E outras considerações mais

“- Você vê, eu fui filho e depois pai de um ruralista”, diz o velho.
Entre os dois o parêntese de uma vida.
“Na minha infância, vivia-se com quatro ou cinco vacas.
Fazíamos três saint-nectaire por dia. Eles fazem hoje cento e cincoenta”.
Eu não tinha estudos necessários para compreender
a mecânica desses fenômenos,
nem dispunha da pujança intelectual para analisá-los.
Mas pressentia que nosso hóspede levantava um ponto crucial.
O sentimento de não mais habitar o barco terrestre
com a mesma graça proveniente de uma trepidação geral
embasada sobre o crescimento.
Repentinamente ele teve muito de tudo.
Muita produção, muito movimento, energia demasiada.
Em um cérebro, isso provoca a epilepsia.
Na História, denomina-se massificação.
Em uma sociedade, isso conduz à crise.
Sylvain Tesson
(“Sur les Chemins Noirs”)

Não foi exceção. “Sur les Chemins Noirs” despertou atenção por parte de leitores que apreciam o gênero professado pelo escritor-aventureiro francês Sylvain Tesson. Mensagens curtas, mas incisivas, demonstrando interesse por sua vida e obra.

Após confessar que se sentia “imortal” antes do grave acidente que sofreu, há nítida  “guinada” no pensamento de Sylvain Tesson em “Sur les Chemins Noirs”, pois o tratamento literário torna-se mais cáustico, cético e resignado, por vezes com pitadas de humor. Talvez esse ceticismo tessoniano esteja mais voltado àquilo que ele captou na Rússia, pois, “para sinalizar que ninguém se importa com o que acontece, diz-se ‘mnie po figou‘, a acolhida resignada de tudo”.  O pofiguisme (tradução francesa), presenciado em suas andanças pelos solos da Rússia (vide blog “Dans les Forêts de Sibérie”, 01/03/2014), ficaria infiltrado em seus textos anteriores decorrentes das caminhadas ou de estágio prolongado pelo solo russo. O termo, não presente em “Sur les Chemins Noirs”, está contudo impregnado em tantas páginas!

Novamente neste espaço, para meu gáudio, o compositor e pensador francês François Servenière tece comentários de interesse sobre o blog precedente.

“Li com muito interesse seu artigo sobre Sylvain Tesson. A tal ponto que decidi comprar a coleção completa do autor através da Amazon, apesar de já ter lido quatro de suas andanças pelo mundo. A par do talento incomensurável de Sylvain Tesson, deve-se salientar ser ele filho de Philippe Tesson, grande escritor-jornalista, que certamente o apoiou quando do primeiro livro, que obteve muito sucesso. Esse primeiro passo teria sido fundamental. Apesar da juventude da idade madura, Tesson atualmente tem o físico de uma senhora idosa, tão grandes as sequelas do acidente.

Minha admiração por Tesson é enorme. Conseguiu explorações sem paralelo sobre a Terra. A leitura de seu livros é um bálsamo para o coração, frequentemente desencantado, quando em nosso país muitas coisas relevantes são deletadas, como a coragem e o heroísmo, valores profundamente ancorados no meu DNA. Sylvain é um viandante que tem densidade, humor, verdade e uma visão de longo alcance, tão longa quanto as estepes da Sibéria que ele percorreu com a lentidão de suas passadas”.

É bem difícil permanecer leitor de apenas um livro de Sylvain Tesson. Ressaltaria que um dos motivos para que esse fenômeno ocorra é justamente essa noção sincera de uma verdade que ultrapassa o campo ideológico em que legião está mergulhada. O horror à injustiça não surge em seus textos como mensagem panfletária. Nos seus 46 anos, o escritor aventureiro já viveu quantas vidas? Sob outra égide, a admiração pelas suas perfomances não viria dessa nossa impossibilidade física e mental de realizá-las? O paraíso ideal de que me falava décadas atrás o meu saudoso mestre e psicanalista Eduardo Etzel, lugar em que podemos nos refugiar mentalmente em momentos difíceis, não teria paralelo com esses espaços distantes por nós admirados através da façanha do outro, mas que sabemos não poder imitar por tantas circunstâncias físicas, mentais e culturais? Servenière considera que “atingimos nossos objetivos, mas os anos dessa juventude na idade madura estão passando, Fast and Furious, e são eles os mais profícuos da existência. Alguns sonhos de evasão ainda não terminaram pelo fato de ainda estarmos concentrados na direção de nossas vidas. Um dia olhamos para o passado e lá se foram mais de 50 anos… (Servenière completará 57). Menos energia nas pernas, no coração e nos pulmões… Os anos passaram como uma torrente que desce das montanhas. Paradoxalmente, constatamos que Tesson, percorrendo anteriormente todas as grandes distâncias, queimou a vela pelas duas extremidades. Ele mesmo confessaria esse infortúnio após queda  rocambolesca dessa parede de uma casa em Chamonix, justo ele, que na primeira juventude escalou as altas catedrais e subiu frondosas árvores apenas com o auxílio das mãos”.

Antolha-se-me que um futuro incerto, a partir de metas mais econômicas para o combalido físico de Tesson, o fará priorizar o projeto humanitário por ele proclamado nas primeiras entrevistas tempos após o acidente. Resta saber o que pode ser apreendido por humanitário. Se a extensão do termo, mesmo por linhas indiretas, estiver estruturada na denúncia ao descaso não apenas do Estado, mas das empresas e até do comum mortal em tantas ações equivocadas e até predatórias, estará Tesson prestando incomensurável serviço para o bem do homem nessa sua caminhada pela História, na procura incessante de sua humanidade, mormente se considerarmos a penetração ampla do autor junto aos meios de comunicação. É absolutamente plausível que entender a limitação física modifique planos que vão sendo acalentados ao longo da existência. Teria Tesson projetos que foram definitivamente abortados? “Sur les Chemins Noirs” não representará em sua obra o início de um outro olhar, mais interiorizado, mas profundamente enriquecido pelas extraordinárias experiências inseridas em sua já vasta literatura? A observação, dom precioso que é indelével basicamente em todos os parágrafos de seus livros, onde não faltam inúmeras metáforas que levam à reflexão, e que é umas das qualidades de notáveis mestres russos como Dostoievsky e Moussorgsky, na literatura e na música, respectivamente, não é uma das características essenciais de tantos outros luminares russos pertencentes a uma cultura que Tesson tanto admira?

A atração que desperta sua literatura não atenderia ao leitor que tem consciência de uma decadência social, cultural, reflexiva e moral da sociedade atual, prenhe de fanatismos ideológicos, religiosos e de outras mais ordens? A corrupção e o descaso no mundo ocidental tornaram-se rotineiros e seus praticantes pertencem à parcela dirigente do planeta, que contamina tantas áreas da sociedade. O leitor das obras de Tesson bem entende que, nesses longos silêncios e solidão com os quais o autor se viu obrigado a conviver graças às suas escolhas, os  conceitos maturados pelas circunstâncias o conduziram à descrença nas ações das autoridades, tantas vezes agindo com intenções estranhas. Não em “Chemins Noirs”, mas em outras plagas planetárias, como nas fronteiras da Índia ou do Irã e em outras barreiras impostas pelos países, Tesson sofreu por vezes cerceamento e até prisões como viandante ao atravessar marcos divisórios. A visão que depreende do autoritarismo elementar, multum in minimo, estendendo-se aos dirigentes de países, tem uma mesma frequência em seu pensar. O grito, nesses “caminhos negros” basicamente abandonados, é escutado por todos nós. Lembramo-nos de imediato do descaso do Estado pelas terras desassistidas percorridas por Tesson, aplicável também em nossas plagas em maiores proporções, neste caso a atingir frontalmente a desassistência ao povo negligenciado.

“Sur les Chemins Noirs” representaria para Tesson motivo de reorganização quanto ao rumo a seguir doravante, assim como uma possível reconstrução de um sem número de conceitos físicos e mentais, aqueles a limitar o esforço e a considerar a abstinência alcoólica, estes a entender que a lentidão pode ser, paradoxalmente, um veículo para a eclosão de tantas outras observações. “Sur les Chemins Noirs” não deixa de ser um apelo que não será escutado pelos poderosos, mas pelo leitor atento. O livro é quase um culto à nostalgia e uma crítica à modernidade em aceleração desenfreada. Um fato, contudo, traz para o leitor uma surda alegria, pois Sylvain Tesson não desaprendeu a gostar das longas caminhadas. Outras virão, esperamos.

Further thoughts on the book “Sur les Chemins Noirs” by Sylvain Tesson, this time including comments received from the French composer François Servenière, like me a great admirer of Tesson’s writings.