Um romance sedutor de Heitor Rosa

Mas não se trata de um trabalho científico, acadêmico;
o que temos aqui é um romance que prende o leitor
da primeira à última página.
Moacyr Scliar

Girolamo Fracastoro (1478-1553), também conhecido pelo nome latinizado de Hieronymus Fracastorius, foi uma das mais notáveis figuras de seu tempo. Médico, humanista, poeta e filósofo italiano, Fracastoro ficaria imortalizado por suas teorias racionais sobre as doenças contagiosas que grassavam no período. O nome sífilis, difundido na época como Mal Francês vem de um de seus poemas, “Syphilis, Sive Morbus Gallicus”, de 1530. Também se debruçou sobre a peste que ceifou porcentagem altíssima das populações europeias. Deve-se a ele estudos sobre o tifo. Como astrônomo, publicou em 1538 o importante “Homocentricorum Sive De Stellis Liber”.

Resenhei há semanas o livro do médico e escritor goiano Heitor Rosa, “O Enigma da 5ª Sinfonia” (vide blog de 30/07/2016). Heitor Rosa não é apenas professor e gastroenterologista respeitado, mas também escritor de reais méritos. Pesquisador da medicina antiga, mormente a do fim da Idade Média e início da era Moderna. No blog mencionado inseri alguns dos aprofundamentos de Heitor Rosa quanto às práticas medicinais do período, tratamentos habituais onde não faltavam ervas, sementes, poções advindas dos lugares mais distantes da Terra e que, misturadas ou não, produziam lá seus efeitos paliativos. Sangrias eram comuns, a sanguessuga habitualmente utilizada.

Li com enorme interesse “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro” (Rio de Janeiro, Bertrand, 2006), romance de Heitor Rosa. O título já é intrigante. A classe de cirurgião-barbeiro era respeitada nas comunidades. Sem o título de Doutor, o cirurgião-barbeiro desempenhava função fulcral nas cidades. Lembraria ao leitor que, em termos brasileiros, nos séculos XVIII e XIX o barbeiro desempenhava em rincões do país igualmente a função de dentista, verdadeiro “tiradentes”. A extração nos casos necessários era realizada após ingestão “anestésica” de cachaça.

O narrador criado por Heitor Rosa, Gioacchino dalla Rosa, torna-se cirurgião-barbeiro, a mesma profissão de seu pai, estuda as práticas em Londres, regressa a Verona e dá-se o encontro com Fracastoro: “Em certa manhã de maio, enquanto amolava as navalhas, ele apareceu, pedindo-me para aparar a barba e o bigode. Impossível esconder o susto. Diante de mim, encontrava-se o homem mais popular, querido e respeitado de Verona, Girólamo Fracastoro. O mais sábio”. O médico convida-o para ser seu assistente nas tantas tarefas a visar ao combate ao Mal Francês (sífilis) que assolava a Europa. Apresenta-se atrasado no dia seguinte em casa do ilustre Fracastoro, pois a cidade estava atônita com a morte de dois jovens, Romeu e Julieta!!! Fracastoro o repreende pelo atraso e doravante Gioacchino tornar-se-ia fiel auxiliar.

O romance ganha “fidelidade” em todas as narrativas nas quais procedimentos médicos, tratamento, preparação de medicamentos estão em causa. Heitor Rosa, que durante seus estudos de medicina em França e na Inglaterra interessou-se pela temática a envolver os séculos XIV a XVI, assimilou conhecimentos imprescindíveis para dar às memórias do cirurgião-barbeiro a mais abrangente “autenticidade”. Gioacchino acompanha determinados tratamentos ministrados por Fracastoro e ganha o leitor ao conhecer procedimentos empregados pelo notável médico italiano. Nos incontáveis diálogos médico-assistente, Heitor Rosa tira de Fracastoro conceito relativo à moléstia e ao tratamento: “… a moléstia é pior do que o tratamento; viste alguém morrer dele? Garanto, entretanto, que não tens a conta dos mortos pela doença. Por acaso achas que desconheço o princípio de primum non nocere? ‘Antes de qualquer coisa, o médico não será nocivo’. É um aforismo de Hipócrates”. Basicamente a temática gira em torno da sífilis, o Mal Francês.

Católico, Fracastoro frequenta as mais distintas autoridades eclesiásticas, devido a sua sapiência médica. Esse tema é bem conduzido pelo autor e a narrativa feita por Gioacchino acompanha Fracastoro em visita privada ao Papa Paulo III. Comparece ao Concílio de Trento. A probabilidade de a peste atingir a cidade causa um imbroglio muito bem administrado por Heitor Rosa.

Uma das maiores virtudes de “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro” é a sequência fidedigna. Percebe-se claramente que o autor buscou estudar pormenorizadamente a vida, os atos, a obra e os caminhos percorridos por Girólamo Fracastoro. Segui-lo em sua biografia, entrando em cena através de fértil imaginação e criatividade, foi consequência positiva. Trazê-lo aos nossos dias com o pleno conhecimento do personagem que desfilou sua competência a mais de meio milênio é tarefa difícil. Qualquer deslize inviabiliza a trama imaginária calcada na realidade vivida. Não fosse Heitor Rosa um respeitado profissional na área médica, teríamos inconsequências.

Não poderia faltar um relato amoroso. Gioacchino torna-se confidente de Fracastoro e segue a paixão do médico pela bela Helena que morreria após doença igualmente incurável àquela altura – tifo, peste, raiva?

Sob égide diferenciada na condução das tramas, não há como não associar “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro” ao romance, igualmente abordando o período medieval, “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco. Se o autor italiano encaminha a narrativa em área de seu domínio, Heitor Rosa, de maneira quase professoral, ensina-nos uma parcela da história da medicina através não apenas das reflexões do narrador, como a partir dos inúmeros diálogos com o mestre e médico sobre a origem das doenças que levavam à morte, por vezes, populações inteiras.

Como bem escreve o médico e escritor Moacyr Scliar (1937-2011) nas orelhas do livro: “Através de sua narrativa, somos introduzidos a um capitulo verdadeiramente extraordinário na história da medicina e da humanidade. Aprendemos, portanto, e aprendemos com emoção e prazer. Pelo que só podemos dizer a Heitor Rosa: ‘Obrigado, doutor’. Ah, sim, e ‘obrigado, escritor’ “.

Reitero o que escrevi na resenha de “O Enigma da 5ª Sinfonia”, pois os livros de Heitor Rosa deveriam ser divulgados através de nossas livrarias. Oxalá isso ocorra.

Today’s post is my appreciation of the book “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro” (Memories of a Barber-Surgeon), written by the Brazilian doctor and University teacher Heitor Rosa. Intertwining historical and fictional characters, the story focus on the life of the Veronese doctor Girolamo Fracastoro (1478-1553) and his research on syphilis. Narrated by Fracastoro’s fictional assistant , Gioacchino de la Rosa, the enrapturing plot — with its historical truth solidly documented – makes readers dive into the ambience of 16th century Europe, unveiling its religious ideas and medical practices.