmente, quando trabalho a obra de um compositor ainda vivo,
recorro ao mesmo método de análise
e instauro com a composição o mesmo diálogo interior.
A diferença entre o trabalho sobre uma obra-prima célebre de compositor morto
e aquele sobre obra de um músico contemporâneo
consiste na dificuldade de se adquirir o grau de familiaridade
necessário com a obra nova, enquanto que,
para a aproximação que mantemos com a obra-prima que conhecemos na ponta dos dedos,
torna-se essencial manter o frescor do primeiro contato.
Daniel Barenboim

Ao ser questionado pela dileta amiga, professora Jenny Aisenberg, sobre a sensação que se pode sentir ao verificar que projeto acalentado durante três décadas chega a termo, lembrei-lhe que, no blog anterior, deixei de mencionar o motivo de maior gosto nesse final já anunciado nos primórdios da coletânea de Estudos, em 1985. Que o leitor não me interprete despojado de surdo orgulho. Contudo, o prazer maior deriva da motivação. Convencer um compositor a escrever Estudo, Homenagem ou Peça outra para piano adquire transcendência na medida em que “prenuncia” gestação. A metáfora é pertinente, pois a semente, essa essência essencial que desperta no compositor a ideia, a criação e a obra finda, assim que inserida revolve o limbo, tornando realidade precisa e particularizada parte do acúmulo depositado na mente de um criador. Que maior satisfação pode ter um intérprete ao verificar que, das bem mais de uma centena de composições provocadas – Estudos e outras mais criações -, muitas delas já percorrem o planeta através da interpretação de tantos pianistas do Exterior, tendo, em acréscimo, gravações, algumas referenciais? Ter ajudado a emergir do interior do compositor uma obra, que por vezes nem no seu de profundis constava, essa é a realização primordial do projeto. Provocar. Provoquei. De minha parte, ao executar essas obras, apenas cumpri e cumpro minha função de intérprete, diga-se, aquele que transmite mensagens a outros. Não poucas vezes fiz a comparação – como corredor de rua que sou – do compositor e do intérprete, este preparado para corridas de revezamento, aquele, maratonista, treinado para corridas sem fim, quando sua obra tiver a aura da perenidade.

Não poucas vezes escrevi que raramente me apresento no Brasil. São vários os motivos, entre os quais destaco o fato de jamais ter tido empresário, de me dedicar preferencialmente ao repertório pouco frequentado ou inédito e também pela natural aversão à tendência, bem humana, de estar próximo dos holofotes. Não tenho o menor constrangimento de assim pensar, pois é a realidade, essa tendência existe e traz a paz interior aos seus cultores, mormente na atualidade, onde a busca incessante do brilho pode turvar anseios mais dignificantes. Reinterpretada tantas vezes, a máxima de Buffon (1753), “Le style c’est l’homme même”, não apenas fixaria na origem a obra literária bem escrita, mas também escolhas que  definem o estilo de entender a vida. O mundo continua seu curso sem se importar com preferências individuais. E isso é bom. A escolha pessoal tem seus motivos.

A guarida que encontro em alguns países europeus dá-me a certeza de estar sempre atualizado no que concerne aos meus propósitos e, anualmente, apresentações, cursos e gravações acontecem. Faz-me bem e sempre retorno oxigenado pelo que vi, ouvi e respirei.

O final de um de meus projetos de vida musical, a visão panorâmica do técnico-escritural-pianístico, chega ao fim, após trinta anos de longa gestação. Coloquei no post anterior que o nascimento do projeto, em 1985, teve como desiderato “edificar” uma coletânea a abranger a criação de Estudos, esse gênero abstrato ou não, mas multidirecionado, com o propósito de duração de trinta anos, justamente nas fronteiras dos milênios.

O recital de Estudos, que será oferecido no próximo dia 11 de Abril no auditório da Sociedade Brasileira de Eubiose, expõe com muita nitidez tendências rigorosamente distintas sob o aspecto composicional e da técnica pianística. No final do mês estarei a gravá-los na minha tebaida, a capela Sint-Hilarius em Mullem, perdida na planura da Bélgica flamenga. É lá que meu de profundis se amalgama com as pedras que sustentam o Templo datado do século XI. É lá que minha alma encontra a tranquilidade para o registro fonográfico sob a tutela de um dos mais experientes engenheiros de som do planeta, Johan Kennivé.

Não poucas vezes o compositor contemporâneo agrega à composição sua visão sobre a obra recém-criada. Há inclusive exceções, quando esses comentários excedem, e muito, a dimensão da obra e se tornam verdadeiros ensaios. A percepção inovadora de uma composição, a técnica empregada, aspectos sócio-musicais podem, inclusive, estimular o autor nessa direção literária, estimulando e orientando o intérprete. O convívio com um compositor e o auscultar  “seu pensar” é uma das mais raras oportunidades que o intérprete pode ter.

O blog desta semana segue o roteiro do programa a ser apresentado.

Ao convidar o notável compositor português Eurico Carrapatoso (1962- ) a escrever um Estudo para a coletânea, fui surpreendido pela “Missa sem Palavras – Cinco Estudos Litúrgicos”. Carrapatoso, nessa obra dividida em cinco partes que constituem a Missa, lega-nos uma obra de profunda meditação, a expor um domínio absoluto da trama polifônica. O texto em latim da Missa lá está na partitura, a corroborar, inclusive, a justeza da acentuação prosódia-música. Extraio segmento do texto de Eurico Carrapatoso que antecede a partitura: “Nesta peça, o conceito de Estudo está longe da asserção convencional do termo, tantas vezes associada à extroversão do elemento virtuosístico ou à exploração de determinados domínios técnicos de um dado instrumento. Trata-se, antes, de uma viagem pelo mundo interior, introspectiva, ao sabor das inflexões produzidas pela leitura de um texto expresso na partitura. Este texto sacro refulge no fragor bronzino do latim. Escrito na partitura, faz dela parte intrínseca. Mas não será verbalizado, no sopro da voz. Está lá para dele ser feita uma leitura íntima, secreta. O intérprete cantará os mistérios do texto canônico através dos seus dedos e não da sua voz. Os dedos serão como os de Pepino, o Breve, rei dos franceses: taumatúrgicos, operando prodígios pelo toque. Penso, por isso, que estão reunidas as condições para se lhe poder chamar Estudos, não tanto pelo desafio técnico, que sempre esteve, aliás, muito longe de ser minha intenção, mas pelo desafio místico, dado todo o universo metalinguístico que lhe subjaz” (Lisboa, 22 de Fevereiro de 2012).

Conheci Gheorghi Arnaoudov (1957- ) após meu recital em Sófia, na Bulgária, em 1996. Encontros posteriores fizeram-me compreender que estava diante de um músico da maior competência. Compositor, interessa-se por todos os caminhos da música, da Grécia Antiga ao presente. Tínhamos temas fulcrais em comum, como Rameau, Debussy e Scriabine, que compunham o programa de meu recital e, coincidentemente, de seu universo interior. Ao longo do tempo conheci suas preciosas contribuições literárias em torno da estética moderna e pós-moderna, da semiótica e da música contemporânea. Na capital búlgara, em casa de nossa amiga comum, a pianista Angela Tosheva, conheci suas composições. Convidei-o a participar do projeto, e “Et Iterum Venturus”, de 1997, é um exemplo magnífico de sua produção. Curiosamente, “Et Iterum Venturus” (e de novo há de vir) pertence ao Credo da Missa em latim e “silenciosamente” está expresso no Credo da “Missa sem Palavras” de Carrapatoso. Em torno de poucos acordes, Arnaoudov cria um universo timbrístico extraordinário e notas som, rítmica exuberante, emprego de quintas e quartas, contrastes violentíssimos de acentuações e utilização “científica” da pedalização dimensionam essa obra singular, que enriqueceu sobremaneira a coletânea de Estudos.

Em blogs bem anteriores abordei a intensa amizade compartilhada por três amigos: o saudoso artista plástico e designer Luca Vitali (1940-2013), o compositor e pensador francês François Servenière e eu. Poucos meses antes da morte de Luca, as sete telas que compõem a magnífica “Série Cósmica” – acrílico sobre tela – causariam impacto definitivo em Servenière, daí terem germinado os “Sept Études Cosmiques”. A morte repentina do amigo pintor, dois dias após a criação do “Automne Cosmique”, estabeleceria para a série de Estudos, 7 + 1. Servenière e eu ficamos profundamente abalados. Luca Vitali dedicou sua oitava tela ao compositor. O Estudo “Automne Cosmique” in memoriam Luca Vitali foi escrito sob forte emoção logo a seguir.

Servenière comenta, como introdução à magnífica coleção de Estudos: “Em Julho de 2012, José Eduardo, maravilhado diante da fabulosa série de pinturas cósmicas de Luca Vitali, escreve-me: ‘Conversei com Magnus e este repentinamente me questiona sobre a possibilidade de Servenière incursionar nessa série cósmica extraordinária, espaço do universo onde a corrupção inexiste. O piano, o piano, meus dedos sempre à busca de novos horizontes, no caso, o mistério do Universo. Provocação? Talvez. A genialidade do amigo também não pode ser mensurável e compreenderá minha mensagem. Grande François!!! O Universo é infinito e o tempo não conta!!! As ideias, como as vinhas, amadurecem na lentidão…’ “. Servenière prossegue, a abordar a técnica de escritura e simbolismo: “A utilização da escritura ternária sobre a cifras 3,6,9,12 será o principal vetor para evocar a teoria dos ciclos, fenômeno central de rotação nos sistemas celestes. O ambiente e a cor sonora dos Études Cosmiques apreendidos nessa acústica ou dimensão espacial – ou aquática -, como se os sons fossem lançados sem retorno no Universo…”. Os Sete “Études Cosmiques + Automne Cosmique” terão primeira apresentação mundial neste 11 de Abril. Data a não ser esquecida em futuros catálogos.

Gilberto Mendes (1922-  ) escreve a respeito do Estudo a ser apresentado: “Considero ‘Um Estudo? Eisler e Webern Caminham nos Mares do Sul’ uma de minhas peças mais originais destes últimos tempos, dentro da tentativa de uma nova textura, de uma nova linguagem musical pianística. Em ‘Um Estudo?…’, Eisler e Webern deixam um rastro harmônico na areia de uma praia nos mares do Sul, suas pegadas em notas iguais que se sucedem, desenhando uma melodia sempre em frente, algumas vezes transpondo pequenos acordes/obstáculos, num desfilar de muitas, muitas e diferentes frases musicais; ‘equalizadas’ como se fossem todas uma só, sem conexões, sem pontos perceptíveis de ligação, ‘road to Singapura, Manakoora, Burma’, as imagens de Bing Crosby, Dorothy Lamour e Bob Hope evocadas na ressonância de toda uma caminhada… Ressonância em que encontramos os sons de Eisler e Webern reconciliados numa identificação dos universos tonal e atonal, de que os dois compositores foram os porta-vozes mais representativos na música germânica de nosso século. Na verdade, a peça é uma sínteses de minha própria tentativa de reconciliação desses dois universos sonoros” (Gilberto Mendes. “Uma Odisséia Musical”. São Paulo, Giordanus/EDUSP, 1992, págs. 211-212).

Para o “Étude V Die Reihe Courante”, o compositor português Jorge Peixinho escreveu, a meu pedido, um magnífico ensaio, no qual afirma: ” OEstudo V Die Reihe-Courante’ herda qualquer coisa de obras minhas anteriores e deixa traços em obras posteriores. Como qualquer Estudo que se preze, e tomando como referência histórica os exemplos magistrais de Chopin, Liszt ou Debussy, uma peça com este título deve conter dois vectores fundamentais, a saber: ser um ‘estudo’, simultaneamente de execução para o instrumento respectivo (neste e naqueles casos, o piano) e, para o compositor, igualmente, como laboratório de novas experiências e dilatação dos seus limites técnico-expressivos… Trata-se de um estudo sobre uma visão da série como objeto e sujeito, uma perspectiva abrangente, que compreende tanto a concepção schönberguiana da série-tema como a concepção weberniana da série, enquanto princípio estrutural e estruturante, ordenador e motor da organização da obra”. Ao leitor não familiarizado com o termo Die Reihe (a série), diria que o serialismo é uma técnica de composição baseada numa sucessão pré-estabelecida de sons denominada série. Foi Arnold Schönberg (1874-1951) que sistematizou o processo através do emprego de doze sons, dodecafonismo. O Estudo de Jorge Peixinho amplia o conceito “a série dodecafônica é exposta logo de início, num segmento que compreende, para além dos doze sons, uma sequência de outros vinte”. Após análise pormenorizada do processo e indicações precisas quanto à interpretação, conclui o compositor: “O Étude Die Reihe-Courante fecha e abre simultaneamente velhas e novas etapas, criando uma ponte entre duas margens de um rio; um rio sempre vivo e em movimento, uma corrente ininterrupta em direcção a um novo infinito, metáfora da impossível utopia da perfeição e da liberdade criadora” (Jorge Peixinho. Introdução a um estudo sobre o Estudo V. Die Reihe-Courante – para piano. In: Jorge Peixinho in Memoriam, organização de José Machado. Lisboa, Caminho, 2002, pgs. 203-222).

Finalizando o programa, apresentarei “Vers la Flamme”, de Alexander Scriabine (1872-1915). Um dos meus compositores eleitos, o compositor russo nessa obra maiúscula de 1912, estabelece a ponte em direção à atemporalidade. Hoje, “Vers la Flamme” é atualíssima e serve como exemplo antecipado da criação contemporânea. Estaremos a prestar justa homenagem a Alexandre Scriabine no ano do centenário de sua morte.

This week’s post addresses the programme of my recital to be held on 11 April in São Paulo with works by  Eurico Carrapatoso, Gheorghi Arnaoudov, François Servenière, Gilberto Mendes, Jorge Peixinho and Alexandre Scriabine. It includes precious comments written by the composers themselves – with the exception of Scriabine – on their newly created etudes, useful to inspire and guide interpreters.