Livro recém lançado de François Servenière

Mais o mal existe no mundo,
mais há razões para fazer o belo.
É mais difícil, sem dúvida, mas também mais necessário.
Andreï Tarkovsky

Inúmeras vezes tive o prazer de inserir em meus Ecos, posts imediatos que testemunham apreciações de leitores ao precedente, considerações do compositor e pensador francês François Servenière. A guarida aos seus textos tem sido entusiasmante, pois propicia, aos que  generosamente seguem os blogs semanais, apreenderem parcela essencial de seu pensamento multidirecionado e competente.

“Bien Faire et Laisser Braire” (Blangy-le Chatêau: Esolem, 2015) desperta curiosidade a partir do título e também do subtítulo, “Crônica da água que corre sob as pontes sem jamais retornar rio acima, exceção à nascente mercê da evaporação”. Em tradução, poder-se-ia ter “Fazer bem feito e deixar zurrar ou ladrar” ou simplesmente “Os cães ladram e a caravana passa”. Somos conduzidos de muitos temas diversificados à polêmica que enriquece, aos conceitos originais, à convicção sem arrependimento de Servenière, à qualidade singular de seu pensamento que, corajoso, não hesita em buscar uma verdade na qual ele acredita. O autor reuniu uma série de crônicas que se estendem de 2000 ao presente. Publicados em seu blog, ou especialmente já a pensar na edição do livro. O universo  literário “politicamente correto”, em que tantos se abrigam a fim de evitar interpretações que possam ferir a aceitação mediática e, consequentemente, pública, inexiste para Servenière. Será possível entender que alguns capítulos atinjam o limite da corda esticada, tão veementemente o autor se empenha em expor seu pensamento. Não há condicional, e as ideias são expostas sem meio termo. Acredito que estar distante de Paris, centro em que fez sua formação musical e do pensar, mas que voluntariamente foi descartado para um “refúgio” na Normandia, tenha conduzido Servenière à liberdade de expressão, sem amarras que pudessem interferir. A postura independente não significa alienação. O autor está diariamente conectado com o mundo, e posso testemunhar a quantidade de informações que Servenière me envia sobre temas que nos são caros, a preponderar a Música e seus caminhos, que devem ser compreendidos, tantas vezes, sans issue.

“Bien Faire et Laisser Braire” divide-se em XXI capítulos em que não poucas vezes conceitos anteriormente apresentados ressurgem metamorforseados, mas que evidenciam não apenas o estilo de Servenière, mas sua necessidade de reforçar ou alargar temas que o interessam. Ajustam-se essas considerações aos capítulos que desfilam. Arte, política, música como essencialidade, religião e fanatismo, ciência, comentários de artigos ou resposta a um e-mail curto e desairoso recebido compõem o livro em questão.

Após breve narração das origens da família, da infância como observador atento, já no segundo capítulo Servenière apresenta uma espécie de “confissão”, portal que abre seu entendimento da música. Expô-lo torna-se necessário para a compreensão do todo:

“No meu trabalho como compositor destruo e reciclo. Mas, sobretudo, eu quero reconstruir, reassociar, mostrar de novo o contraste e a diversidade. Simplesmente pelo fato de que correspondem à realidade. Abandonando – evitando – as ‘igrejinhas’, as posições e o estatuário ideológico, fontes de bloqueios e retenções que produzem, salvo raras exceções, obras fechadas, estanques e indigestas, encontro-me no meio e não sou senão um filtro, um caminhante… testemunha que vibra no uníssono de todas as ondas. Essa atitude mental é não apenas uma necessidade psicológica, fisiológica, mas igualmente filosófica.

Tive a chance de encontrar na música o ferramental através do qual minha vida expressaria melhor essa simplicidade. Senti-me desde logo como o peixe no seu habitat. Descobri o significado de minha vida”.

As posições de Servenière são claras e polêmicas. Ele, que conheceu e dominou vários processos técnicos da música contemporânea e está a par das tendências multi direcionadas, não apenas da música instrumental, mas também da eletrônica, perceberia a tempo o impasse da criação ou, ao menos, a aparência da inventiva. Distanciou-se, como outrora fizera o primeiro compositor francês a compor música dodecafônica em França, Sérgio Nigg (1924-2008). Servenière teria chegado ao impasse: compor para estar no “modismo” ou escrever música a seguir seu de profundis? Optou por este caminho. Sua obra bem vasta, a abranger tantos gêneros, é testemunha de uma escrita precisa e de comunicabilidade singular. Teve tributo a pagar e disso tem plena consciência. Longe das “panelinhas” contemporâneas, Servenière revisitou formas e gêneros do passado como ferramentas para sua criação. O desprezo que “capitães” da música contemporânea de laboratório teriam pelas suas criações foi uma das causas de retirar-se para a Normandia e continuar a criar música a fazer sentido e que chega às mentes sensíveis e ao coração. Uma sua frase é incisiva: “A música contemporânea detesta a vida, é uma triste realidade”. Não se tome à risca a afirmação, pois há música contemporânea e música contemporânea. Aquela a que Servenière se refere seria a pertencente às “igrejinhas”, termo que se poderia entender como grupos fechados, donos da verdade para os quais o não respeito a credos outros determina o anátema definitivo. Menciona jornalista dos anos 1990 que, ao perguntar a músicos do EIC (Ensemble Intercontemporain – IRCAM) “qual a música que eles escutavam à noite de volta à casa ‘para puro prazer’, ouviu respostas unânimes: jazz“. Em outro segmento, expressa posição a mostrar origens precisas: “A música clássica, romântica, moderna – toda a que precede 1945 e continuou sob a forma neo, tudo o que consonante, dissonante, modal, tonal, atonal, desestruturada ou não, mas audível e sobretudo celeiro de emoções, seja ela organizada sobre papel, outro meio qualquer ou computador e interpretada por instrumentistas ou não – é uma linguagem universal que atinge os espíritos e os corações de maneira profunda. Eu continuarei a denominá-la música, aliás como todo mundo”. O posicionamento de Servenière me fez lembrar célebre frase de Arnold Schönberg (1874-1951): “há muita boa música que pode ser escrita em Dó Maior”. Também lembra-me frase de um compositor pátrio na juventude da idade madura que, em entrevista a uma revista especializada, afirmou que suas obras e de outros compositores de sua geração – pertencentes às “igrejinhas” – estavam destinadas a guetos. É Servenière que observa ironicamente “Dancem agora! Esqueci, estou desolado: a música contemporânea não se dança, não se canta, não se escuta, ela se pensa, unicamente”. Entenda-se, no sentido da natural e ampla aceitação.

Outro segmento que prende a atenção do leitor está relacionado à polêmica, tão a gosto de pensadores franceses. Servenière não deixa de colocar seu posicionamento quando entende necessário fazê-lo, mesmo que opiniões suas possam causar desavenças. Após a leitura de entrevista do baterista e escritor Marc Cerrone, na qual o compositor diz que a criação não tem tanta necessidade do talento, Servenière pormenoriza a crítica. Cerrone, autor de composições repetitivas, minimalistas, mas que, segundo Servenière, são desprovidas da aura, recebe por parte do autor de “Bien Faire… ” observações argutas. “Adoro a música repetitiva ou cíclica. Compus algumas. Porém, não confundo Marc Cerrone nem um techno, com Steve Reich ou György Ligeti. Desgraçadamente, indigência criativa ou de ideias e comércio fazem hoje um bom casamento. Quando não com a utilização de produtos falsificados”, afirma Servenière.

Ao receber e-mail de um cidadão a dizer “você é um idiota patético! Tente ter mais cultura e consciência política”, em seguida a um seu texto incluso em “Bien Faire… ” sob o título Paroles, Objets et Art Contemporains, Servenière responde ao ora denominado pessoa progressista da música contemporânea, a ratificar seu posicionamento e a dizer que recebeu muitos “falsos e-mails que se aparentavam à ‘Arte da Guerra’ de Sun Tzu, que recomenda desestabilizar e enfraquecer o adversário através do perpétuo assédio moral e físico”. Servenière observa procedimentos da arte contemporânea, música inclusa, praticados pelas esquerdas. É incisivo: “Intelectual de esquerda é redundância! Alguns pretenderiam maliciosamente que a expressão está a caminho de se tornar um paradoxo… Um intelectual é forçosamente de esquerda, vejamos! Deduz-se então, implicitamente, que um homem da direita que pretenda refletir com a sua cabeça não pode racionalmente ser considerado intelectual. Ele teria de utilizar obrigatoriamente um outro órgão… Estamos em França, merde! Aqui, pois, ‘ter uma consciência política’ ou ‘estar politicamente engajado’ significa ‘ser de esquerda’. Ponto final”. Sobre o tema, já a excluir nominalmente o cidadão do e-mail ofensivo, Servenière se detém em outro capítulo “O idiota e seu domínio de competência, a idiotice”.

“Bien Faire et Laisser Blaire” tem vários segmentos a abordar a crise global, mormente a francesa, a problemática imigratória e a impossibilidade de várias etnias já existentes em França “suportarem” o país e a cultura que as abrigaram. É crítico severo às posições do governo socialista, hoje no poder, nele vendo aberturas que poderão levar ao impasse. Nos capítulos “O obscurantismo” e “Como lutar contra o obscurantismo”, seu pensamento não deixa margens a dúvidas quanto à sua coerência, individual, mas também à de milhões de franceses.

No capítulo “Épilogue”, Servenière argumenta sobre várias áreas da cultura, sempre de maneira incondicional. Após breves considerações sobre música e criação, política, ciência, religião e economia, tantas vezes a suscitarem polêmica, finaliza com certa esperança: “É necessário saber que a total liberdade tem um preço, a solidão. Poucos são capazes de assumi-la (…) Malgrado tudo, continuemos a fazer o que é melhor, deixemos ladrar a matilha, caminhemos para vislumbrar além do horizonte, aprendamos, escutemos, viajemos… pois são os únicos meios provados para evitarmos morrer idiotas. Logicamente os cães continuarão a ladrar… Deixemo-los ladrar, mas evitemos beber na mesma fonte”.

O capítulo XII é dedicado a um concerto “Concert à l’Atelier”. Refere-se ao recital que dei aos 29 de Janeiro de 2013 na Salle Godard, em Paris, quando apresentei, extraprograma, o Étude Cosmique Sinergie, de sua autoria. Fico-lhe grato pela inserção.

“Bien Faire et Laisser Braire” pode ser adquirido através do site www.amazon.fr . Recomendo-o vivamente.

This post is an appreciation of the book “Bien Faire et Laisser Braire” (in a totally free translation, “Dogs Bark and the Caravan Moves on”), chronicles written by the French composer François Servenière, in which, after a brief introduction shedding lights on his childhood and family origins, he addresses a myriad of subjects, such as arts, politics, religion, fanaticism, sciences and, most of all, music. Controversial as he may be, sometimes proposing radical solutions, Servenière concludes with at least a thread of hope, stating that, as a lone fighter, one has to go on doing its best whatever the cost.