Pianista e Professor Notável

Mais eu avanço no trabalho artístico
mais eu percebo
que, além de todos os conhecimentos que possamos ter,
é, em última análise, a nossa concepção sonora
que influenciará de maneira a mais importante a nossa recriação.
Sebastian Benda

Não poucas vezes comentei neste espaço a respeito de intérpretes extraordinários que edificaram carreiras fora do grande circuito, da mídia e da necessidade dos holofotes. Nunca me esqueço de que, certo dia, o ilustre pianista e professor francês Jean Doyen (vide blog: Jean Doyen – 1907-1982 – A Interpretação Inefável, 31-08-2007) disse-me,  durante os estudos em Paris sob sua orientação (1959-1962), “ser um bom ou ótimo pianista não significa amar o brilho e as viagens”. Ficou gravado.

Tinha eu 17 anos e participei do Curso Internacional de Férias organizado pela Pró-Arte em Teresópolis. Estávamos em 1955. Ano em que lá compareceram, também como alunos, o saudoso Ney Salgado, Isaac Karabtchevsky, Henrique Gregory, Sandino Hohagen, Manuel Veiga, Clara Sverner, Júlio Medaglia (sucessivos anos) e tantos jovens que prosseguiram suas carreiras vitoriosas. Certo dia, ao ouvir Estudos de Chopin magnificamente interpretados, cheguei-me à janelinha de vidro da porta de uma sala de aulas e passei a escutar Sebastian Benda, pianista suíço que se radicara há pouco no Brasil. Estava a ouvir a tradição, e Benda se preparava para recital durante o Curso de Férias. Até seu regresso à terra natal em 1981, ao lado da esposa, professora e pedagoga Luzia do Eirado Dias e de seus cinco filhos músicos, dedicou-se com amor e competência à atividade musical, obedecendo a um DNA sonoro que remonta aos tempos de J.S.Bach.

Sebastian Benda deu contributo valiosíssimo ao nosso meio musical. Como pianista, atuou seguidamente em recitais solo, como solista de concertos com orquestra e como camerista. Quantas não foram suas apresentações com a irmã violinista Lola Benda? Incontáveis. Como professor, colaborou efetivamente junto às Universidades Federais de Santa Maria (Rio Grande do Sul) e da Bahia. Ao fixar residência em São Paulo, empenhou-se para o aprimoramento de nossas programações e pela formação de jovens pianistas.

Quão poucos se lembram de Sebastian Benda no Brasil, apesar de seus 29 anos aqui vividos, a contribuir com nossa “ascensão”? Louve-se a Universidade Federal de Santa Maria ao promover o Concurso para Jovens Músicos em muitas edições e a homenagear o ilustre professor da Instituição durante anos. Faz-se necessário um breve apanhado biográfico de Sebastian Benda. Nascido na Suíça, desde a infância dedicou-se ao piano e à composição. Músicos notáveis, como Arthur Honegger (1892-1955), Frank Martin (1890-1974), Alfredo Casella (1883-1947) e Joaquin Nin (1879-1949) saudaram criações do adolescente. Aos 11 anos já se apresentava com a irmã Lola em recitais solo, sendo que dois anos mais tarde ingressaria no Conservatório de Música de Genebra. Após findar seus estudos no renomado Instituto com a obtenção do “Prix de virtuosité”, a convite do extraordinário pianista Edwin Fischer (1886-1960) passaria a estudar com essa lenda do piano durante sete anos, apresentando-se inúmeras vezes com o mestre em ciclos de concertos. Iniciava brilhante carreira que o levaria a 40 países da Europa, Ásia e Américas.

Após quase três décadas no Brasil, o desencanto com os rumos que o país trilhava e a violência crescente – a família sofreu assalto – motivaram o retorno à Europa em 1981, juntamente com todos os seus. Nomeado professor na Escola Superior de Música e Artes Cênicas de Graz, Áustria, tornar-se-ia Reitor até 1994. A segunda fase europeia é marcada por intensa atividade como pianista, professor de cursos de interpretação e gravações.

O álbum a conter dois CDs com registros fonográficos, que se estendem de 1961 a 1994, gentilmente enviado pela viúva do artista, privilegia autores que lhe foram caros. Toda a tradição que lhe foi passada por Edwin Fischer, e a ter como ascendentes Martin Krause (1853-1918), Franz Liszt (1811-1886), Carl Czerny (1791-1857) e Ludwig van Beethoven (1770-1827), pode ser aferida através de magistrais interpretações de Sebastian Benda. Os 33 anos que separam as gravações apenas ratificam uma notável coerência interpretativa, voltada ao absoluto rigor quanto às estruturas da escrita, liberdade sem jamais ultrapassar o limite que pode conduzir à arbitrariedade, lirismo intenso e comovente, virtuosidade natural, também sem qualquer sentido de exibicionismo. Há continuada transparência de uma personalidade que apreende a essência e revela a ligação amorosa com as obras gravadas. Realmente, dois CDs que entendo magníficos e que contêm algumas obras fundamentais do repertório para piano.

O primeiro CD apresenta inicialmente as célebres 32 Variações sobre um tema original em dó menor (1806), de Ludwig van Beethoven. Obra quase que “obrigatória” nos repertórios, mormente em meados do século XX, as brevíssimas e contrastantes variações são sempre um desafio para o pianista nessa constante mudança de moods. Benda não apenas capta a essência de uma diversificada escrita, como revela dado fundamental, o respeito à tradição, friso sempre. Reflexivas, virtuosísticas, dinamicamente bem elásticas, todas as características da obra lá estão e a gravação serve como um modelo a ser seguido, se a compararmos com outros registros impecáveis deixados por alguns de seus ascendentes.

Comovente a leitura que Sebastian Benda realiza da Sonata em Si Bemol Maior (D. 960), de Franz Schubert (1797-1828). Obra de síntese (1828), essa magistral Sonata, uma das obras essenciais da literatura pianística em todos os tempos, tem por parte de Benda uma das mais comoventes interpretações registradas, comparáveis às legadas por Wilhelm Kempff (1895-1991), Arthur Rubinstein (1887-1982) ou à contemplativa de Sviatoslav Richter (1915-1997), esta, sobretudo no primeiro andamento, Molto moderato. Se Benda tivesse apenas registrado uma só obra em sua bela trajetória, a Sonata em questão, bastaria essa gravação para fixá-lo na história da interpretação musical. O equilíbrio que o pianista evidencia em toda a longa Sonata é notável. Execução rigorosamente inefável durante o transcorrer dos quatro andamentos. Primoroso o controle do extenso e sublime Molto moderato. A concentração expressiva contida no Andante Sostenuto - a manutenção da atmosfera nos movimentos lentos é sempre um desafio – é seguida pela jocosidade do Scherzo, Allegro vivace con Delicatezza. Temos por parte de Benda o mais absoluto domínio estilístico. Allegro ma non troppo tem compreensão plena. Humor, vitalidade e modulações finamente tratadas estão presentes nesse andamento final. Friso, execução referencial para a geração que queira incorporar essa Sonata escrita no ano da morte do compositor, em que todos os atributos apreendidos da vasta produção schubertiana lá estão.

Clique para ouvir Sebastian Benda ao piano:

Franz Schubert: Scherzo, Allegro vivace com delicatezza da Sonata em Si bemol maior (D. 960)

Dos Tre Sonetti de Petrarca (1304-1374), Benda apresenta o 104, possivelmente o mais frequentado pelos pianistas. O artista suíço cria uma atmosfera rara, lírica e intensa, a proporcionar à excelsa obra uma leitura que faz jus à qualidade literária. Sebastian Benda comenta: “Liszt não descreve o poema, mas pinta os estados d’alma que sentiu na leitura do poema”.

Do universo pianístico de Robert Schumann (1810-1856), uma de suas mais sensíveis criações é o conjunto das oito Fantasiestücke, op 12 (1838). Pode-se aferir a identidade absoluta que Sebastian Benda tem com o compositor alemão. Uma compreensão impecável dessa dualidade soberana no pensamento de Schumann: de Eusebius, lírico, poeta e sonhador, e do arrebatado e extrovertido Florestan, personagens do ideário do possivelmente mais romântico entre os compositores. Tradição e talento singular podem ser aferidos na totalidade interpretativa da coletânea. Realmente comove a qualidade do tratamento que Benda imprime à agógica e às tantas gradações dinâmicas finamente dosadas, só possíveis, nesse nível, em um grande mestre do piano.

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Os 29 anos vividos no Brasil fizeram-no integrar-se à criação de alguns compositores brasileiros. Villa-Lobos (1887-1959), Camargo Guarnieri (1907-1993) e Cláudio Santoro (1919-1989) tiveram obras presentes em recitais de Benda. Foi solista do Concerto para piano e orquestra de João de Souza Lima (1898-1982). Sebastian Benda inicia o segundo CD com algumas das mais célebres criações de Villa-Lobos: Alma Brasileira, Festa no Sertão, Lenda do Caboclo, Impressões Seresteiras e Dança do Índio Branco. Sempre defendi a posição de que a geografia pode ajudar o intérprete na execução de obras de seu país, mas jamais será determinante. Sebastian Benda soube apreender as rítmicas ricas e os moods inerentes nas composições de Villa-Lobos.  A leitura que o pianista suíço faz do repertório em apreço é intensa, plena de luminosidade, esfuziante, das mais autênticas na discografia de Villa-Lobos.

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De seu ilustre conterrâneo Frank Martin, professor e grande amigo, Sebastian Benda tem registrado, no álbum “Memoires”, oito Préludes para piano. O intérprete jamais deixou de prestar tributo à obra do compositor e gratidão ao grande mestre. Gravaria a integral para piano de Frank Martin, inclusive a Balada para piano e orquestra sob a regência do compositor. Benda se expressa sobre o mestre: “Frank Martin foi para mim não somente o compositor incomparável cujas obras sensibilizam, por sua emoção, os públicos mais diversos de diferentes continentes, mas também o mestre, o professor, o conselheiro, o amigo e, enfim, o regente de suas obras, com o qual eu tive a honra de colaborar. Martin foi um compositor que, apesar da sua constante pesquisa, não se deixou levar pelas correntes, ficando fiel a si próprio e aos seus princípios estéticos”.

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Finaliza o preciosíssimo álbum “Memoires” a monumental obra do compositor russo Modest Moussorgsky (1839-1881), Quadros de uma Exposição. Interpretação maiúscula, viril, expressiva, a apresentar o profundo senso estilístico do intérprete. Da tradição austro-germânica em obras de Schubert e Schumann, Benda nos lega, sob outra égide, uma visão grandiosa dos Quadros... Referencial.

Há que se lamentar a memória supérflua que se acentua em nosso meio cultural. O Brasil teve a honra de ter em seu solo, durante quase três décadas, um artista da magnitude de Sebastian Benda, que honraria, sob outros aspectos, o país que o abrigou, casando-se com professora e musicista brasileira, tendo cinco filhos que se tornaram músicos e formando gerações de pianistas e professores no Brasil. Seu nome é pouco lembrado. Não aconteceu o mesmo com o excelente pianista e professor alemão Fritz Jank (1910-1970), radicado em São Paulo, que se notabilizou a interpretar diversas vezes na cidade as 32 Sonatas e os cinco Concertos para piano e orquestra de Beethoven, assim como pela qualidade plena no segmento acompanhamento, inclusive dialogando com alguns dos mais renomados artistas internacionais que se exibiam em nossas terras? Se a Academia abrigou estudos mais aprofundados sobre Fritz Jank, fundamental para a cultura paulistana, hélas, esses trabalhos finalizam nos arquivos das universidades e geralmente são olvidados ad eternum.

Finalizaria a dizer que nossos contatos com Sebastian Benda sempre foram cordiais. Ele e a família moraram nos últimos anos, antes do regresso à Suíça, em nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Nesse período várias vezes nos visitamos. Tivemos, Regina e eu, o prazer e a alegria de participar com Benda da série dos concertos de J.S.Bach para dois, três e quatro pianos, no Teatro São Pedro, sob a direção de Eleazar de Carvalho, na década de 1970.

Fica neste espaço meu registro a lembrar o grande músico Sebastian Benda, após ouvir o extraordinário álbum “Memoires” (Genuin classics  – Artist Consort, Germany, 2013). Frise-se, em bela apresentação e a ter encarte substancioso em inglês, alemão e português. Recomendo-o vivamente.

This post is my tribute to the great Swiss pianist and composer Sebastian Benda, who lived in Brazil from 1952 to 1981. His widow very kindly has sent me his double album Memories, with works by Beethoven, Schubert, Schumann, Liszt, Villa-Lobos, Frank Martin and Mussorgsky. Remarkable performances, with rigor as to writing structures, freedom without arbitrary choices, intense and moving lyricism, virtuosity without overplaying. A fascinating listening of an outstanding interpreter, an authority on the great art of the piano, unfortunately highly underestimated in the country he adopted for almost three decades.