A decadência nos serviços de bordo

O pensador lança-se à tarefa de desembaraçar
o enrolado novelo que o mundo lhe apresenta,
mostrando como todo o fio não é mais do que ligação entre dois extremos,
o da eternidade e do tempo,
o da substância e o do acidente,
o de Deus e o do Homem.
E neste trabalho de desenrolar o novelo se lhe vai a vida.
Agostinho da Silva
(“As Aproximações”)

Ao longo das décadas foram dezenas de voos para a Europa, sempre em classe econômica, para atividades ligadas à música, como palestras, participação em Congressos ou júris de doutorado, mas preponderando, recitais e gravações. A constância determina a avaliação, após observação retida na memória. Há não muitos decênios os voos não saíam diretamente de São Paulo e a passagem obrigatória pelo aeroporto do Galeão era um fardo para qualquer paulistano, mercê da desorganização e da demora. Com a construção do Aeroporto Internacional de Guarulhos, os deslocamentos passaram a ser a partir de São Paulo. Depois da recente modernização desse aeroporto, o melhor do país, a vida do viajante tornou-se menos incômoda, pois alguns melhoramentos aconteceram. Ainda continua um transtorno absurdo chegar ao aeroporto, sobretudo em horários de pico ou quando há acidente grave ou chuva torrencial obstaculizando o trajeto. O trem expresso que sairá do congestionado centro de São Paulo, promessa bem antiga do governo estadual, deverá entrar em circulação brevemente, mas há ainda o problema da distribuição dos passageiros para os diferentes terminais que deverá ser feita, ainda, pelos ônibus. Alguns dos principais aeroportos do mundo já dispensaram esse meio de transporte para a ligação entre terminais.

Tenho por hábito chegar muitas horas antes de um voo. Há sempre um bom livro para se ler enquanto aguardamos o momento do embarque. Mais agradável seria a espera se preços escorchantes não fossem cobrados do momento em que ultrapassamos a barreira do exame dos passaportes pela PF e a verificação da bagagem de mão e dos pertences nas vestes. Esses preços estão acima do que se cobra no hemisfério norte. Nada a fazer, pois certamente uma engrenagem muito bem montada faz com que os preços nos vários pontos de venda de bebidas ou algo comestível se equivalham.

Modernizações como o finger, dispositivo que leva o passageiro até a porta da aeronave, já existem há tempos; contudo, quando se espera uma comodidade no interior do avião, assim como serviço de bordo menos direcionado à redução de custos durante as longas travessias, tal não acontece, apesar de preços das passagens em elevação contínua. Para o viajante que realiza desde o final dos anos 1950 a rota Brasil-Europa, a decadência e até, utilizando-me de palavra mais veemente, mesquinharia para com o passageiro naquilo que lhe é oferecido durante a travessia chama a atenção. Se for realizada uma pesquisa no que concerne ao tratamento desde a década de 1970 ao presente, a diferença no serviço de bordo é gritante.

Estou a me lembrar de voos, décadas atrás, por várias companhias que realizam a travessia a partir de São Paulo em direção à Europa. Altura do voo estabilizada, as aeromoças já apresentavam o menu completo impresso, podendo o passageiro escolher entre duas sugestões. Precedendo a refeição noturna, aperitivo era servido e havia farta variedade de bebidas para escolha. Logo após serviam o “jantar” e ofereciam para os amantes de vinho a garrafinha do tipo escolhido. Finda a refeição, passava o carrinho com licor ou conhaque. O material utilizado para todo esse processo era de boa qualidade, em plástico rígido ou vidro (entende-se o não emprego desse material após o fatídico 11 de Setembro). Quanto às mantas, algumas companhias as tinham em lã pura!!! Atualmente tudo foi alterado drasticamente, tanto na qualidade pífia do material, como no processo todo de apresentação e simplificação dos bens oferecidos.

Talvez o único benefício ocorrido nestas últimas décadas tenha sido a proibição do fumo durante as longas travessias, pois ao chegar ao destino o passageiro ainda teria durante um bom tempo suas roupas lembrando-o das horas vividas no interior da aeronave.

Um outro aspecto que evidencia a sanha predatória das companhias que fazem a travessia oceânica refere-se às bagagens. Em 2017 realizei três viagens para a Europa para participar de júri de doutorado, recitais e Simpósio, respectivamente. As três pela TAP. Nas duas primeiras, tive direito a duas bagagens de 32ks gratuitas, aliás, como nos anos precedentes. Na terceira, apenas uma até 23ks e para esse exemplar único foi cobrado E$ 75,00 (sic)!!! Paguei cerca de R$ 290,00. No regresso também tive de pagar a mesma quantia. O leitor nem precisa realizar elucubrações a respeito. É algo rigorosamente desproporcional. Os preços das passagens diminuíram, o serviço de bordo tornou-se mais generoso? Não, apenas não. Igualmente no presente cobram para os voos pelo país tarifa por bagagem sem que as passagens tenham sofrido redução, como alardearam as companhias aéreas.

Quanto às viagens mais longas pelo interior do Brasil, serviam, décadas atrás, a refeição. Em muitas delas o passageiro recebe hoje um pequeno invólucro com algumas sementes e um copo de água!!! Se quiser um café, tem de pagar. Passagem cara, café de garrafa!!! É algo inadmissível!!! Entendo como miserabilidade. Quanto ao preço da Ponte Aérea São Paulo – Rio, afirmam ser a mais cara do planeta, considerando-se os quase 40 minutos de voo.

Os tempos românticos se foram. Estou a me lembrar de ter solicitado em três viagens as mantinhas de lã pura de companhias aéreas transoceânicas. Apesar de propriedade da empresa, as aeromoças me ofereceram gentilmente. Àquela altura, minhas filhas ainda pequenas e minha mãe agradeceram essas prendas vindas do ar. Em outra oportunidade, ao preencher uma ficha que me foi entregue durante voo pela Air France, solicitei auxílio à aeromoça, pois tinha uma dúvida. Após dirimir minha hesitação, verificou, sem nada dizer a respeito, que aquele era o dia de meu aniversário, pois fixei-o na papeleta que exigia tal referência. Minutos depois voltou com um pacote fechado, desejando-me feliz aniversário. Havia seis pequenas garrafas de champagne que compartilhei, bebendo com velhos amigos parisienses!!! Outros tempos.

Poderei parecer demasiadamente conservador. A viagem aérea no passado revestia-se de certa magia. Na verdade existia um quase ritual. Os passageiros trajavam-se bem e, essa tradição mantida, influía certamente no serviço de bordo. Com a “democratização” dos voos na classe econômica, certamente um avanço social, esse ritual, que também poderia ser visto pelas ruas da cidade de São Paulo, perdeu completamente sua aura. Presentemente não mais existem “normas” para se trajar, exceções às tradições que permanecem nas classes empresarial e política, no judiciário e em tantas profissões. Contudo, nos voos que cruzam os oceanos, vê-se de tudo. Opções discretas ou berrantes são aceitas ou ao menos toleradas. A quebra absoluta daquelas condutas que existiam, mas não eram impostas, pois faziam parte de uma natural observância, não resultaria, sob alguma forma, nessa decadência do atendimento? Toda aquele esforço em manter um certo requinte no serviço de bordo não era assim pensado pelo fato de que as empresas sabiam que os que mantinham a tradição opinavam se algo não estivesse à altura? Nesses últimos anos durante os voos há aqueles que esticam as pernas pelos corredores, outros que não endireitam as poltronas quando do serviço de bordo, assim fazendo quando alertados pelo passageiro que se encontra na fila logo atrás. Nem comentemos os que falam alto durante horas. Jamais viajo sem proteção auditiva ou earplugs. Observo as muitas transformações que, apesar do “progresso”, remetem-me às recordações. No passado tinha verdadeiro prazer em estar num voo. Hoje, ao entrar na aeronave, só penso em chegar bem ao destino, desiderato final.

Sob outra égide, o poder das grandes empresas beneficiadas por agências reguladoras de toda ordem, é causador de distorções enormes, não mais se preocupando com o interesse do passageiro, do consumidor, do doente e de tantos outros cidadãos. Sempre afirmo que uma das chagas da atualidade é o lobista, figura que entendo sinistra. Haveria exceções? Esse personagem pode sempre ser encontrado junto aos três poderes e às agências reguladoras. A Lava-Jato e outras investigações sob diversos rótulos já retiraram do “mercado” muitas dessas figuras nocivas à sociedade. Mas, à maneira da erva daninha, extirpá-las é tarefa hercúlea nesse nosso país tão dilapidado e com a Justiça rigorosamente morosa, mercê dos recursos quase intermináveis apresentados pelos advogados das “vítimas”. Rigorosamente nada a fazer, a não ser mudar mentalidades. Será possível que isso aconteça? A decadência cultural, dos costumes, da moralidade, da ética é velocíssima. Quem não a sente? Será que a palavra esperança ainda persiste nos dicionários? Vou verificar.

This post deals with flying in economy class, comparing international flights onboard services of the past with those we have today, in the era of mass travel. Not only air companies seem to be engaged in a race downhill but now they also charge high prices for passengers to check their baggage, with no reduction on flight ticket cost.