A importância de seu pensamento pedagógico
Rameau fez para a música aquilo que apenas um músico poderia fazer:
ele repensou inteiramente sua arte
à luz das últimas descobertas da ciência.
Descobrindo os princípios,
foi-lhe possível propor uma explicação coerente.
Tornou-se viável para Rameau
não apenas realizar plenamente o ideal humanista
do ‘musico perfetto’,
mas proporcionar aos outros os meios de o realizar.
Marie-Germaine Moreau
Apresentamos no post anterior segmentos das “Réflexions sur la manière de former la voix”, de Rameau, abordando dados precisos e inéditos relacionados à pedagogia, mormente aquela voltada ao canto e à interpretação ao cravo. O compositor-teórico, partindo de metodologia baseada em preceitos já expostos bem anteriormente por Réne Descartes (1596-1650) no “Compendium Musicae” e no “Discours de la Méthode”, apreende conteúdos mercê da observação, dedução e teorização, entre outros atributos, que serão aplicados não apenas na edificação do “Traité de l’Harmonie”, de 1722, como nas “Réflexions…”, de 1752, obra de cunho pedagógico. Se a partir do século XVIII, acentuadamente, surgiram textos visando, ainda em fase embrionária, diga-se, à individualização do ensino musical voltado à formação do intérprete nas áreas do canto e da execução ao cravo, poder-se-ia acrescentar que Rameau, nas “Réfléxions…”, busca transmitir orientações através da arguta observação, corroborando a maneira mais exata da preparação física e interpretativa. Fulcra seu pensamento na indispensável aptidão do aluno e em seu denodo e na transmissão do conhecimento por mestre competente. Rameau enfatiza as possibilidades físicas e anatômicas do humano numa plena acepção, mas ressalva que técnica se adquire através do não esmorecimento. Está atento à evolução do aluno e à transmissão do mestre, a este não poupando críticas, mas louvando atitudes quando se faz necessário.
Nas “Réflexions…”, atenta para o fato de que a contração impede o bom som, princípio que estaria em muitos manuais e métodos posteriores. Não teria sido essa contração do corpo, das mãos, da emissão da voz, do gesto na dança, durante séculos, a causa de tantas vocações autênticas se estiolarem? No desiderato preciso de buscar a plena flexibilidade no canto, na dança e na execução ao cravo, a fim do resultado adequado, Rameau tece comentários de rara atemporalidade.
“Essa reflexão sobre flexibilidade e execução correta é importante, pois quase nenhum de nossos Mestres, seja para o canto, seja para os instrumentos, presta a devida atenção. Mal um iniciante começa a entoar alguns sons em sequência que lhe impõem o ensino da Música. Seu espírito, ocupado por tantos objetivos diferentes, provoca a distração relativa às funções naturais. Mais ele percebe como múltiplos ensinamentos devam ser assimilados, mais esse iniciante assoberbado busca realizá-los emitindo os sons incorretamente em decorrência do acúmulo de tarefas que lhe são impostas, advindo, em consequência, defeitos de afinação e de flexibilidade. Esse aluno toma consciência desses erros no momento devido; mas, como podemos acreditar que ele consiga saná-los se considerarmos que, longe de fornecer-lhe meios, distraiam esse aluno com inúmeras ocupações: claves, notas, suas nominações, seus valores, sua exata entonação a partir do que está na pauta musical, compasso e tempo, sinais que marcam diferenças, suspiros, pontuações, sustenidos, bemóis, bequadros e a transposição. Eis tudo aquilo que o ocupa bem antes do essencial, que é formar a voz fazendo-a emitir o mais belo som possível em toda a extensão, torná-la afinada e flexível e estender sua tessitura além dos limites previstos inicialmente”. Até meados do século XVIII, a indicação na partitura de sinais concernentes à dinâmica, agógica, articulação e tempi basicamente inexistia. Rameau continua: “Tratando-se de um instrumento, mestres não esperam que os dedos do iniciante tenham adquirido a flexibilidade necessária e já lhe impõem árias onde ordenação, sucessão dos dedos, compasso e tempo, ornamentos e as duas mãos ocupadas e independentes tornam praticamente impossível, mesmo com as melhores disposições do iniciante, não levá-lo à contração, à execução forçada. Acrescentemos a partitura, como muitos o fazem antes do prazo, e julguemos se, após todos esses fatos, não é plausível considerar que apenas por puro acaso encontramos um entre mil que consegue se realizar sem qualquer defeito de formação”. Rameau buscaria não antecipar ensinamentos que possam perturbar essa primeira fase de um iniciante: colocação da voz e posicionamento dos dedos através de exercícios, procedimentos anteriores ao conhecimento teórico necessário.
Atento à formação do iniciante após a adequação da voz e das mãos, nos casos canto e instrumento mencionados, Rameau ratifica a postura relativa à ansiedade em se obter resultados, observando que o talento pode se tornar entrave se não acompanhado seriamente. “O que é mais nocivo numa metodologia é verificar que mais o talento se pronuncia, mais pode ser simulacro. O talento que supõe sentimento leva-nos a querer executar as músicas como sentimos que elas devam ser executadas e, não havendo ainda nos movimentos da glote ou dos dedos toda a flexibilidade necessária, fazemos esforços para a obtenção dos efeitos e esses esforços aumentam dia a dia, tornando-se rotineiros, de tal sorte que nós nos sentimos desde então privados daquilo que nos é natural.
A ansiedade dos estudantes e mesmo dos pais não deixa praticamente espaço ao mestre para que tenha a liberdade de poder conduzi-los à sua vontade, pois se há mestres muito capazes e em grande número, nesse caso da ansiedade melhor se mostra, como presenciei, abandonar os alunos que não se rendem à razão”.
Rameau evidencia que a boa execução deve estar atrelada à compreensão dos princípios teóricos, tornando-se pois a aplicação de toda uma apreensão rigorosamente necessária. Nos vários posts dedicados a Rameau não deixei de mencionar a célebre frase do autor, “a música é a linguagem do coração”. No penúltimo parágrafo das “Réflexions…” Rameau volta-se à expressividade: “O sentimento, órgão do bom gosto e a alma da bela execução, corrobora infinitamente para essa interpretação, sendo o apanágio dos espíritos atentos: a indolência, ao contrário, a indiferença e a timidez fazem com que se perca todo o esforço. É o que se pode considerar antes de qualquer juízo definitivo. Confunde-se facilmente na execução o que depende da flexibilidade dos movimentos daquilo que depende do gosto. Uns exprimem o sentimento com uma execução ansiosa e forçada, outros não conseguem transmitir aquilo que sentem e, apesar de suas execuções serem por vezes perfeitas, há contudo um fundo de indolência, indiferença e timidez que os contém” (tradução: JEM).
Finalizando a série de posts sobre Jean-Philippe Rameau (sete ao todo entre Agosto e Setembro, sem contar posts em anos anteriores), sua obra para teclado, seus textos teóricos que atravessaram os séculos, algumas posições competentes de músicos ratificando a importância inalienável de Rameau e minhas conceituações sobre a opera omnia escrita originalmente para cravo, mas interpretada ao piano, primeiramente pela insigne Marcelle Meyer na década de 1950 e em 1997 por mim, diria que deveríamos melhor conhecer a imensa criação composicional de Rameau. Quem sabe, após mudanças essenciais e imprescindíveis que estão ocorrendo no nosso Teatro Municipal, vocacionado para o teatro lírico, as tragédias líricas e as óperas-balés de Rameau não mereçam oportunidade através de critérios meritórios tão somente? Seria um arejamento de nossa programação lírica. Para os pianistas e professores, fica sempre um apelo: conheçam melhor a opera omnia de Rameau, cujo resgate mais abrangente faz-se necessário.
In this second and last post on J-P Rameau’s “Réflexions…”, once again I comment on some aspects of this landmark work and its importance for the development of skills in singing and playing.
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