Viver a Vida, Solidão, Vazio, Viagem…

Senhor, se o viajante perdido no deserto
tem uma casa habitada
mesmo que nos confins do mundo,
alegra-se.
Nenhuma distância o impede de estar alimentado,
e, se ele morrer, morre no amor…
Antoine de Saint-Exupéry
(Citadelle, cap CXXIV)

Reflexões de interesse transmitidas por François Servenière a partir dos dois últimos blogs fizeram-me considerar o tema relacionado à solidão, que pode ensejar a vontade da vida mais curta. Admirador confesso das realizações e livros do aventureiro francês Sylvain Tesson, Servenière considera, contudo, que o grave e prosaico acidente que sofreu em 2014, que o levou ao coma e à paralisação parcial dos movimentos da face direita, tenha recrudescido esse desejo de existência breve e fim abrupto.

Entendo que em todas as atividades há “normas” que influenciam a trajetória humana. A vida contemplativa tem suas regras; a atividade artística em cada área caracteriza-se por determinada maneira de atuação, de proceder, de vestir-se, de viver “livremente”; o mundo corporativo tem, inclusive, atitudes frente à necessidade de evidenciar status no cotidiano, e a posse de bens materiais determina parte essencial da aceitação entre os pares; figuras mediáticas, em todas as funções possíveis, agem a pensar diuturnamente no holofote, “aparência” da verdade; personagens mundanas e frívolas só gravitam na superficialidade; o acadêmico na universidade sofre pressão constante vinda majoritariamente de carreiristas, geralmente com estreiteza de pensamento; políticos, com raríssimas exceções, pensam em suas trajetórias pessoais. O aventureiro, seja alpinista, navegador, andarilho ou a utilizar não importa qual meio de locomoção, conhece os riscos diários que podem levar ao fim da existência. Uma outra concepção se instaura em sua mente, que se pode traduzir em solilóquio, no vasto espaço da solidão e na antevisão da morte.

Essa atração pelo isolamento voluntário, expressa por Tesson na entrevista a Carine Marret e que o faz mergulhar no mundo interior, não diverge do que pensa Henry de Montherlant (1895-1972): “O importante não é ser diferente dos outros, mas diferente de si mesmo”. Seria Montherland a escrever que “aquele que viveu intensamente em parte venceu a morte”, frase de sua narrativa Un voyageur solitaire est un diable. Frise-se que Montherlant se suicidaria em 1972.

Servenière observa:

“Não fiz nenhum comentário a respeito de seu artigo sobre Sylvain Tesson, pois não sabia o que dizer e você disse tudo. Ademais, o vídeo é tão esclarecedor quanto à trajetória de nosso aventureiro! A respeito do discurso tessoniano ‘viver a vida em plena velocidade desde que ela seja curta’, sinto a frase como uma forma de testamento daquele que escapou da morte por milagre… Sente-se Sylvain em estado de urgência, apesar de mostrar-se calmo e realizado após suas explorações pelo mundo e sua vida e seus escritos plenos de sucesso. O vídeo, ao qual assisti por duas vezes, é magnífico.

Estou a ler presentemente ‘S’abandonner à vivre’, de Tesson (vide blog de 06/06/2015). Gosto muito, apesar de não aderir ao posicionamento ‘última solução’ do autor. Explico-me: última folha pelo fato de que se trata de uma ‘alegria sine qua non e, após, o dilúvio’. Para Sylvain Tesson, ‘estar vivo’ significa ‘viver velozmente sua vida’, ‘aproveitar o mais rapidamente a vida e tudo que ela nos oferece’… ‘mesmo que tenhamos de morrer jovens’. Para mim, viver não é simplesmente fazê-lo com intensidade, mas viver todos os períodos para melhor compreendê-los e também saber-se partícipe do contexto da vida, prolongando-a para nossas crianças e criações.

Não ter filhos, por escolha, impossibilidade ou egoísmo, poderia representar alienação frente à vida, à maneira de interpretá-la. Seria como um pintor falar de pintura sem nunca ter pego um pincel. Ter filhos, sem entrar no juízo de valor, nos conduz a um outro mundo, desde a intenção de tê-los.

Não sei se Sylvain Tesson tem ou não filhos. Sua vida é bela e seus livros e suas aventuras são incríveis, mas sente-se algo incompleto, talvez  correndo sem cessar atrás de espectro invisível. Não obstante, como podemos julgar que existe um homem completo? Complexa questão a que nos propomos constantemente. Não temos nós todos falhas, equívocos, desequilíbrios? Fizemos escolhas, especializamo-nos nos domínios por nós eleitos, o que nos limita o conhecimento de domínios estranhos… É isso. A completude da vida se faz pela assembleia dos humanos e todas as particularidades que formam o conjunto de um só corpus de experiências e de conhecimentos. Impossível conhecer tudo, verdadeira pretensão do homem!!!

Sobre o seu artigo no blog, diria que é necessário ver a literatura de Sylvain Tesson  como a de um antropólogo, cuja curiosidade sem trégua jamais será resolvida. Os viajantes são assim. Há os viajantes de salão, que surfam sobre seus sonhos e criam mundos extraordinários. Existem outros que passam em revista a Terra para preencher seus cadernos substanciosos, observando o planeta real e criando realidades mais belas do que o próprio real, pois apenas eles saberiam colocar palavras talentosas sobre o que observam, ressentem e entendem. Sylvain Tesson é um desses poetas esclarecidos. Fascinava-me a dicotomia entre meu amigo eslovaco Josef Baàn e meu posicionamento intelectual. Ele buscava na etnomusicologia as razões de ser de sua música, pois buscava, para a inspiração musical, conhecer cientificamente as raízes da música junto aos povos primitivos. De minha parte, compunha a partir de meu espírito, com ciência e memória, talvez, mas, antes de quaisquer outras razões, pela introspecção profunda. Inerente, adquirida?

Eu amo viajar. Não saberia dizer se amo a atração da viagem mais do que a própria viagem. Amo ser viajante, mais do que encontrar um desiderato para a viagem, uma destinação, seja intelectual ou física. Sou um viajante mental, pois meu espírito viaja a cada dia em torno da Terra. Todavia, creia-me, não realizei nada comparável a Sylvain Tesson. Lê-lo permite-nos viajar por procuração, mesmo que a situação seja insuficiente. Você bem sabe que não é fácil para um músico profissional viajar, sobretudo quando o piano é o instrumento. Flautista e violonista têm maiores possibilidades”. (tradução: JEM).

Debate sem limites. A mente humana sempre a viajar para locais palpáveis ou para o de profundis, sempre insondável.

In this post I transcribe message received from the French composer François Servenière, with his comments on Tesson’s worldview, as expressed in the book “On a roulé sur la Terre”.