Sylvain Tesson em entrevista de síntese

Somos influenciados pelas ideias magníficas,
apresentando verdes prados e a vida eterna.
Prefiro pensar em outra,
também alegre e otimista, de uma vida curta
e que nos conduza a viver com muito apetite,
pois ela acabará rapidamente contra um muro chamado vazio.
Sylvain Tesson

O leitor que me tem acompanhado ao longo de mais de nove anos ininterruptos de blogs, publicados sempre aos sábados, teria observado a  constância que dedico à leitura das narrativas de viagens do geógrafo, jornalista e escritor francês Sylvain Tesson. Meu amigo, compositor e pensador François Servenière, na Normandia, partilha dessa admiração .

Dizia meu saudoso amigo Eduardo Etzel, psicanalista que seguiu minhas revelações íntimas durante dez anos, que todos nós temos um paraíso ideal. Nele nos refugiamos quando se faz necessário. Essa idealização permite atenuar agruras, desencantos, depressões e renova forças para o enfrentamento cotidiano. A leitura fornece-nos essa possibilidade.

Sempre me encantaram as narrativas de aventureiros. Ainda jovem percorria avidamente autores intrépidos, que realizaram viagens inacreditáveis. As conquistas dos polos, os picos vencidos por alpinistas destemidos, as travessias oceânicas em condições impensáveis. O maior poeta da língua portuguesa de todos os tempos, Luís Vaz de Camões, não foi um deles e a obra “Os Lusíadas” não seria narrativa plena de elementos míticos se mesclando com o presencial? Pena que o MEC tende a desobrigar Camões de nossos currículos. Pequenez de uma governança rigorosamente inculta.

Tesson não é um narrador tout court. Introduz o leitor no mundo mágico da interioridade, e seus relatos pormenorizados captam o exterior que o impacta, sem contudo esquecer-se de enriquecê-lo, seja pelas experiências vividas, guardadas na mente, seja pela interpretação do inusitado.

Assisti a um vídeo que apresenta entrevista de Sylvain Tesson concedida a Carine Marret, durante ciclo de conferências CUM, aos 9 de Dezembro, evento que se deu em Nice, no sul da França. Alvissareira e longa comunicação que se dá após o gravíssimo e prosaico acidente que o escritor sofreu ao cair da fachada da casa de um amigo em Chamonix, em Agosto de 2014. Dez metros de altura que poderiam levá-lo à morte. Safou-se com vértebras quebradas e fraturas no crânio, após 10 dias em coma. Paradoxal destino para um aventureiro que percorreu o mundo de bicicleta, galgou montanhas, atravessou desertos e estepes e passou por perigos incontáveis. Sequelas permanecem em sua face e, do período  comatoso, lembrar-se-ia em entrevista bem anterior: “Encaminho-me para o outro lado, outra margem do rio e, como desconfiava, não havia ninguém. Nenhuma mão estendida, nem anjo, nem virgem”.

No longo depoimento concedido a Carine Marret, Sylvain Tesson realiza a síntese de sua vida voltada à aventura, como caminhante pelo planeta ou estático em uma cabana às margens do lago Baikal, na Sibéria. Durante todo o longo depoimento, Tesson desfila um sem número de autores, muitos deles aventureiros narradores, e esse acervo, constituído pela experiência e farta leitura, contribuiu para a construção de suas narrativas enriquecedoras.

A primeira pergunta de Carine Marret remete às origens das viagens tessonianas, e a resposta inicial não deixa dúvidas: “partimos em viagem porque muitas vezes não queremos saber o que se passa no interior de nós mesmos”. Tesson esclarece que a viagem substituiu o possível divã, pois sua primeira aventura, ainda bem jovem, já apontava para um longo caminho, a volta ao mundo de bicicleta. Existiria uma profunda alegria, verdadeira festa relacionada ao esforço físico e, à medida que essa primeira grande aventura acontecia, outras tantas já povoavam sua mente. Menciona George Mallory (1886-1924), famoso montanhista que desapareceria juntamente com seu companheiro de escalada, Andrew Irvine (1902-1924), no Himalaia, ao tentar a conquista do Everest. A uma pergunta sobre o porquê de sua vontade de subir montanhas, Mallory responderia “porque elas estão lá”, e Tesson comenta que a vida, sendo curta, precipitamo-nos a conhecer novos horizontes.

O entrevistado salienta bem que o viajante literato apreende o que o cotidiano lhe fornece, e o diário íntimo tem de conter consciência do relato e concentração. Para tanto, em suas viagens leva muitas obras, mormente as de aventureiros, pois são eles “restauradores da realidade e não seres a dar asas à imaginação”.  Tesson não tem interesse em escrever romance e criar personagens, pois os seus figurantes  frequentam o cotidiano de suas passadas pelo planeta. Se, nos vários contos que escreveu, figuras humanas imaginadas surgem, entendo que não sejam as de maior interesse. O personagem vivo de todos os quadrantes da Terra, este sim, adquire em suas narrativas dignidade e realismo. Sob outra égide, Tesson observa que a viagem longa a que sempre se propõe é uma espécie de aceleração da existência e que o alpinista, um outro aventureiro em confronto permanente com a queda, tem a impressão de estar a conviver a todo instante com a morte no ato da prática. Menciona neste caso um alpinista que comandava um grupo que atingiria o cume, não sem antes ter assistido à morte de alguns. Montanhista escritor, narraria que, ao chegar ao topo, apertou a mão dos que conseguiram a proeza. Tesson explana que o relato da aventura pode  revestir-se de frieza e que é essencial para o aventureiro escritor saber lidar com a abundância de fatos e a clareza.

A uma pergunta de Carine Marret, mencionando frase de Dostoievsky a considerar que o homem, estando em movimento, dá um objetivo a esse ato, recebe resposta pertinente de Tesson. O viajante escritor entende que, se a viagem for longa, deve-se subdividi-la em etapas, dando-lhe o sentido e o objetivo dostoievskiano. Pensar as etapas reduziria o stress, pois os destinos abreviam-se. Vencida uma, parte-se para outra. Para um viajante como Tesson, que empreende caminhadas que demandam muitos meses e levam ao sofrimento, esses compartimentos previsíveis têm significado. Menciona a antítese, o político que busca atingir a cumeeira rapidamente, ao contrário do montanhista que subdivide a escalada em etapas predeterminadas. Lembro ao leitor que um corredor de longa distância também fatia o percurso, precisando marcos definidos.

Sylvain Tesson elabora uma série de pensamentos voltados à viagem de aventura. Uns a realizam como fuga, outros para desvendar novos horizontes – curiosidade? -, outros mais buscam o autoconhecimento, viagem interior. As várias categorias impulsionam o viajante. Quanto à fuga, haveria o horror do domicílio, da rotina cotidiana, pois tantos não suportam o imobilismo da vida. Para aquele que viaja e que busca o desvelamento de tudo o que vê ou fotografa, a viagem tem objetivo preciso e pode, inclusive, significar a procura do outro, da solidariedade humana. Existiria a satisfação da descoberta diária de algo que possibilita até mesmo o desequilíbrio. Quanto à viagem interior, a introspecção se dá e pode haver transformação psíquica, metafísica, intelectual, caso específico de seu estado de eremita durante o longo inverno em uma cabana às margens do lago Baikal, na Sibéria. Num outro compartimento, Tesson situa o sedentário escritor pleno de imaginação e que, sem sair de seu aposento, cria obras que podem perdurar. Flaubert é citado, pois apesar de ter viajado ao Egito, era epilético, sedentário e escrevia em sua moradia às margens do Sena.

Menciona um outro tipo de viajante, o vagabond, característico do século XIX, que percorria geografia limitada de aldeia a aldeia, tinha certa relação com os habitantes e assim vivia sua sina.

À medida que Carine Marret posicionava as questões, Sylvain Tesson “viajava” nas respostas. Interessante sua visão da modernidade e do tempo. Segundo ele, rompemos o pacto com o tempo que passa. Este representa nossa estadia sobre a Terra, que pode ser mais ou menos longa, mas que a única certeza é de que somos incapazes de tudo realizar. As explanações levam Tesson ao que ele denomina blefe tecnológico, que nos faz pensar sermos capazes de obter tudo, como ter a posse de toda a biblioteca da França no bolso, verdadeiro blefe que nos faz perder a noção da duração do tempo. Diz não gostar dessa parafernália tecnológica e que viver a duração do tempo requer paciência. Entende que a leitura das grandes aventuras leva-nos à apreensão da amizade que pode existir entre os participantes nesse entendimento do tempo e de sua duração.

A uma pergunta sobre o acaso, formulada pela diretora da programação, Tesson se estende a partir do pessimismo que, a seu ver, paradoxalmente, esconde uma certa alegria de viver e lucidez. Nada esperar no dia seguinte, não formular ilusões quanto à experiência da humanidade, mas ter relação até amigável com o semelhante. Para ele, uma das maneiras de ser profético é ser pessimista. Quanto ao acaso, entende que o acúmulo dos muitos acasos reunidos bem ou mal resultaria em algo que poderíamos desenhar como sendo destino.

Do público veio pergunta instigante. “O que entenderia como medo?”. Explicou que este reside basicamente no medo das forças da natureza e dos animais selvagens. Essas duas forças são previsíveis: tempestades, avalanches, urso frente a frente. Todavia, o semelhante é imprevisível e sentiu medo no Afeganistão quando foi interceptado por talibãs. Essa última categoria é angustiante e não a compreendemos na realidade.

A uma outra questão vinda da plateia sobre a viagem solitária ou acompanhada, Tesson responderia que na primeira, verdadeiro solilóquio, você tem o caderno para anotações e, na segunda, ouvidos que o escutam e que atenuam o distanciamento do conforto do lar.

Na última intervenção relativa à sua atuação após o grave acidente que deixou marcas inalienáveis, Sylvain Tesson disse que o período de convalescência levou-o à reflexão e que possivelmente se dedicará, como já o fez recentemente em campo de refugiados no Iraque, a ações coletivas humanitárias.

O autor de tantas narrativas de aventura experimentou várias modalidades de viagens. Os 11 livros resenhados até o presente neste espaço estão na seção Livros – resenhas e comentários (lista) – no menu do blog, encontrável na página primeira do blog.

O leitor poderá ter acesso à entrevista completa de Sylvain Tesson acessando o link:

https://www.youtube.com/watch?v=hj97ZuprzPc

No post da próxima semana apresento a resenha de seu primeiro livro: “On a roulé sur la Terre”, viagem que empreende de bicicleta em torno do planeta juntamente com seu companheiro André Poussin.

In interview given in December 2015 in Nice, France, Sylvain Tesson talks about his unconventional life of adventures, discussing the root cause of the need to leave home comforts (evasion, curiosity, self-knowledge?), fear of the forces of nature and of his fellow man, technology and our illusion of mastering time, his life plans after the near-fatal accident he suffered in 2014. A synthesis of Tesson’s thought that I saw fit to comment in my blog, since I am a great admirer of the French writer and geographer, having reviewed so far eleven of his books.