Competência em vários gêneros musicais

A entidade musical apresenta
essa estranha singularidade de revestir dois aspectos,
de existir sob duas formas separadas uma da outra
pelo silêncio do nada.
Essa natureza particular da música
comanda sua vida própria e seus reflexos na ordem social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

Bem anteriormente saudava neste espaço CD com obras de um dos mais destacados compositores brasileiros, Ricardo Tacuchian (1939- ) (vide blog “água-forte”, 21/10/2017). Dele recebi três outros CDs, nos quais obras para piano solo, viola e piano e quarteto de cordas demonstram aspectos essenciais de seu caminhar composicional.

Um primeiro CD foi gravado em 2013 – “Quarteto Radamés Gnatalli interpreta Ricardo Tacuchian” – e apresenta quatro quartetos de cordas a atravessar período extenso, de 1963 a 2010. Trata-se de conjunto expressivo, que indica parte considerável das opções escriturais de Tacuchian. O quarteto de cordas nº1, Juvenil, foi escrito em 1963, aos 23 anos. A escritura já demonstra o domínio da técnica da composição e a presença de forte índole nacionalista através da utilização de rítmica a gosto das danças populares, mas que não oblitera a preocupação com a forma. Ao escrever em 1979 o Quarteto nº 2, com o título Brasília, há uma guinada escritural e Tacuchian explora com rara eficácia a problemática da dinâmica, trabalhando os limites sonoros explorando os harmônicos. Trata-se de uma técnica empregada por determinados autores no período, como o mexicano Mario Lavista (1943- ) no seu quarteto de cordas Reflejos de la noche (1984). Louve-se a magnífica interpretação dos músicos do Quarteto Radamés Gnattali, pois a execução, a manter equilíbrio sonoro, unicidade e “identidade” entre os instrumentos, mereceu cuidado especial. Ricardo Tacuchian criou o Sistema-T, que, segundo ele: “é uma técnica de controle de alturas no processo de estruturação musical”, sendo que aplica o Sistema no Quarteto de cordas nº 3, Bellagio, criado em 2000. Tem-se uma escrita distinta daquela dos dois Quartetos precedentes. Ao compor o Quarteto nº 4, Trópico de Capricórnio, 2010, Tacuchian empreende nova viagem escritural. A obra teve como inspiração basilar o círculo imaginário do Trópico de Capricórnio e a incidência solar no solstício, quando o sol se projeta verticalmente ao meio dia. O conjunto de Quartetos é extraordinário e a riqueza escritural, a indicar a longa senda trilhada pelo compositor, dá a medida de seu valor como músico criador.

O CD “O piano de Sérgio Roberto de Oliveira e Ricardo Tacuchian” tem interesse maior por apresentar obras de dois compositores amigos, mas com linguagens diferenciadas. Sérgio Roberto de Oliveira (1970-2017), falecido precocemente, deixou criações importantes para instrumentos solistas, conjuntos de câmara, música coral, música sinfônica e ópera. Louvável o seu empenho como fundador do coletivo de compositores, “Prelúdio 21”, que durante 10 anos apresentou mensalmente estreias contemporâneas de seus integrantes. A pianista Miriam Grosman interpreta Brasileiro, três Prelúdos Tijucanos e, ao piano, Ingrid Barancoski executa Atonas. Todas as peças muito bem elaboradas, sendo que Atonas revela-se como criação bem singular. Quanto às obras de Ricardo Tacuchian, tem-se Ernesto Nazareth no Cinema Odeon, com Miriam Grosman ao piano, e a coletânea A Bailarina, interpretada por Ingrid Barancoski. Ao penetrar no multum in minimo, Tacuchian empreende viagem ao universo lúdico com especial cuidado e extrema sensibilidade. Fizera-o ao compor Este verão eles chegaram (2012), já comentado no blog citado acima, “10 pequenas joias”, como salientei. As também 10 pecinhas que compõem A Bailarina são encantadoras. À primeira, A bailarina e o jardineiro, seguem-se e o… motorista, mendigo, médico, mágico, poeta, pescador, alpinista, pintor e, a finalizar, Felipe e a bailarina. Como no CD “água-forte”, relevantes as interpretações de Miriam Grosman e Ingrid Barancoski.

Em um contexto bem diverso, tem-se o recentíssimo CD “Tacuchian e a Viola”. Uma outra concepção exploratória da textura musical está presente. Contrariamente à formação violino e piano, a criação para viola e piano é bem inferior quantitativamente no repertório mundial. Tacuchian encontra no duo, formado por Fernando Thebaldi (viola) e Yuka Shimizu (piano), a oportunidade de propor CD dedicado a essa formação. Reuniu composições anteriores ao duo, inseriu criação endereçada ao violista e outras cinco pequenas peças, igualmente ofertadas ao duo Burajiru (Brasil em japonês). CD bem diversificado no conteúdo. A Toccata (1985) para viola e piano apresenta elementos contrastantes e a utilização de dinâmica e rítmica que lhe dão vivacidade e marcante pulsação. Xilogravura (2004) comporta no título características que Tacuchian transforma em poética controlada, dir-se-ia, numa textura gráfico-sonora simbólica. O Trio das Águas (2012) para viola, clarineta e piano é marcante. Do Mar, Dos Rios e Da Chuva não escondem a preocupação com o descritivo, ondulações do mar, certa nostalgia dos rios e impetuosidade da chuva por vezes interrompida, respectivamente. Não sem razão, Tacuchian compõe a obra para uma tríade ao acrescentar a clarineta, muito bem realizada musicalmente por Cristiano Alves. Expandindo o conceito do Trio das Águas, quantos não foram os compositores que buscaram, através da história, interpretar essas características da aqua em constante mutação na natureza? Tomilho, para viola solo, emprega processos técnicos pouco explorados que, sob outra égide, enfatizam as qualidades do violista Fernando Thebaldi. Finaliza o CD a encantadora pequena coletânea  composta pelas Cinco Miniaturas (2018) para viola e piano.

Tacuchian está sempre propenso a não se repetir, mas a seguir serenamente o caudaloso curso da existência, atento observador das imagens e das tendências. A metamorfose escritural constante não se olvida, contudo, da memória retida. Ouvindo-se as composições de Tacuchian, há nas tantas inovações a presença de um elo sutil a ligar passado e presente, jamais ruptura completa, mesmo em criações diferenciadas espaçadas pelos decênios. Impressões digitais deixadas no percurso que não se apagam, apesar da densa neblina do tempo.

This post addresses three CDs with works by Ricardo Tacuchian (1939 – ), one of themost prominent contemporary Brazilian composers: “Quarteto Radamés Gnattali Interpreta Ricardo Tacuchian”: string quartets played by Carla Rincón and Andréia Carizzi (violins), Fernando Thebaldi (viola) and Hugo Pilger (cello). “O Piano de Sergio Roberto de Oliveira e Ricardo Tacuchian”: piano pieces played by Miriam Grosman and Ingrid Barancoski. “Tacuchian e a Viola”: works for viola and piano played by Duo Burajiru ( FernandoThebaldi, viola – Yuka Shimizu, piano). The works illustrate essential characteristics of Tacuchian’s musical writing. Never repeating himself, his style shows new features in each album, but this does not imply a rupture with the past. The subtle link between yesterday (the retained memory) and today (new experiments and trends) is there: fingerprints that do not fade despite the dense mists of time.