Comentários que enriquecem temas debatidos
Por mais longe que o espírito alcance,
não vai tão longe quanto o coração.
Provérbio chinês
A apresentação pela terceira vez em São Paulo da integral para teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano teve recepção à altura dessa criação magnificente. Reitero que das apresentações anteriores, 45 e 33 anos escoaram-se. Um fato calou-me. Quando da segunda vez, uma de minhas filhas, Maria Beatriz, esteve presente. Estava ela nos seus dezessete anos, a mesma idade de sua filha Maria Teresa, que compareceu às presentes apresentações.
Atualmente Jean-Philippe Rameau é cultuado no hemisfério norte, mas ignorado em nosso país. Obra excelsa, que obteve acolhida calorosa e questionamentos a mim dirigidos sobre o porquê desse desconhecimento. Respondi que os quatro blogs destinados a Rameau no mês de Agosto buscaram esclarecer razões estranhas que regem nossa cultura musical. Recebi várias mensagens comentando as apresentações. Divulgo opiniões causadas pelo impacto que a sublime criação ramista produz. Nos posts dedicados a Rameau salientava posições de Georges Migot, François Lesure, Cuthbert Girdlestone, Philippe Beaussant e François Servenière, demonstrando a valoração que a obra para teclado do compositor nascido em Dijon adquire ao ser executada ao piano.
Primeiramente, insiro a instigante mensagem de François Servenière, que me tem honrado com inúmeras reflexões, mercê de ser o notável compositor e pensador francês um missivista vocacionado e polemista nato. Escreve a comentar frases de Debussy mencionadas no penúltimo post, assim como tece posicionamento a respeito das interpretações do grande pianista russo Grigory Sokolov, citado no mesmo blog, pelo fato, entre outros, de estar a divulgar assiduamente em recitais pelo mundo as criações de Jean-Philippe Rameau. Compara-as às que gravei na Bulgária e lançadas em CDs pelo selo belga De Rode Pomp.
“Gostaria de considerar suas oportunas citações de posicionamentos famosos do mestre de todos nós, Debussy, ele mesmo discípulo do tronco principal e de suas ramificações, que é certamente o grande compositor e teórico francês por excelência, Jean-Philippe Rameau. Explicam bem o que se pode imaginar entre duas obras, aquelas que fertilizam o futuro e aquelas que esterilizam esse devir. Esta manhã, após a leitura de seu último blog ( IV ), ouvi novamente a magnífica Gavotte et Doubles. Não nos cansamos jamais dessa música, um contínuo encantamento. O compositor de nossa época deve ter suas reservas não escutando demais essa música perfeita, pois ‘como ultrapassar o gênio musical?’. Ouço maravilhado os compositores do passado, mas fico na desconfiança, pois a perfeição do passado, paradoxalmente, é esterilizante para um criador, para seu espírito, para seu gênio… Na minha enorme discoteca, por essa razão, há certa camada de poeira…”. Nunca é demais considerar que muitos compositores hodiernos de várias tendências preferem ignorar seus antecedentes criadores, hélas.
“Teria comentários a fazer sobre as gravações de Grigory Sokolov da obra de Rameau para teclado, por você mencionado elogiosamente, e as suas. Ouvi atentamente as duas versões. Ficamos atônitos pelo contraste produzido por um mesmo texto musical sobre espíritos abastecidos por culturas diferentes. Uma, latina e sensual (a sua), que edifica uma coluna cultural sólida no convívio com costumes de seu povo tropical, mas não negligenciando a estrutura intelectual e consagrada europeia, daí a intenção de magnificar clara e nitidamente as bases sedimentadas da criação ramista; a outra, de Sokolov, nórdica e eslava, acostumada à estrutura das sociedades stakhanovistas (F.S. faz referência ao mineiro russo Alekseï Stakhanov que, em 1935, bateu recorde extraindo 102 toneladas de carvão em seis horas) por necessidade vital e que produz uma execução de sensualidade incrível, acariciante. Enorme contraste! Estamos diante de uma mesma partitura! As duas interpretações são sublimes, tanto a dele como a sua. Essa constatação nos leva a compreender que, para ter acesso a duas verdades quase extremas, o texto base pode se tornar de uma riqueza semântica inacreditável.
Sob outra égide, amo ler os compositores e os criadores do passado falarem de sua arte e de seu tempo. E, humildemente, eu me reencontro. Como Rameau e Debussy, busco minha inspiração, antes de qualquer coisa, na natureza, naquilo que nos circunda, nas estações que passam, nas mudanças climáticas. Século ou séculos de recuo e falamos dos mesmos temas, das mesmas preocupações, com os diferenciais advindos dos avanços graças ao progresso. Mas o criador deve falar a língua de seu tempo, essa é uma realidade incontornável. Entre Rameau, Debussy e nós não existem senão ‘vestimentas’ da música que mudam, as épocas se encarregando das formas e das aparências da moda, os avanços devido ao progresso. Cada espírito ressente a necessidade da transformação e da renovação permanente, esse mecanismo sendo tão natural como a passagem das estações. Qual esse elo que persiste nas obras de nossos ilustres antepassados e nas que produzimos, colocando autores tão diferentes como Rameau e Debussy ou a obra que compomos face às mesmas permanências do espírito? Rameau já teria mostrado o caminho: ‘é para a alma que a música deve falar’ ou ‘durante a composição musical, não busque lembrar as regras que poderiam escravizar seu talento’. Em nossos tempos, tabula rasa, tende-se a cortar esse tronco, essa seiva, essa essência da vida, essas raízes que contêm a verdade em seu DNA da vida… Cortá-la seria fabricar plantas fora do solo, robots sem alma, ideias que nada mais têm a ver com a terra e o céu, com a vida, pois. Clones, mortos-vivos foram fabricados. Proeza lógica do nihilismo. O contrário de Rameau e Debussy, para os quais a natureza é um fim sob o prisma intelectual e por sua fisiologia. Dessa maneira não nos enganamos sobre os fundamentos da humanidade à qual a música é destinada. Não nos esqueçamos que a beleza é uma escolha humanista.
Lembremos Rameau: ‘… a música no seu conjunto deveria ser reduzida a uma combinação de números’, MAS [...] ‘A música é a linguagem do coração’. Eis o que eu penso firmemente e minha música também. Ramistas nós somos, ramistas nós continuaremos. Ser ramista ou debussista é amar a vida, simplesmente” (tradução: JEM).
As palavras de François Servenière traduzem bem seu espírito rigorosamente não nihilista e distante de tendências em que a emoção não prepondera. Se Jean-Philippe Rameau saúda a matemática e a construção musical, seguindo as regras voltadas aos números, o caminho que o compositor abre para que ecloda a emoção, a sensibilidade, o lirismo e a poesia é evidente em suas criações. O obra para teclado e as magnificentes criações para o teatro lírico contêm centenas de exemplos dessa inundação emocional. Diga-se, René Descartes (1596-1650), no “Compendium Musicae”, já escrevia que a música foi feita para emocionar, e François Couperin (1668-1733), no Prefácio do terceiro livro de “Ordres”, (suítes) para clavecin, comenta que prefere aquilo que o emociona àquilo que o assombra.
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Na ausência de crítica escrita por músicos em nossa cidade, transcrevo e-mail recebido da competente pianista Sylvia Maltese a respeito dos recitais Rameau que apresentei nos dias 20 e 27 na Sociedade Brasileira de Eubiose, em São Paulo.
“Rameau, um autor a quem sempre admirei pela construção harmônica, pelo requinte dos ornamentos, enfim, pela reflexão intelectual, foi revelado a mim através de sua leitura e interpretação, em todo o esplendor! O compositor, que me parecia cerebral, é revelado em toda a humanidade, arte, criatividade, lirismo!!! E ele encontrou em você o intérprete! Sobretudo o seu Som! Trabalhado nos menores detalhes em seus matizes sonoros e recursos timbrísticos. O pedal fantástico, valorizando as construções harmônicas e melódicas, a apresentação de uma obra pianística sem perder nenhuma das virtudes da obra cravística, pelo contrário, enriquecendo a criação como um todo. Foi emocionante e emocionou a todos!”
Magnus Bardela completou brilhantemente o curso de música na Universidade de São Paulo. Foi meu aluno. Escreveu:
“Havia tempo que não o ouvia. Como soou bem! Percebi inflexões novas na interpretação, mais líricas até, no seu Rameau. O Debussy saiu impecável, inegável domínio que o José Eduardo tem desse universo dos sons. Já falei e volto a dizer: o amigo tem o controle da dinâmica e da agógica dos grandes nomes de ontem, algo que não se ouve mais hoje (infelizmente), constatado apenas nas gravações de Bolet, Segall, Guilles, Sanson François ou de Thierry de Brunhoff, todos pupilos de grandes mestres”.
After my two recitals with the complete keyboard works of J-P Rameau played on the piano and four posts on this extraordinary composer published throughout August, I received some messages that I want to share with my readers. The first, by the French composer François Servenière, is a long and reflective analysis of Debussy’s comments on Rameau’s works and also of my recordings of such works. The last two ones are appraisals of my recent recitals written by true musicians.
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