A morte precoce de um compositor de imenso talento

Enfim faz pena, mas tenho esperança que lá pelo ano 2000,
pouco mais ou menos,
o público português esteja capaz de gostar de música moderna.
António Fragoso
(notas manuscritas num carnet pessoal – 1918)

António de Lima Fragoso foi uma das promessas mais certas da música portuguesa. Ceifado aos 21 anos pela devastadora gripe espanhola, António Fragoso, nos poucos anos de existência, legou quantidade apreciável de criações detectadoras de amadurecimento que surpreendeu seus pósteros estudiosos.

Nascido em Pocariça, hoje agregada à freguesia União das Freguesias de Cantanhede e Pocariça, Distrito de Coimbra, António Fragoso teve contato com a música na tenra idade. Seus pais tinham para ele outros propósitos e, após ter ingressado em Liceu no Porto e recebido aulas de piano com Ernesto Maia, por decisão dos pais matricula-se no Curso Superior do Comércio na cidade portuense. Contudo, a vocação musical imperiosa impele a família a aceitar a concretização do desiderato de António. Parte para Lisboa e, inscrito no Conservatório Nacional, tem como mestres duas figuras exponenciais no cenário musical português: Tomás Borba (1867-1950), Luís de Freitas Branco (1890-1955), com os quais estuda Harmonia, Acompanhamento – Leitura de Partitura, respectivamente, assim como piano com Marcos Garin, igualmente professor da Instituição de Ensino. No Conservatório permanece de 1914 a 1918. Aos 16 Maio de 1916, na Academia de Amadores de Música de Lisboa, dá seu primeiro recital, apresentando somente obras de sua autoria. Pode-se seguir as suas aspirações musicais através de correspondência de elevado amadurecimento.

Entre 1918-1919 grassa em quase todo o mundo a gripe pneumónica ou peste pneumónica, popularmente conhecida como gripe espanhola. Estimativas variam em relação ao número de mortos, estendendo-se as cifras dos óbitos pela terrível pandemia a até 100 milhões de pessoas, pois dados relativos ao Extremo Oriente são vagos. Atingiu também a América do Sul em menor escala. Uma de minhas tias, Jupira, a caçula dos 16 filhos de meus avós maternos, morreria em 1918, aos 10 anos, vítima da devastadora gripe. Contudo, foi nos Estados Unidos e principalmente na Europa que uma das estirpes do vírus Influenza A, do subtipo H1N1, mais causou mortes.

A tragédia atingiria de maneira avassaladora António Fragoso, irmãos e parentes. Finalizando o ano letivo, o jovem parte de Lisboa para Pocariça. Lá nascera, assim como seus quatro irmãos. Em pleno Outubro a peste invade Pocariça. Dias antes da tragédia, António Fragoso escreve ao seu amigo Fernando Botelho Leitão, participando-o dos descontraídos momentos de um folguedo: “Ontem, porém, despimos a rabona de todos os dias, e vestimos a jaqueta dos homens de lavoura; as senhoras enfeitaram-se com as cores garridas de Viana do Castelo; e, descendo da sala ao campo, fomos dançar numa eira, ao som da guitarra e do harmônio, as danças tão simples e tão pagãs de nosso povo… Tive pena que cá não estivesses para nela tomares parte; que ao menos a minha pena tenha podido dar-te uma pálida impressão do que ela foi” (04/10/1918). Essa carta e tantas outras documentações constam do livro de Leonardo Jorge, filho do médico que assistiu à hecatombe familiar (“António Fragoso – um gênio feito saudade”. Município de Cantanhede, 2008). Nove dias após a missiva-artigo citada começam as baixas. Na morada dos Fragosos morrem em poucos dias: António (13), suas irmãs e irmão, Maria Izabel (13), Maria do Céu (15) e Carlos (15), assim como duas outras pessoas que lá viviam: Joana Maria (13) e Elisa Augusta (23). Como a pneumónica atingia mais os jovens e adultos até cerca de 40 anos, foi poupada a irmã menor de António, Maria Fernanda, que se dedicaria durante toda existência a cultuar e divulgar a obra do ilustre irmão. Leonardo Jorge escreve que naqueles dias aterrorizantes os sinos da igreja não mais tocavam durante os funerais, a fim de evitar alarme maior, tal a frequência dos desenlaces.

Nos poucos anos de vida deixou legado que, apesar de pequeno, propiciou aos coevos, e sobretudo aos pósteros, a certeza de que António Fragoso poderia vir a ser um dos grandes compositores portugueses. A lista de obras musicais publicadas, elaborada por Paulo Ferreira de Castro e Adriana Latino, constante de “António Fragoso e o seu tempo” (Direção, Paulo Ferreira de Castro. Lisboa, CESEM, 2010), apresenta invulgar produção que se estende na brevidade de pouco mais de um lustro (1912-13 – 1918). Preferencialmente tem-se peças para piano de curto fôlego, mas também criações para voz e piano, vozes e piano, violino e piano e um Trio para piano, violino e piano. Do Noturno em ré bemol maior (1917) há versão orquestral (1918).

É evidente que uma linguagem musical personalizada estava em processo. Influências, mormente a francesa, são nítidas na composição de António Fragoso. A França foi uma de suas aspirações para aperfeiçoamento que nunca se daria, e sua correspondência focaliza esse desiderato maior. Todavia, se comparamos, como exemplo significativo, a produção de Claude Debussy (1862-1918) nessa faixa etária que ceifou Fragoso, verificaremos que as pequenas peças para piano do compositor francês compostas na juventude, assim como o Trio em sol para piano, violino e violoncelo, têm feitura muito bem elaborada e evidenciam tênues sinais de desabrochar, exceções, talvez, às melodias para canto e piano, essas já configuradas em outro patamar. Contudo, as qualidades estilísticas detectáveis ao longo da produção de Debussy iriam se firmar mais precisamente nas fronteiras dos séculos XIX-XX, quando as impressões digitais sobre cada obra mostrar-se-iam indisfarçáveis.

Sob a égide da avaliação crítica, incluiria duas, entre tantas, que merecem ser citadas. Fernando Lopes-Graça (1906-1994) observa que “António Fragoso revela, através de fraquezas técnicas, naturais em quem não teve tempo para amadurecer o seu talento, uma real sensibilidade poética, traduzida numa linguagem harmônica de certa novidade para a época, haurida de Debussy e de Fauré, sem prejuízo de uma inspiração que com frequência vai beber às fontes da música nacional e que porventura viria a definir uma orientação estética de raiz verdadeiramente portuguesa” (Tomás Borba – Fernando Lopes-Graça. Dicionário de Música. Lisboa, Cosmos, 1956). O ilustre maestro português Pedro de Freitas Branco (1896-1963) teria expressado frase apreendida por Leonardo Jorge: “António Fragoso tinha a envergadura necessária para se tornar o maior compositor português de todos os tempos”.

Entre os posicionamentos sobre o jovem músico e suas escolhas, especialistas pormenorizam-se na personalidade, criação musical e avaliação desta nas décadas que se sucederam após a tragédia. O professor Paulo Ferreira de Castro (CESEM / Universidade Nova de Lisboa), em artigo basilar – António Fragoso: uma “figura de culto” da música portuguesa – para a publicação acima mencionada, afirma: “A imagem que vai ganhando consistência através da leitura da correspondência de António Fragoso é, a meu ver, a de uma personalidade dividida entre dicotomias múltiplas e pulsões contraditórias – nacionalismo e cosmopolitismo, melancolia e modernidade, culto platônico do absoluto musical e consciência da historicidade da arte -, mas também a de um espírito ávido de cultura e particularmente inclinado à reflexão, pouco vulgar entre os músicos portugueses da sua geração e sugestivo de uma precoce maturidade intelectual”. José Maria Pedrosa Cardoso (Universidade de Coimbra) acrescenta em seu arguto estudo – António Fragoso e a Música Portuguesa - para a publicação em apreço: “Mas Fragoso foi clarividente, precocemente invulgar ao apontar um caminho superior de uma verdadeira música nacional: uma música que deveria manifestar portugalidade sobretudo na ‘atmosfera’ criada a partir de linhas novas. Seria mais fácil admitir que também a linha de motivos tradicionais pode ajudar a criar música de caráter nacional. Aí sim, evitando a simples transcrição, a ingênua execução, fora do meio natural, de melodias populares. Compositores acreditados, alguns de cultura extraordinária como Viana da Mota, e o próprio David de Sousa, conseguiram demonstrar que melodias tradicionais também ajudaram a definir uma música de marca nacional”.

No segundo blog a prestar homenagem a António Fragoso abordarei a morte precoce como fator essencial à avaliação da obra deixada por um autor. Poderia uma pretensa “benevolência” do que foi legado por um criador privado da vida tão cedo, interferir no estudo crítico da produção? Músicos, poetas, literatos e artistas plásticos, que viveram décadas após a juventude e estabeleceram um “estilo” ou “estilos”, não têm suas criações juvenis basicamente negligenciadas? O que faz entender o debruçamento maior sobre António Fragoso dever-se-ia ao único motivo plausível, a presença de um enorme talento. Se uma definição estilística ainda se mostrava tímida, a firmeza escritural de tantas composições deixadas e a ação missivista intensa, a revelar cultura invulgar, são garantias irrefutáveis.

On the early death of the Portuguese composer António Fragoso (1897-1918), who died at the age of 21 victim of the Spanish flu pandemic, and on his production that, though small, makes researchers and critics feel certain he could have been one of the great Portuguese composers of all times had he lived longer.