O humor de Heitor Rosa em contos hilariantes

Escrevendo ou lendo
nos unimos para além do tempo e do espaço,
e os limitados braços se põem a abraçar o mundo;
a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Agostinho da Silva

Durante curso e recital que dei na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás tive a satisfação de manter mais uma vez contato com Heitor Rosa. Ele e sua esposa, a competente professora da EMAE-UFG, Consuelo Quireze, ofereceram, após meu recital, uma bela recepção em seu apartamento. Oportunidade para buscar entender o fascínio do médico escritor pela medicina medieval, diagnóstico, instrumental, tratamento e ervas medicinais utilizadas nas “poções mágicas” de antanho, que o inspiraram a escrever dois romances, a partir de seus conhecimentos como embasamento seguro. Ofereceu-me “Histórias da Creusa”.

Antolha-se-me que o humor, principalmente no Brasil, quando praticado por contistas mediáticos, tende muitas vezes a resvalar para a vulgaridade ou para aquilo que causa sensação através de palavreado por vezes chulo, enredos de banalidade extrema e divulgação imensa nos veículos principais. A televisão aberta não apresenta, em todos os programas humorísticos, o bestiário mais rasteiro para a satisfação dos que promovem e do público com viseiras? Sim, temos contistas como Machado de Assis, Lima Barreto, Moacyr Scliar, Fernando Sabino, Ruben Braga, Frederico Branco (vide blog “Frederico Branco – A revisitação das imagens perdidas”, 09/03/2007) entre muitos de imenso valor, que souberam valorizar o gênero e adentrar por vezes no difícil campo do fino humor. Heitor Rosa é um deles e sua cultura invulgar, seu arguto senso de observação e sua vocação literária propiciam o amálgama da história real e da narrativa idealizada.

Este é o terceiro livro de Heitor Rosa que tive o prazer de ler. Diferentemente de “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro” (vide blog, 10/09/2016), no qual bases históricas sólidas ajudaram a construção da narrativa do romance, ou mesmo do “Enigma da 5ª Sinfonia” (vide blog, 30/07/2016), em que personagens históricos vivem  situações jocosas, “Histórias da Creusa”, que os precede  (Goiânia, Kelps – UGG, 2009), é totalmente voltado ao humor fino, hilariante, inteligente. Creusa, a serviçal intempestiva, atabalhoada e fisicamente avantajada dá título ao livro e permanece a causar situações embaraçosas nos primeiros capítulos do livro. Um dos contos estará inserido no “Enigma da 5ª Sinfonia”.

O livro, dividido em quatro secções distintas, “Histórias da Creusa”, “Os ossos do Coronel Azambuja”, “Histórias não contadas da Guerra do Iraque” e “Outras Histórias”, apresenta o contista em pleno domínio da narrativa diversificada. Não poucas vezes adentra em temática relacionada à sua atividade de médico, como “Medicina alternativa”; “Consulta eletrônica”, verdadeira paródia da tecnologia em constante evolução; “Medicina do Mercosul”, crítica às muitas soluções fruto da incompetência; “Perfumai vossos puns!”. Neste conto, sem qualquer artifício banal ou “rasteiro”, comum nessa categoria literária, o autor, também jocosamente, parte de algo relacionado à esfera médica e, no jogo das palavras e nos diálogos entre um médico e um pesquisador em Congresso europeu, cria um conto hilariante.

Se Creusa está presente em seis contos, creio que na secção central, “Os ossos do Coronel Azambuja”, em seus quinze capítulos, Heitor Rosa constrói um dos melhores conjuntos de sábio humor da literatura brasileira. Centrado no personagem principal, José de Arimatéia, nascido em local idealizado pelo autor, “Serra Verde de Goiás, cidade próxima ao Triângulo Mineiro”, Rosa leva o leitor a acompanhar o desenvolvimento desse filho de um coletor através de passagem por seminário e estudos em Roma. “De volta ao Brasil, já não lhe interessava a incipiente carreira religiosa, e assim abandonou-a de imediato para dedicar-se ao ensino de História e à tarefa de transformar o país”, escreve Heitor Rosa. Após lecionar História em colégio respeitado de Belo Horizonte, retorna à terra natal como ilustre personagem. As peripécias incontáveis de Arimatéia, no desiderato de fazer com que, de Serra Verde, transformações locais sejam aplicadas no país, são de extraordinário humor e impossível não gargalhar durante a leitura. Os desdobramentos de duas dessas transformações são extraordinários: a persuasão de Arimatéia no sentido de que juiz, promotor e advogado de defesa da cidade, além das vestes negras, passassem a adotar o uso da peruca, tradição inglesa, em todas as sessões de julgamento, o que, à maneira de uma bola de neve, poderia ser utilizado Brasil afora, tem final absolutamente surpreendente. Numa segunda mirabolante ideia de Arimatéia, a construção de um panteão, no qual os mortos ilustres da cidade permanecessem ad eternum, tem enredo muito bem tramado e desfecho inesperado.

Após os quatro capítulos de “Histórias não contadas da Guerra do Iraque”, Heitor Rosa insere, em “Outras Histórias”, treze contos independentes, curtos, precisos e tematicamente bem diversificados.

Nos dois livros anteriormente resenhados salientava que urge a divulgação maior dos romances e contos do notável escritor goiano. Dia a dia vemos surgir tantos títulos que fadados estão ao desaparecimento, tão logo a ação mediática deixe de agir. Assistimos, de maneira galopante, a atores televisivos escrevendo sobre tudo de maneira superficial; radialistas e jornalistas lançando livros sobre o hodierno político que se estiola tão logo o efêmero seja suplantado por novos casos, que igualmente terão vida curta; esportistas em incursões literárias “históricas” evidenciando qualidade “suspeita”. Quantos não são os livros “depoimentos” escritos pelo outro? Passado o por vezes tsunami, o ostracismo se faz. Todavia, hélas, sempre outras torrentes estão surgindo.

Recomendo a obra literária de Heitor Rosa. Nas várias modalidades, estamos diante de um mestre da literatura, sem dúvida.

In today’s post I comment on the book Histórias da Creusa, written by the Brazilian doctor and University teacher Heitor Rosa. It is a book of hilarious short stories written with fine humor by a man of broad knowledge, keen power of observation and undeniable gift for writing, capable of sustaining readers’ interest from beginning to end. Heitor Rosa is a master writer whose books deserve better promotion and marketing.