Sylvain Tesson e os caminhos esquecidos da França

Atravessar vilarejos dava a impressão de passar em revista fachadas a meio mastro.
O que não estava fechado estava à venda,
o que estava à venda não encontrava comprador.
Os monumentos aos mortos levavam nomes gloriosos e
até os habitantes vivos vagando pelas ruas
bem poderiam se juntar à lista.

Sylvain Tesson
(“Sur les Chemins Noirs”)

Ao longo de treze livros resenhados neste espaço desde Maio de 2011 (vide menu “Resenhas e comentários – Lista”), a leitura de “Sur les Chemins Noirs” acentua determinadas constantes no pensamento de Sylvain Tesson, agregando outras, tangíveis após o grave acidente que sofreu em Agosto de 2014, ao cair de uma altura de 8-10 metros escalando as paredes da casa de um amigo em Chamonix. Esteve em coma durante bom tempo, sofreu várias fraturas, permanecendo indeléveis resquícios, sobretudo em seu rosto. Confessaria que “foi um acidente estúpido, sentia-me imortal”. Bem ele, que percorreu o mundo a pé, de bicicleta ou de moto, viveu tantas peripécias “no fio de uma lâmina” e viria a sofrer acidente prosaico nessa queda que deixou tantas sequelas.

“Sur les Chemins Noirs” (Paris, Gallimard, 2016) apresenta um caminho mais “modesto” de Sylvain Tesson, naquilo que ele mesmo confessaria nas primeiras entrevistas após o grave acidente, ao propor direcionamento mais humanitário a partir da queda brutal. O escritor aventureiro se propôs atravessar a França, percorrendo-a em linha diagonal sinuosa, no sentido sudeste-noroeste, não através das auto estradas ou de outras vias pavimentadas, mas orientando-se pelos caminhos negros, também chamados de routes jaunes, em terra batida, de pedras ou apenas trilhas. Descreve-os como “caminhos banhados de puro silêncio, miraculosamente vazios”. Durante o longo trajeto não negligencia ferrovias desativadas. Distanciou-se durante todo o percurso das cidades maiores, pois interessava-o aprofundar-se nesses espaços ruralistas, tantos deles ainda vivendo à la manière dos séculos anteriores.

A longa viagem pelos caminhos negros o faz inteirar-se dos costumes, hábitos, desconfianças e mutismo desses personagens rurais perdidos em seus rincões e tendo acesso ao pequeno povoado, onde não faltam os ingredientes atávicos, o café, a barbearia, a quitanda e os prestadores de serviços. Quando dialoga com o homem rural, fá-lo sempre de maneira curta, sem qualquer ligação de mínima intimidade. Para o leitor que acompanhou as longas viagens de Tesson pelo planeta, sente-se que o contato com outros povos, da Rússia e da Ásia Central, como exemplos, são bem mais humanos. Seria possível entender que nessa empreitada – possivelmente devido aos problemas faciais – a inseparável flauta, tão presente em vários livros como elemento primeiro comunicante com o próximo, estivesse ausente. Ficaria a impressão, pode parecer paradoxal, de que Tesson teria maior prazer no contato com essas etnias tão distantes do nosso conhecimento. Esse “cartão de visitas” sonoro, tantas vezes mencionado em narrativas anteriores, que encantava os moradores dos yurts (tenda redonda mongol) espalhados pela vasta planura da Mongólia, assim como habitantes de outras regiões longínquas,  desaparece em “Sur les Chemins Noirs”. Estou a me lembrar de dedicatória de Sylvain Tesson a uma pergunta que lhe formulei em manhã de autógrafos em Paris aos 12 de Janeiro de 2014: “O único momento em que não sou melancólico é quando escuto música triste, que se encarrega do fardo de minha pena”. Sete meses após, sofreria o acidente. O sonoro flautado inexiste como elo durante toda a travessia pelos caminhos negros, assim como qualquer traço de entusiasmo, mesmo quando amigos, isoladamente, com ele se encontravam para caminhadas durante poucos dias.

O ruralismo francês, cortado por esses chemins noirs, põe à mostra o descaso do Estado e a volúpia das empresas que, ao se interessarem por algum rincão, trazem o “progresso”, destroem tradições e têm interesses tantas vezes estranhos. Como arguto observador, não deixa de notar os animais domésticos, basicamente familiarizando-se à distância. Essas observações, paradoxalmente, excluem o pormenorizar lugares percorridos, não havendo qualquer vestígio de uma interpretação turística. Se tantas vezes a natureza o impacta, essa é anônima, perdida em um desses chemins noirs. Sob outro aspecto, fica mais evidente, nesse corte dos extremos do território francês, sudeste-noroeste num sentido longitudinal, um possível menor envolvimento com a geografia em comparação com as narrativas anteriores. Seria possível supor que atravessar sua França, país do chamado primeiro mundo, a observar a precariedade dos caminhos, das casas esparsas, da desassistência do Estado, do mutismo do homem rural desesperançado frente ao “progresso”, tenha provocado em sua mente um recrudescimento de aversão aos avanços em quase todas as áreas e o desprezo pelas elites. O pensamento de Tesson, nesse caminhar, mergulha nos tempos da idade da pedra até os feudais, tempos imóveis, segundo ele. O progresso sem controle fá-lo refletir sobre a velocidade dos acontecimentos, pois “a ode à ‘diversidade’, à ‘troca’, à ‘comunicação do universo’ surgia como o novo catecismo dos profissionais da produção cultural na Europa”. O observador verifica as consequências em torno dessa volúpia para que as coisas aconteçam: “os vales se viram afligir pelas grandes auto-estradas, as montanhas pelos túneis, o azul do céu pelas linhas brancas dos longos voos. A paisagem tornou-se uma decoração de passagem”. Verifica, ao percorrer vilarejos, “a presença de frutos e legumes tropicais na mais modesta quitanda”. Coloca uma questão nessas elucubrações sobre a mundialização: “por que não aceitamos que um ladrão de maçãs se introduza num pomar e por que permitimos que uma manga do Brasil reine numa quitanda d’Ardèche? Onde começa a infração?”. Comenta com certa dose de humor: “E interessei-me por uma inovação instalada em frente à Igreja: uma ‘máquina distribuidora de pães’ substituía a padaria. Um euro depositado na fenda e lá vinha a baguete. A máquina foi vandalizada. Moralidade à francesa: quando falta pão, o povo se revolta; quando faltam padeiros, ele quebra as máquinas”. Com quase resignação: “A ruralidade instituiu-se como princípio de resistência a toda empolgação. Escolhendo o sedentarismo, criou-se uma ilha no fluxo. Aprofundando-se nos caminhos negros, navegamos de ilha em ilha. Há um mês eu abro caminho no arquipélago”.

Alguns aspectos extraliterários devem ser abordados. Após o trauma sofrido, a lenta recuperação o obrigaria a uma intensa fisioterapia. Contrariando recomendações, o escritor aventureiro preferiu andar e atravessar o território francês. Diversamente dos livros anteriores, são inúmeras as menções de Tesson ao cansaço, às longas caminhadas. Constantes as lembranças do trauma sofrido. A narrativa não o esquece e praticamente todas as sequelas são homeopaticamente distribuídas em “Sur les Chemins Noirs”, de maneira por vezes pungente. O inveterado amante da vodka e das longas caminhadas, com estágio como “eremita” no lago Baikal, confessa: “Bebi para toda a vida nesses últimos anos, afogado nas caravanas de lembranças dos rios de vodka. Presentemente, acabou! A torneira mágica fechou”. Em outra menção, tem-se: “Foi-me proibido o vinho, mas eu podia ainda embebedar-me do vazio”. Rememora as décadas como viandante: “vinte anos nesse jogo sobre cumeeiras para, hoje, caminhar como uma idosa”. Durante o longo percurso, uma irônica observação, após ter dormido em um mosteiro: “Enriqueci-me com os 20 euros que recebi no mosteiro, pois uma velha senhora teve piedade ao ver meu rosto desfigurado: ‘Reze uma missa, para quem você quiser’, e lembrei-me de minha mãe, que jamais me teria feito tal pedido”. Encharca-se de medicamentos que o afligiam: “Acrescentaria as doses de colchicine para as complicações cardíacas e os produtos para atenuar as dores nas pernas. Incendiei minha vida, queimei as veias, dei um salto para escapar do incêndio e agora arrasto-me sobre os caminhos com uma inflamação geral que a medicina controla”. Jocosamente comenta: “tentemos não cair no rio, pensava eu passando por uma ponte, isso evitará à região uma poluição química”. Praticamente todas as partes do corpo afetadas pela queda em Chamonix são contempladas. A audição diminuiu e comenta noite em pequeno hotel onde, durante o jantar, a televisão estava em alto volume: “A vantagem da meia surdez está no fato de já termos o volume reduzido”.

O ataque epilético, nunca tratado em livros anteriores, pode ter sido provocado pelo traumatismo crânio-encefálico (TCE). Se o mal fosse anterior, creio que Tesson não teria permanecido meses, em pleno inverno, sozinho numa cabana siberiana (vide blog: “Dans les Forêts de Sibérie- Reflexões em cabana isolada na margem ocidental do lago Baikal”, 01/03/2014). Refere-se com naturalidade ao episódio. Estava Tesson a almoçar com amigo no alto de uma montanha quando lhe veio à mente a vontade de morrer: “era uma mancha negra que invadia o ser como a tinta de um choco escurece a água do mar”. Lembrar-se-ia, ao voltar a si, “era a epilepsia, o mal negro, e as fraturas de meu crânio favoreciam essas crises”.

À guisa de conclusão, Sylvain Tesson se posiciona: “Toda longa marcha tem lá seus ares de salvação. Colocamo-nos a caminhar, avançamos a buscar perspectivas nas dificuldades, evitamos os vilarejos. Encontramos abrigo para a noite, recompensamos em sonhos as tristezas do dia. Elegemos a floresta como domicílio, dormimos embalados pelas corujas, partimos pela manhã eletrizados pela empolgação da mata crescida, vislumbramos cavalos. Encontramos homens rurais mudos”. (tradução: J.E.M.).

Se, sob um aspecto, “Sur les Chemins Noirs” mais profundamente revela que os efeitos traumáticos tiveram influência na narrativa, sob outra égide o autor revela seu de profundis -  não falta um  sentido poético na narrativa -, justamente a percorrer seu território natal. Se desaparece o surdo prazer, palpável nas viagens anteriores, possivelmente a decepção ao verificar precariedades e o desinteresse do Estado, nessas bucólicas mas desprezadas terras, tenha aflorado “sentimentos” ocultos em tantas obras anteriores. Faz-me pensar no extraordinário ciclo de melodias de Modest Moussorgsky, “Sans Soleil”.

Sylvain Tesson iniciou o percurso pelos “Chemins Noirs” aos 24 de Agosto, chegando a termo aos 08 de Novembro de 2015.

In his book “Sur les Chemins Noirs” French adventurer, writer and geographer Sylvain Tesson walks across France from Southwest to Northwest  following the Chemins Noirs (black paths), the unmarked ancient routes of men and animals or abandoned railways, reflecting on government’s disregard for citizens’ needs, the greed of large corporations under the pretext that rural areas need to be “incorporated into modern France” and repeated mentions of the accident he suffered in 2014 (a ten-meter fall during roof-climbing) that took a heavy physical and mental toll on him. Also a philosopher, the 76-day adventure is a chance for Tesson to muse over issues such as nature, modern society and his impulse to challenge death.